Ao longo da semana em que decorreu a décima edição do festival Porto/Post/Doc, organizou-se a primeira edição do “Laboratório de Crítica“, projeto internacional para a promoção de jovens críticos de cinema. Assim, na cidade do Porto, reuniram-se oito jovens críticos que percorreram as múltiplas atividades do festival, entre sessões de cinema, conversas, conferências, lançamentos e festas. A acompanhá-los estiveram os coordenadores do projeto, o crítico Christopher Small (Locarno Critics Academy, Outskirts Magazine) e o walshiano Ricardo Vieira Lisboa, a Joana Gusmão (gestora do projeto) e os críticos convidados Ela Bittencourt (Artforum, Frieze, New York Review of Books), Leo Goldsmith (4Columns, Film Comment, e-flux e The Brooklyn Rail) e Olivia Cooper-Hadjian (Cahiers du cinéma). O exercício proposto aos participantes deste oficina de escrita apresenta-se de seguida. Trata-se de uma corrente de críticas em formato de carta em que cada interveniente responde ao anterior desafiando já o seguinte. Os autores não portugueses escreveram em inglês e as presentes traduções foram feitas por Joana Gusmão e Ricardo Vieira Lisboa. A versão em inglês desta correspondência cinéfila será publicada no site do Porto/Post/Doc.
Caro Xavier,
Quando aterrei no Porto, há três dias, a cidade estava banhada por uma luz quente, quase leitosa, que julgava conhecer pelos filmes de Manoel de Oliveira. Depois, uma manhã, com o nevoeiro espesso capaz de transfigurar os edifícios numa entidade onírica, achei que as minhas referências cinematográficas eram ridiculamente insuficientes. Sentia-me como as personagens de Les Naufragés de l’île de la Tortue (“Os Náufragos da Ilha da Tartaruga”, Jacques Rozier, 1976), que se debatiam secretamente com a inquietante realidade de estarem perdidas, apesar de constantemente afirmarem que tudo estava sob controlo. Nunca é fácil pôr em marcha experiências coletivas. Rozier sabia-o melhor do que ninguém: basta pensar em Pierre Richard e Jacques Villeret a interpretarem o que pensam ser dois diretores executivos visionários que se encontram na posse dos segredos da sociedade. Dica: esses segredos não existem. Mas tiveram de o aprender da forma mais difícil.
Por que razão me preocupo tanto com o caráter perverso destes protagonistas? Há anos que sonho com Portugal, que frequento aulas de línguas na universidade só para me imergir na sua cultura, que me consola. E, finalmente, aqui estou! Realizado, mas consciente do facto de, apesar dos meus esforços, continuar a ser apenas um turista. Com a sua trajetória escapista e o seu imaginário de terras longínquas, a inclusão do filme de Rozier na programação do Porto/Post/Doc representou o contraponto absoluto da dimensão documental do festival.
No entanto, de alguma forma, esta escolha foi como um aceno para o que significa ser um aspirante a crítico de cinema hoje em dia. Ao refletir sobre o assunto nos últimos dias, o paralelo pareceu-me inevitável: uma e outra vez, entro no desconhecido da sala de cinema, apenas para dela sair ora enriquecido, ora relaxado, ora deprimido ou aprisionado pelo que vi. Tal como Richard, e todos os outros, sou sempre o turista nas histórias dos outros. E isso até me reconforta.
Desde o meu primeiro encontro com o filme, o seu fascínio pelo verde exótico e pelas paisagens húmidas dos territórios ultramarinos franceses – em si mesmo um espetáculo raro no cinema – nunca mais me abandonou. Como não me abandonou o tom político do enredo. Não é que esta viagem organizada a uma ilha deserta das Caraíbas fosse um mero pretexto: em todo o seu interesse pelas dinâmicas contraditórias do grupo, a viagem alcança uma qualidade concreta e corporal que ultrapassa a metáfora. Tinha-me apercebido que este filme é essencialmente um produto do l’après coup: uma exploração do que veio depois. Fazia parte do génio de Rozier que este “depois” pudesse encarnar tanto uma história nacional abrangente (uma era de explorações ousadas que abriu caminho ao colonialismo), como uma intuição fugaz que levaria anos a cristalizar (a transformação da experiência humana em mercadoria).
Mas este “depois” era também, inegavelmente, cinema. De facto, o que me levou a escrever-te foi a tua bela análise do filme, alinhando-o com predecessores ilustres como Anne of the Indies (A Raínha dos Piratas, Jacques Tourneur, 1951) ou Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, Fritz Lang, 1955). Esses filmes sobre façanhas espantosas, como reparaste, distavam apenas vinte anos da abordagem muito mais irónica de Rozier – no entanto, tudo à sua volta parecia ter mudado definitivamente. Para ti, não é que o mundo tenha, entretanto, sofrido transformações drásticas. Pelo contrário, foi o cinema que mudou, afastando-se das grandes narrativas de glória, exotismo e moralidade, até ao seu desaparecimento.
É, pois, como se Les Naufragés de l’île de la Tortue fossem as ruínas de um filme de piratas. Rozier tinha conseguido encontrar um equilíbrio entre ‘o Coração das Trevas’ e o comum pacote de viagem com tudo incluído. Esta elegia impossível a um passado corrompido só pode ser consumida libertando as emoções mais vis que assaltam cada personagem – sejam as suas queixas sobre a vida na cidade grande ou as suas lutas na expedição. Gosto de pensar neste filme – na sua impressionante ideia empresarial, que seduz o cliente a desejar ideias que nunca deveriam ser vendidas (privação de tudo, ou mesmo a morte) – como um comentário ao capitalismo moderno.
No segundo visionamento, não pude deixar de reparar na estranha estrutura do enredo. Surpreendeu-me o tempo que é necessário esperar, avançando uma série de hipóteses que, logo depois, são descartadas (o primeiro terço do filme limita-se a acumular múltiplos falsos começos [faux départs]). Depois, ganha força a bordo de um navio, para acabar por se demorar eternamente no convés, com a costa à vista, durante uma longa sequência que transforma esta farsa numa discussão demente sobre a forma correcta de desembarcar. Quando as pessoas, finalmente, chegam à ilha, o filme começa a apressar-se, como se soubesse que já não resta muito tempo. Esta é uma qualidade muito humana: não saber lidar com o tempo – conseguindo assim uma duração própria, que não conhece limites pré-estabelecidos. É, a meu ver, o sinal infalível da mise en scène.
Um abraço,
Victor Morozov
* Les Naufragés de l’île de la Tortue integrou a carta branca proposta pelo realizador Alessandro Comodin no âmbito do foco que o Porto/Post/Doc lhe dedicou.
Caro Pierre,
Tenho-me perguntado porque razão o olho do Porto/Post/Doc está a derreter na capa do catálogo deste ano. Juntamente com o nome do festival, indica um rescaldo, uma espécie de desintegração, e talvez por isso Les Naufragés de l’île de la Tortue, de Jacques Rozier, me tenha parecido uma forma muito adequada de começar a nossa conversa. Se o filme de Rozier, como Victor assinala na sua carta, é essencialmente uma exploração do rescaldo, e em breve completará cinquenta anos, não podemos deixar de nos interrogar sobre o ponto em que nos encontramos atualmente. Muito para lá da era do cinema clássico, Les Naufragés de l’île de la Tortue estava ainda a transbordar de emoções, ideias e caminhos por explorar. A sua liberdade é notável. Acho que nós, críticos de cinema, estamos sempre à procura desses sinais de vitalidade nos filmes contemporâneos, com o espírito de um marinheiro ansioso por avistar terra (e avistamos!).
Como sugere Victor, e muito bem, o filme de Rozier pode ser entendido como as ruínas de um filme de piratas. As aventuras que pareciam já não ser possíveis – as de Tourneur, de Lang – são, de algum modo, absorvidas pela estrutura e pela forma; aventuras em nome próprio. Penso que é importante lembrar que Rozier deve ter crescido com estes filmes, hoje parte de um passado querido mas distante. Uma vez que o seu filme foi projetado na retrospetiva dedicada a Alessandro Comodin, escolhido pelo próprio Comodin como parte de uma carta branca, a minha mente vagueou rapidamente para possíveis afinidades. Uma delas era, de facto, esta ideia do traço, uma vez que Gigi la legge (2022) contém a semente de um noir que nunca descola. O seu título internacional afirma-o mais claramente: “The Adventures of Gigi the Law”. Precisamente porque o esplendor do passado está agora filtrado por décadas de cinema – ou seja, não pode ser já ligado à infância –, parece mais adequado pensar em Gigi como uma revisão lúdica do género, em vez das suas ruínas. Não quero divagar demasiado, mas para mim Gigi pertence a uma linhagem de detetives que investigam mistérios que já não interessam, desde Blow-up (História de Um Fotógrafo, 1966), de Antonioni, a La Femme de l’aviateur (A Mulher do Aviador, 1981), de Rohmer, até Trenque Lauquen (2022), de Citarella. Para eles, a própria realidade aparece como um mistério a decifrar, e nós demoramo-nos nas suas interpretações em vez de procurarmos um resultado, porque as respostas se tornaram, afinal, irrelevantes.
Outra possível ligação a Rozier veio-me à cabeça quando voltei a ver L’estate di Giacomo (“O verão de Giacomo”, 2011), de Comodin. Mesmo que o primeiro seja uma ficção e o segundo se incline sobretudo para o documentário, partilham um elemento de realidade que se manifesta na experiência do tempo e num sentido de presença, ambos originados pelos longos planos de câmara à mão. Durante uma conversa com Olivia Cooper-Hadjian, Comodin explicou que o acaso desempenha um papel muito importante no seu trabalho, e que estes longos planos são uma porta aberta para o inesperado. Entre a espera que as coisas aconteçam em frente à câmara e a construção meticulosa de uma progressão narrativa na mesa de montagem (um processo partilhado com o realizador português João Nicolau), surge uma ambiguidade que é essencial aos seus filmes. Nesta linha, para além da mise en scène, penso que é também importante falar daquilo que é descartado, omitido, elidido, retido: Comodin rodou o filme ao longo de dois anos sem guião, combinando analógico e digital, e acabou por utilizar apenas imagens de 16mm filmadas em três dias.
Dentro do próprio filme há uma elipse muito comovente: segue-se à cena em que Giacomo e Stefania andam de bicicleta enquanto uma música extradiegética toca. Esta imagem parece ser o culminar de um cliché de amadurecimento, mas os seus rostos não correspondem à natureza climática do momento: sim, sorriem por vezes, mas também parecem distraídos, indiferentes, quase tristes. Talvez pudéssemos pensar mais uma vez na melancolia das histórias de férias de Rozier, mas há outra coisa a resolver-se aqui. No travelling, a câmara deixa-os para trás – Candy Mountain (Robert Frank e Rudy Wurlitzer, 1987) termina com o mesmo plano! – e depois corta para Giacomo e outra rapariga, Barbara, à beira do rio onde ele e Stefania costumavam brincar. O amor que acaba de começar contém a semente do seu próprio fim, pois Barbara já está preocupada em perdê-lo. É tão simples e tão poderoso: tanta vida a pulsar naquele intervalo!
Aguardo com expetativa a tua resposta,
Xavier Montoriol
* Gigi La Legge e L’estate di Giacomo integraram o foco que o Porto/Post/Doc dedicou ao realizador Alessandro Comodin.
Caro Chris,
Acredito que os atores são melhores quanto mais estão, de certa forma, deslocados. Não necessariamente no sentido cliché do ator cómico que se encontra num papel dramático – nem o contrário. Refiro-me antes à forma como um ator pode criar um buraco, um vazio na textura do filme.
Em França, Jacques Villeret é sobretudo recordado pelas comédias tolas. Mesmo Godard, que o levou a participar em Prénom Carmen (Nome: Carmen, 1983) e Soigne ta droite (Atenção à direita, 1987), deu-lhe papéis pequenos e estranhos, em que ele estava quase sempre em silêncio, uma espécie de palhaço discreto. Nos anos 70, Jacques Villeret participou em dois filmes realizados por alguns dos cineastas mais excêntricos e independentes do seu tempo: Passe montagne (1978), de Jean-François Stévenin, e Les Naufragés de l’île de la Tortue, de Jacques Rozier. Nestes dois filmes, atua num registo mais suave e triste, com a sua voz idiossincrática e gritante atenuada, parecendo quase envergonhado dos seus habituais truques de brincalhão. Os seus olhos brilhantes, que normalmente brilham de forma clownesca, têm quase um tom mais escuro.
Quando aparece pela primeira vez no filme de Rozier como Bernard Dupoirier – um nome que tem uma sonoridade extremamente engraçada – parece estar a desempenhar o seu habitual papel de “bobo da corte”, mas lentamente afasta-se dele. No final, está afastado de si próprio, ausente mesmo, olhando para o nada. Até as outras personagens parecem aperceber-se disso: nas últimas cenas, a voz off de Julie (Caroline Cartier) continua a dizer-nos que tem medo de Bernard, do seu estado de espírito e dos seus pensamentos. Embora os filmes de Rozier pareçam, à partida, ser sobre brincadeiras e campos de férias, acabam sempre envoltos numa estranha melancolia, talvez a melancolia inevitável das férias – o tédio, a ansiedade, os problemas materiais, a dificuldade de partilhar verdadeiramente uma experiência com os outros. São, sobretudo, os atores que trazem tudo isto à superfície, especialmente Villeret (Pierre Richard, por outro lado, parece tentar desesperadamente escapar a esta melancolia). Um dos planos mais tristes do filme, penso eu, é aquele em que Villeret informa as outras personagens de que o navio não está a mover-se com as velas, mas sim com o motor. “Mas eu não quero fingir”, dizem-lhe – “Mas poderia ser diferente?” – Villeret parece responder com o seu silêncio, a sua imobilidade, a sua plácida lucidez.
Em Candy Mountain, apresentado na secção “Onde andam os nossos contadores de histórias?” do festival, a atriz Bulle Ogier cria também uma espécie de “vazio” na continuidade do filme. À medida que Julius (Kevin J. O’Connor) atravessa a América do Norte, conhece uma série de personagens estranhas, na sua maioria interpretadas por músicos de rock and roll. Estas interacções fazem deste filme, praticamente, um clube de rapazes; a maior parte destes papéis são sobre homens a fazerem-se de duros, ameaçadores ou a exibirem-se. Estas personagens são como pontos pesados ao longo da linha reta que Julius está a traçar através da América, mas a personagem de Ogier, chamada Cordelia (claro), traz consigo a sua própria linha distinta e cruza a dele. Ela tem o seu próprio horário, o seu próprio ritmo, as suas próprias ideias – obviamente, o seu próprio sotaque (quando os sotaques das outras personagens parecem vir cada vez mais das profundezas da América do Norte, o seu sotaque é de um lugar completamente diferente – outro continente).
De certa forma, Ogier vem de outro filme, talvez de um filme francês, de onde quase parece vir a estranha piada que ela faz (“Não tenho mais nada a dizer a Elmore” [I have nothing to say more to Elmore]).
Ela traz uma outra ideia de atuação, ou melhor, de “não atuação”, de deixar fluir as emoções através dos gestos mais simples. Quando as personagens dormem juntas, não se trata propriamente de um acontecimento ou de um feito eloquente, mas de um simples momento de união e serenidade. Normalmente, Julius fica feliz por deixar as pessoas estranhas que encontra na estrada (afinal, tudo o que fazem é gritar com ele e tirar-lhe o dinheiro), mas não ela: quando se despedem (não uma, mas duas vezes), é uma despedida dolorosa.
De certa forma, ambas as performances são sobre a reminiscência através da ausência. Enquanto todos à sua volta estão a brincar, a saltar, a gritar, a tocar música, eles simplesmente lançam um olhar sobre o mundo, um olhar que perturba o estado de espírito aventureiro com que estes filmes brincam. Ogier e Villeret estão aqui, apenas aqui, e, ao estarem aqui, recordam às outras personagens e a nós, espectadores, o escapismo de que são feitos os filmes. Ambos são sobre aventuras a fingir – bonitas porque são aventuras, tristes porque são a fingir – e ambas as performances são sobre fechar a cortina. Viajar, na verdade, é sempre uma questão de regressar a casa.
Pierre Jendrysiak
* Candy Moutain integrou o programa ‘Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias’ do Porto/Post/Doc.
Querida Rita,
Como o Pierre disse na sua carta, há algo de poderoso na noção de regresso a casa. Os prazeres e as frustrações de Candy Mountain estão rodeados por esta ideia algo vaga. O seu herói errante, Julius (Kevin J. O’Connor), está, evidentemente, longe de regressar a casa, mas os seus encontros em busca do esquivo Elmore Silk envolvem as casas de muitos outros. Uma delas, em particular, é Cornelia, interpretada por Bulle Ogier com a tranquilidade digna de uma mulher que viveu uma vida plena e completa. É uma dádiva vê-la neste filme, onde está presente por não mais de 10 minutos. Uma pequena peça deste mosaico norte-americano desgastado e cansado.
Fiquei impressionado com Cornelia por muitas razões, claro, mas em particular pela forma como os co-realizadores Robert Frank e Rudy Wurlitzer encenaram a sua apresentação. Vemo-la a tratar das tarefas na cozinha quando avista algo através da janela, entre as colinas cinzentas e geladas. Acabámos de ver Julius chegar à propriedade de Cornelia, onde ele pensa que vai finalmente conhecer Silk. Mas quando Cornelia se dirige para a porta, Julius está enquadrado no centro da sua janela, uma figura insignificante na paisagem, um mistério para ela. Quando lhe abre a porta, a sua silhueta preenche a moldura luminosa, e cortamos para um plano médio do seu rosto a olhar para o meio da distância. Ela diz-lhe algumas palavras e dá-lhe as boas-vindas. É um cenário simples, mas que está já imbuído de muito significado. Julius está cansado, Cornelia está cansada – usam os seus pesares como um casaco pesado.
A semelhança desta cena com a abertura de The Searchers (A Desaparecida, 1956), de John Ford, não me deixava, não me podia deixar. Tive o prazer de falar sobre Ford na semana passada, no Porto, com os meus colegas críticos, mas nunca mencionei este filme em particular. Candy Mountain é, como nenhum outro filme, tão perspicaz sobre a dissolução, ou mesmo a total ausência, do sonho americano. E só um filme realizado por artistas tão sintonizados com os contornos da história e da vida americanas como Frank e Wurlitzer poderia não deixar de fazer esta referência. Tal como o aparecimento do Ethan Edwards de John Wayne na desolada paisagem americana para saudar a Martha Edwards de Dorothy Jordan, o encontro de Julius e Cornelia atinge-nos com um peso elegíaco. Porque não consigo tirar The Searchers da cabeça? Desde que vi Candy Mountain sinto-me quase tão obcecado como Julius, talvez até como Ethan, por esta investigação. Então, até onde pode ir esta comparação? As obras roman à clef de Jack Kerouac, os desvios musicais da obra de Jim Jarmusch, a fotografia de Jerry Schatzberg e, claro, o realizador Robert Frank – ele próprio um cronista fotográfico fundamental dos párias e das figuras marginais da América – são certamente pontos de partida mais relevantes. Mas há algo, por mais mal orientado ou fútil que seja, que me faz regressar a Ford, a Wayne, a essa peça de arte americana espinhosa, complexa e revolucionária que fizeram juntos em 1956.
Apesar de toda a sua violência, tanto física como espiritual, Candy Mountain é, na verdade, uma coisa gentil e iluminada como The Searchers (ou, na verdade, qualquer filme de Ford) por uma apreciação das propriedades de dissolução de fronteiras da música e das pessoas que a fazem.
Cada um deles é o retrato de um homem quebrado, relegado para as margens por uma onda de história que se recusa a admitir a derrota, apesar de todos os seus sinais. Durante duas horas, ele volta a ser um herói. Tal como Ethan, Julius é o herói autoproclamado de uma viagem aparentemente sem esperança, a figura de proa da loucura que luta com e contra o cínico mas necessário impulso para sobreviver. É certo que a tarefa que tem pela frente não carrega o mesmo peso de urgência que a da sobrinha perdida e em perigo de Ethan, mas para Julius, a oportunidade de ganhar dinheiro, de se afirmar, de se estabelecer – todos os chavões do progresso americano – é uma questão de vida ou de morte.
Um dos privilégios do Laboratório de Crítica do Porto/Post/Doc foi a experimentação, uma oportunidade de levar a minha escrita em novas direções ou, talvez como esta reflexão mostra, afastar-me completamente da direção. Se a profissão (ou passatempo glorificado) da crítica cinematográfica se mantém, qual é a nossa direção? Talvez seja esta a questão que me leva de volta a The Searchers e que me comove tanto com Candy Mountain; por mais improvável que seja, este último é, a meu ver, o sucessor melancólico e rude do primeiro. Enquanto o incompatível Ethan acaba por regressar às terras áridas do Oeste americano, o destino errante de Julius é menos claro. Também ele parece desvanecer-se na paisagem, mas, ao contrário de Edwards, caminha para a frente e não para longe, de costas para nós. Apesar de toda a sua dureza, o espírito indomável de Julius é de admirar, e o filme parece concordar. Eu admiro-o. Espero abraçar as suas virtudes.
O teu amigo,
Chris Cassingham
* Candy Moutain integrou o programa ‘Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias’ do Porto/Post/Doc.
Caro Miguel,
Acabei de receber a carta do Chris onde me conta a sua comoção com o filme de Robert Frank e Rudy Wurlitzer, Candy Mountain. A forma como descreve Julius lembrou-me Xoel, o herói romântico da primeira longa-metragem do realizador galego Carlos Martínez-Peñalver Mas. Mas ao contrário da existência errante que Chris sugere em Julius, a peregrinação de Xoel é uma escolha deliberada. E se Julius parece desaparecer na paisagem, Xoel acaba mesmo por se fundir nela, passando a fazer parte da Serra da Estrela e seus mitos.
“Esta é a história de um pastor pobre que vivia numa aldeia triste e tinha por única companhia o seu cão.” Começa assim a lenda do Pastor e da Estrela, história que põe a descoberto uma das mais altas montanhas de Portugal enquanto lugar de fantasia. À Procura da Estrela (2023) tenta combinar o real e o mitológico, intercalando lenda e documentário, partindo da fábula para nos mostrar um lugar em extinção. Martínez-Peñalver Mas integra o mito no percurso da sua personagem, que se propõe a conhecer a fundo o território à medida que o atravessa, deixando-se absorver na paisagem de uma região cuja realidade social tem sofrido profundas transformações ao longo dos últimos anos.
A sua personagem, Xoel, é um etnólogo sonoro em viagem. Do Gerês até à Serra da Estrela, vai preservando a memória dos locais por onde passa colecionando-lhes os sons: o cantar dos pássaros, a água da fonte, as ruas desertas das aldeias já pouco habitadas. E, tal como o trabalho do pastor, também a missão de Xoel é solitária. Deambulando de gravador na mão por territórios que lhe são desconhecidos, tenta desenhar um retrato dos lugares a partir dos sons que os compõem, estendendo a paisagem além das suas formas. Com os pés no chão e a cabeça nos supostos cantares autênticos da serra, é ele o nosso intermediário entre as duas dimensões representadas. Se, por um lado, a sua relação com a região passa por aprender o seu presente no contacto que estabelece com as pessoas locais, por outro, o seu exercício de ocupação de um lugar encaminha-o na procura da melodia que todos julgam ser fruto da imaginação fértil dos pastores, só presente nas histórias de um passado impossível de comprovar. Mas há algo que apenas Xoel parece ter acesso, segredos que a montanha revela somente àqueles que são capazes de escutar atentamente. Este contacto é de tal maneira sigiloso, que nem a mim, que caminho ao lado de Xoel, me foi dado esse alcance, tornando tudo o que acontece a seguir num enigma por decifrar. Ao mesmo tempo que o filme nos quer fazer acreditar que é o som a porta de entrada para esse outro mundo atemporal, onde a realidade dá lugar ao encantamento, são demasiadas as vezes em que assistimos ao processo de recolha de elementos sonoros, sem ouvirmos o que o gravador está de facto a captar.
No desejo de conhecer o que existia além do que os seus olhos alcançavam ver, o pastor partiu numa jornada até ao mundo para lá do recorte da montanha, guiado por uma pequena estrela que lhe disse ter sido enviada por deus para lhe cumprir a vontade, ou assim continua a lenda do Pastor e da Estrela. Analogamente, também Xoel parte à procura do que não consegue ver. Em busca da fonte da misteriosa melodia que o parece perseguir, sobe até ao topo da montanha. Vemo-lo desde o céu, transformado num ponto em movimento contra a imensidão estática da paisagem. O nevoeiro adensa-se, a imagem desfoca, e ouvimos por fim o entoar de uma harmonia. A voz melódica vai ecoando cada vez mais alto. Serão os cantares melancólicos da serra a chorar o seu próprio esquecimento? Talvez a estrela sagrada a guiar o etnólogo até ao seu verdadeiro destino? Quando tudo regressa repentinamente ao silêncio, Xoel é o pastor reencarnado que pisa o chão do mesmo trilho que momentos antes, embora muitas vidas depois, ajudava a reconstruir com José Maria Saraiva, presidente da Associação Amigos da Serra da Estrela, e guia de Xoel pelas tradições de salvaguarda da paisagem.
Viajámos no tempo para dar corpo ao mito. A partir deste momento, e sem que nada o fizesse prever, o filme resvala para o absurdo. A demanda impossível de Xoel levou-o ao tempo dos reis, e À Procura da Estrela passa a materializar a dimensão etérea da lenda que nos conta a história do pastor que baptizou a serra. No esforço de ouvir para compor um retrato fiel da montanha, é Xoel quem acaba retratado na figura do pastor protector da natureza, que só com ela partilha todos os seus dias. Talvez seja esta a ideia mais bonita do filme e o testemunho que dele quero guardar, que prestar atenção também é cuidar.
Espero ver-te novamente breve,
Rita Branco
* À Procura da Estrela integrou a Competição Cinema Falado do Porto/Post/Doc.
Cara Petra,
Olhar pela janela deste autocarro, noite adentro, a caminho de casa (tudo o que nos parece restar depois do filme de Rozier), após uma semana de cinefilia no Porto/Post/Doc, levou-me a uma inesperada associação. Os reflexos de luz dos automóveis que assomam, rápidos, ao vidro, não me parecem diferentes das projeções na câmara escura das salas de cinema que visitámos e revisitámos, desenhando gestos luminosos na superfície do ecrã.
Pensei nesse ato de desenhar (um movimento, uma realidade, uma forma) e em como este serve de metáfora que aproxima o cinema à pintura: ambos lidam com a feitura de uma imagem, sempre intangível, e a sua inevitável relação com a luz. A Rita escreveu-me sobre como o som e a paisagem lhe moldaram o entendimento do documentário À Procura da Estrela, mas, no meu caso, foi a pintura que nunca me abandonou ao longo desta semana. Fosse na beleza romântica de While the Green Grass Grows (2023), a roçar o idealismo da Hudson River School (“a painter has certain gestures that repeat themselves” diz Mettler, numa aceção à procura da metalinguagem), ou na sublime rigidez, inquirindo o conceito de belo, de uma das obras fundamentais de Paul Schrader, Mishima: A Life in Four Chapters (1985). Ambos lidam com a morte e a sua possibilidade de transcendência. Já em Samuel e a Luz (2023, primeira longa-metragem do brasileiro Vinícius Girnys que teve, aqui, a sua estreia em Portugal), a morte substitui-se por uma dimensão mais tonal, menos definitiva, como uma pincelada: o apagamento.
No cartaz do filme, a relação pareceu-me óbvia. À silenciosa luz daquela criança a segurar uma vela, que lhe alumia o rosto, vi uma pintura terminada quase quatro séculos antes, uma das mais reconhecidas obras de Georges de la Tour, Saint Joseph Charpentier. Nela, a criança representada é Jesus, e a luz quente que lhe revela a face, mostra, ainda, o pai que trabalha, manuseando um trado de metal, cuja forma anuncia a posterior crucificação do seu filho.
Ainda que a religião surja, narrativamente, na docuficção de Girnys como uma dimensão do quotidiano das personagens, paralela a outras (o trabalho, as relações familiares), construindo um olhar sociológico, ela imiscui-se, subtextualmente, numa vontade de transcendência, refletida pelas imagens. Vemo-la na evocação da quietude calorosa, fora de tempo, anunciando intimidade, e a que primeiro acedemos na sedução dessa luz, quase divina (porque, afinal, está sempre presa à vivência diária). Já aí, Samuel e a Luz parece impor-se como um filme de dicotomias, com o ascético a resultar como o contrapeso da realidade, numa curiosidade pelo metafísico – espelhado, por exemplo, nos recorrentes contrastes, de uma sensibilidade a aproximar-se do paganismo, onde água e fogo se correspondem, mas sem ambicionarem um lirismo deslocado da realidade (o primeiro plano que nos emerge no mar, e o último onde olhamos o fogo que rebenta no céu).
Nem sempre essas dicotomias resultam a favor do filme: a dada altura, apercebemo-nos da compulsiva vontade em opor planos de dia e noite (o chiaroscuro feito montagem), como uma lanterna que acende e apaga – por um lado, parecendo refletir a recorrência deste motivo ao longo da sua duração (as lanternas na noite, as intermitentes sequências de fogo de artifício), mas, contradizendo, nervoso, a atenta observação que construía; indo por aí, menciono, também, a frenética abordagem à câmara, com os planos a variarem entre a estilização compositiva e um documentarismo despojado, num desequilíbrio que, apesar de tudo, lhe vai proporcionando uma involuntária vivacidade, natural à excitação de uma primeira longa-metragem. É curioso como até essas inconsistências partem ou reagem a uma mesma fixação: sempre a luz, como se o filme estivesse consciente do processo que o fez surgir.
Ao longo da sua duração, o fogo das velas, associado a uma dinâmica de convivência (os jogos de mikado entre crianças, a cumplicidade, também aqui, entre pai e filho) vai dando lugar a uma eletricidade branca que, à medida que se instala (trazendo a modernidade messiânica, a esperança a quem aquela mãe se agarra), concretiza, paradoxalmente, um, cada vez maior, apagamento: a identidade local perdida em favor da gentrificação turística, e o isolamento que se cimenta, refletido na fixação das personagens aos ecrãs móveis, e da câmara ao drama conjugal que se vai revelando. O filme parece inquirir: será que valeu mesmo a pena?
A luz atribui-se, aqui, como um signo sacrificial, tal como a cruz que São José anuncia. Notamo-lo, à partida, pela estranheza dos indivíduos de capacete amarelo que instalam a eletricidade, irrompendo num barco pela areia da praia, absurdamente deslocados daquela realidade (na sua especificidade documental, o filme não concretiza uma correspondência direta com a colonização, mas é pertinente lembrá-la, até porque a estética barroca será hoje um reflexo das imposições aculturadoras ao povo brasileiro, pelos colonizadores portugueses – o que, aliás, não contradirá toda essa “pureza” transcendente, de raízes católicas?). Mas é Samuel (correspondendo ao profeta a quem roubou o nome) quem o anuncia, numa discreta troca de planos ao início, onde do manto azul em que dorme (o da Virgem Maria) passamos ao olhar para um pássaro morto, que o seu pai irá esfolar (a pomba já sem vida, a anunciar que a esperança terminou para Ponta Negra). Aí percebi que, se calhar, Samuel e a Luz também é um filme sobre a morte. Mesmo assim, são poucas as personagens que não olham, a dada altura, pela janela. Deixo-te com uma frase que o Samuel dirige, muito singelamente, ao pai, e de que gostei muito: “A vela queima. Se puser a mão no fogo, ela queima.”
Boa viagem de regresso,
Miguel Pinto
* Samuel e a Luz integrou a Competição Cinema Falado do Porto/Post/Doc.
Querida Cátia,
É uma luta eterna. De que forma devemos contar as histórias que não são nossas para serem contadas? De que forma podemos descrever um sofrimento que não tivemos de suportar e as julgar escolhas que não fomos obrigados a fazer? Por agora, estas podem ser sobretudo perguntas retóricas, uma vez que as potenciais respostas só irão desiludir, mas isso não nos deve impedir de as verbalizar, pelo menos. Ou, se for o caso, fazer filmes sobre elas, como tentaram recentemente os autores de Landshaft (2023) e Between Revolutions (2023), exibidos no Porto/Post/Doc.
O primeiro passa-se, sobretudo, num carro instável que atravessa as vastas planícies do Nagorno-Karabakh, onde a etnia arménia prossegue a sua vida, apesar das tropas do Azerbeijão se esconderem no horizonte, com a ameaça constante de mais uma guerra. Mas, em vez de procurar as causas do conflito implacável ou de explicar a sua própria atitude política, o realizador alemão Daniel Kötter mergulha silenciosamente a sua câmara no cenário cinzento, enquanto se move de forma extremamente lenta e quase mecânica em direção à fronteira crucial. Os planos gerais coreografados ritmicamente são acompanhados por conversas não muito cuidadosas de habitantes locais que refletem as lutas diárias de civis inocentes presos a uma situação que não podem controlar. Por vezes, falam das suas antigas amizades com os cidadãos do Azerbaijão, outras vezes discutem que carro comprar e noutras falam da colheita da batata; o seu medo esconde-se por detrás destes assuntos banais. Alguns destes diálogos podem parecer superficiais ou aborrecidos, mas o seu vazio é tão intencional como o vazio dos enquadramentos da paisagem de Kötter ou o silêncio da sua banda sonora. Estamos mais habituados a ver a guerra como uma cena contínua de combates; a guerra é essencialmente aborrecida, pois consiste sobretudo em esperar, enquanto futuros possíveis ameaçam eclodir a qualquer momento. É certo que esta noção é incrivelmente cínica – e ainda mais quando se trata de um alemão não afetado pelo conflito a afirmá-lo –, mas Landshaft utiliza-a adequadamente sob a forma de um exercício moral. A exigência ostensiva do público por histórias facilmente legíveis com um início, uma reviravolta e um final instrutivo não pode ser aplicada a experiências tão traumatizantes como uma história de guerra. Todas as histórias de vítimas devem ser igualmente válidas, independentemente da nossa vontade de as compreender ou da sua acessibilidade aos espectadores. Esta não é a nossa guerra.
Vlad Petri, de Between Revolutions, por outro lado, parece empregar a abordagem visual e narrativa oposta: as suas imagens são visivelmente amontoadas, transbordando de participantes sincronizados em manifestações ou simples massas desorganizadas de cidadãos a fazer recados nas ruas de Bucareste ou Teerão. Composto apenas por imagens de arquivo dos dois países, à medida que digerem transições sociopolíticas importantes, Between Revolutions segue uma correspondência entre duas antigas colegas universitárias (e possíveis amantes) cujos percursos de vida foram separados pela mudança do clima político dos seus países de origem. Zahra regressou para participar na revolução iraniana que se opunha à monarquia do Xá no final dos anos setenta, enquanto Maria permaneceu na Roménia, aguardando o relaxamento do regime repressivo que finalmente chegou em 1989 com a queda do regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu. Embora as origens culturais destes países sejam muito diferentes, Petri considera que o seu desejo de esperança e liberdade tem origem no mesmo sítio. Assim, traça muitos paralelos pictóricos entre os diferentes acontecimentos históricos, a fim de salientar a sua natureza universal e o seu zeitgeist comum. Pouco importa a origem das imagens encontradas, se são da Roménia, do Irão ou de qualquer outro país. Isto poderia ter acontecido em qualquer sítio da Terra. Estas são as nossas revoluções.
O que estes documentários têm em comum é o seu esforço em lidar com a natureza invisível dos seus protagonistas, embora os seus autores tenham enveredado por caminhos opostos para o fazer. Daniel Kötter decide não mostrar os rostos (salvo raras exceções) dos habitantes do Nagorno-Karabakh e centra-se na verdadeira personagem principal de Landshaft: o próprio solo. Algo tão vulgar que nem sequer reconhecemos que o pisamos, mas que, ao mesmo tempo, está no centro do conflito em curso. Onde as linhas são traçadas no solo é a principal preocupação de ambas as partes interessadas. Por isso, a câmara de Kötter vira-se para o chão com planos longos de um trator a arar batatas, vacas a atravessar pastagens ou sepulturas acabadas de cavar. A desumanização da narrativa, acentuada pela assincronia do som e da imagem, não é, no entanto, uma prática muito favorável ao espectador, uma vez que nos impede de criar uma ligação emocional com o que vemos.
Em contrapartida, Vlad Petri interessa-se sobretudo pela emocionalidade e antropomorfização do material. Apesar de o diálogo epistolar ser escrito e inspirado por poetas iranianas e romenas e, portanto, não pertencer a uma pessoa concreta e viva, Petri atribui cada informação das cartas a um espetador aleatório encontrado nos arquivos. Os agentes da polícia secreta temidos pelas personagens fictícias tomam assim a forma e o corpo de homens de óculos escuros pretos que passeiam pelas ruas das capitais. A escrita fictícia torna-se então falsamente autêntica, no sentido em que se baseia na realidade histórica, sendo depois dramatizada e, em seguida, devolvida à fonte real dos acontecimentos.
“As vitórias podem ser confiscadas”, ouve-se uma vez em Between Revolutions, insinuando a tomada do poder pelos fundamentalistas islâmicos que se seguiu ao promissor destronamento do Xá. No entanto, como estes filmes mostraram, até as perdas podem ser confiscadas – deliberadamente roubadas por realizadores que se intrometem nas histórias pessoais de outras pessoas para permitir que sejam recontadas uma vez mais. Para serem ouvidas, observadas, compreendidas e, acima de tudo, nunca esquecidas. Esta é, afinal, a nossa maior guerra e a nossa maior revolução.
Petra Chaloupková
* Landshaft e Between Revolutions integraram a Competição Internacional do Porto/Post/Doc.
Querido Victor,
Terá a revolução por vir o rosto e a voz de mulheres? E o cinema, continuará a ser o gesto provocador de uma ideia de um futuro revolucionário? Terão as imagens em movimento ainda a sua potencialidade inaugural de transformar o real?
Between Revolutions, de Vlad Petri, imagina um diálogo sob a forma epistolar entre duas mulheres – Zahra, iraniana, e Maria, romena – para mostrar a revolução iraniana, de 1979, e a revolução romena, de 1989. Zahra e Maria conhecem-se, na década de 1970, na Universidade de Medicina de Bucareste. A iminência da Revolução Islâmica é a causa da sua separação geográfica, com o regresso de Zahra ao Irão para, junto do pai, fazer parte da luta contra a ditadura do Xá. No entanto, o vínculo entre elas prevalece no tempo sob a forma da palavra. Escritas por Lavinia Braniște, uma importante escritora romena contemporânea, as cartas narradas em voz-off por Victoria Stoiciu e Ilinca Hărnuţ são uma ficção criada a partir de relatórios da polícia secreta romena e da poesia de Nina Cassian e Forugh Farrokhzad. Sem contradição e sem traição, a ambiguidade gerada pela ficção das cartas dota a imagem de uma abertura à revelação, sempre latente ao longo do filme, do real trespassado por confissões, esperanças, desilusões do quotidiano pessoal e coletivo de Zahra e Maria.
A matéria-prima do filme são apenas imagens de arquivo provenientes das sociedades romena e iraniana durante esse período histórico. Preservando a singularidade estética do material, Petri une a ficção da voz-off à dimensão do visível, ordenando a última num exercício de contraste e espelhamento através da montagem. Na Roménia, os rostos a preto e branco de mulheres, no Irão, a paisagem a cores das ruas povoadas por um desejo de mudança espalhado em folhetos pelas mãos de mulheres. As imagens dobram-se ao tempo e a sua singularidade é transformada pela sua passagem, dissipando os contrastes inicialmente visíveis de duas revoluções separadas temporal e geograficamente. Em 1979, queimava-se nas ruas do Irão uma bandeira dos Estados Unidos da América. Em 1989, queimava-se um retrato do ditador romeno Nicolae Ceaușescu. Embora as revoluções tenham conduzido as duas sociedades em direções opostas, a ocidentalização da Roménia e a islamização do Irão, a luta de uma espelha-se na luta de outra, porque ambas afirmam a luta contra toda e qualquer forma de ditadura e opressão. Algures no filme, relembrou-mo a Petra, ouve-se “As vitórias podem ser confiscadas”, assim como também o podem os rostos das imagens e das revoluções, no filme uma e a mesma. À medida que o projeto revolucionário se concretiza em ambos os países, os rostos das mulheres, índice da possibilidade de um futuro outro, são substituídos pela perpetuação do homem como símbolo e figura representativos da história. Todavia, no futuro ecoarão as palavras da revolução do passado e do presente por cumprir – Zan, Zendegi, Azadi!, em português, Mulheres, Vida, Liberdade!
Com o trabalho de montagem, Petri, em conjunto com Dragos Apetri e Cătălin Cristuțiu, conhecido montador de Radu Jude, opera uma articulação do visível com o legível. A possibilidade de legibilidade da história através das imagens permite ao arquivo inscrever-se no presente para se projetar, ainda que especulativamente, no futuro. Neste sentido, Between Revolutions é um filme de imagens dialécticas, no sentido benjaminiano, segundo o qual “não basta dizer que o passado ilumina o presente ou que o presente ilumina o passado. Uma imagem, ao contrário, é aquilo no qual o Outrora reencontra o Agora num raio para formar uma constelação”. Em Between Revolutions, a montagem, mais do que um procedimento formal e epistemológico, segue um princípio ético, no qual está contido a potência de um olhar ético-político. A sincronia das imagens com a narração voz-off, num gesto silencioso de comunicação entre texto e imagem, abre um espaço intermédio de aproximação entre-duas revoluções e mulheres, entre-duas geografias e temporalidades. A dicotomia epistémica entre o dizer ficcional da narração e o mostrar das imagens documentais confrontam-se no filme para se reconciliarem pelo e no cinema.
Se a crença no poder do cinema de reconciliação e transformação não estivesse sempre em perigo, talvez nos fosse possível imaginar o filme sem a dimensão de factualidade que Petri lhe acrescenta no final para dar a ver aos mais céticos que existe um fundo de verdade na história de Zahra e Maria, na história de mulheres que lutaram, lutam e continuarão a lutar na esperança de um futuro outro, no qual, antes de mais, o amor é o mais belo e verdadeiro ato de resistência.
Dessa crença não se quer livrar o Porto/Post/Doc.
Ao Chris, ao Miguel, à Petra, ao Pierre, à Rita, ao Victor e ao Xavier, obrigada pelo encontro e partilha deste amor e crença no cinema,
Cátia Rodrigues
* Between Revolutions integrou a Competição Internacional do Porto/Post/Doc.