Profetas, disse eu, uma coisa do mal. Profetas ainda, se ave ou diabo. Por aquele céu que se curva sobre nós. Por aquele Deus que ambos adoramos. Diz ao espírito cheio de pena dentro do distante Éden. Abraçará a donzela santa a quem os anjos chamam Lenore. (…) Ardentemente desejei o amanhã que em vão procurei apanhar. O fim do pesar dos meus livros. Pesar pela Lenore perdida. Pela única e radiante donzela. A quem os anjos chamam Lenore. Aqui sem nome para sempre.
Edgar Allan Poe in “O Corvo“
Johnny (Christopher Walken) desperta de um longo sono, de um coma de cinco anos, saberemos depois. É o rosto do Dr. Sam Weizak (Herbert Lom) que o seu olhar encontra, quando acorda. As primeiras expressões do protagonista são de incredulidade, por não haver ferimentos visíveis, nem ligaduras, num corpo que esteve envolvido num acidente de automóvel tão violento. Na última aula antes do acidente, Johnny tinha pedido aos seus alunos para lerem Sleepy Hollow; é sobre um professor perseguido por um demónio sem cabeça, dissera-lhes. A lenda de Sleepy Hollow participa de uma colecção de contos góticos do início do século XIX, da autoria do norte-americano Washington Irving, que mantém a popularidade, intensificada durante o período do Halloween, em especial devido ao personagem do Cavaleiro sem Cabeça, decapitado na guerra da independência dos EUA e que regressa, então, do vale do sono, para atormentar a comunidade e um professor peculiar. A Disney nos anos 40 e mais recentemente, em 1999, Tim Burton voltaram ao conto e às personagens, sendo que nesta última versão, é Christopher Walken quem interpreta o cavaleiro sem cabeça.
Debra Hill, companheira e produtora de John Carpenter desde o incontornável Halloween (O Regresso do Mal, 1978), foi quem produziu The Dead Zone (Zona de Perigo, 1983), que Cronenberg realizou a partir do romance de Stephen King e de um guião que não escrevera, na sua primeira parceria com Dino de Laurentis. Cronenberg detestou o guião de Stephen King e as seguintes quatro versões, que o cineasta considerou que empurravam o filme para as “direcções erradas”. Foi Debra Hill quem desbloqueou o projecto, ao convocar o guionista Jeffrey Boam. Na abordagem de Stanley Donen, autor de uma das versões anteriores, “nada de estranho se iria mostrar no ecrã”, veríamos apenas “Johnny a experienciar a visão”; pelo contrário, como nos confirma Boam, Cronenberg pretendia “assistir à história”, dar a vê-la, “através dos olhos” do protagonista. Cronenberg diz ter-se libertado da concepção de “auteur” com que era carimbado, ao mostrar-se “confiante de que faria uma versão de The Dead Zone que o satisfaria, que passaria a ser dele”, mesmo sem a ter escrito, mas onde pode introduzir, por exemplo, a influências das ilustrações de Norman Rockwell, muito adequadas ao frio, à neve e ao puritanismo de New England. O filme foi apenas um sucesso razoável, mas é ainda considerado a melhor adaptação de uma obra de Stephen King; apesar do cineasta afirmar “que muito do livro foi mandado fora”. The Dead Zone encontrou o tom certo e aproximou o trabalho do Cronenberg do mainstream, até pela possibilidade de trabalhar com actores como Christopher Walken, Brooke Adams e Martin Sheen.
Ainda antes do acidente, Johnny e a sua Lenore – Sarah (Brooke Adams), experimentam a vertigem da montanha russa, na afirmação da predisposição humana para o perigo, um simulacro para o mergulho no sono profundo. Depois de despertar, Johnny confidencia ao médico que se passaram cinco anos, para ele é como se fosse o dia seguinte àquele momento em que recomendou Sleepy Hollow aos seus alunos. É o estabelecimento do lapso entre a cronologia e um outro tempo, o tempo vivido. O protagonista viverá obstinado com o vai e vem do tempo e no leito da mãe assistirá ao retorno da mulher moribunda à sua infância: ela pede-lhe para ser um bom rapaz e deixar as botas à entrada, para não espalhar neve pela casa. Algum tempo depois, o professor pedirá a uma das suas alunas a leitura de um fragmento que depois perceberemos tratar-se do conto popular A Bela Adormecida: “Mas em vez de morrer, ela cairá num sono profundo que durará cem anos”. Esse percorrer do tempo que se concretizará sob a forma de visões, definem a transformação do protagonista, entre a regressão para algo primitivo e uma nova aptidão que o aproxima dos leitores de mentes de Scanners (1981), que o médico sintetizará: “ou possui uma capacidade humana muito nova ou muito antiga”.
As visões de Johnny começam ainda na cama do hospital, depois de agarrar o pulso de uma enfermeira. No contracampo da enfermaria, vemos brinquedos que ardem e uma criança a gritar. No regresso ao enquadramento de Johnny permanece um vestígio de fumo. Ao longo da sequência, Cronenberg explicitará a ideia: depois de Johnny dizer à enfermeira que a casa dela estava a arder com a sua filha no interior, o fogo “invade” a enfermaria. Mais tarde, no contacto com o pulso do médico, Johnny receberá imagens de guerra: explosões e pessoas que procuram escapar, por entre as ruínas, em carroças puxadas a cavalo. No fim da sequência, um rapaz é colocado a salvo, entregue pela mãe. É a história da infância do Dr. Weizak. As visões do protagonista são apresentadas como sequências devedoras dos dispositivos da literatura e do cinema, ao encaixarem fragmentos extraídos de elipses, de saltos no tempo e no espaço.
Se o arquétipo de Frankenstein é recorrente na obra de Cronenberg, em The Dead Zone, talvez pela tentativa recente do cineasta de adaptar o romance de Mary Shelley, a personagem materializa-se na forma como Walken se movimenta, próximo de Boris Karloff na versão de 1931, de James Whale.
A narrativa move-se em meio rural, puritano e devoto a Deus, em New England, com “personagens simples e arquetipicamente simpáticas”, algo novo para Cronenberg que até então tinha situado as suas histórias em ambientes urbanos, onde a violência e a sexualidade se apresentavam à “superfície”, sendo que em The Dead Zone são colocadas numa latência, como sintomas de “algo muito reprimido, contido e frustrado”. Johnny, que até então tivera uma existência vulgar, depois do acidente vê “desenvolver uma crescente sensibilidade”, que o força a abandonar “a vida anterior”: “a namorada, os pais, a cidade em que ele vivia, a escola em que ensinou arte, tudo desaparece de súbito”. O tema do acidente reitera-se, de filme para filme, como propulsor de uma transformação, por norma orientada pela ciência. Pelo meio desta transformação, dessa capacidade apreendida por Johnny, ele está a tentar, a exemplo de outros protagonistas de Cronenberg, reposicionar-se, num novo enquadramento. De súbito, ele apercebe-se que é um “alien”, que tem “as sementes para ser um visionário”, mas como ser humano recebe essa aptidão não como um “talento”, mas como uma “maldição”, “algo insuportável”. O protagonista recebe a visita do Xerife George Bannerman (Tom Skerritt), que lhe pede auxilio para desvendar uma vaga de crimes, pois ele deve usar o dom com que Deus o abençoou. Johnny protesta e pergunta, “uma bênção? Sabe o que Deus fez por mim? Ele atirou um camião enorme para cima de mim. Atirou-me sabe-se lá para onde durante cinco anos”. Já depois da saída do xerife, o pai de Johnny comenta que todos aqueles crimes ocorreram durante o coma dele, como se houvesse uma relação entre os eventos.
Se o arquétipo de Frankenstein é recorrente na obra de Cronenberg, em The Dead Zone, talvez pela tentativa recente do cineasta de adaptar o romance de Mary Shelley, a personagem materializa-se na forma como Walken se movimenta, próximo de Boris Karloff na versão de Frankenstein (1931) de James Whale: Johnny caminha como uma criatura desarticulada, provinda da herança de um projecto cientifico, do sono profundo de cinco anos. Johnny acede a auxiliar o Xerife Bannerman e ao segurar a mão morta da mais recente vítima assiste ao prelúdio do assassinato como uma história, como um filme em flashback, com imagem e som. Depois, à medida que essa pequena narrativa avança, Cronenberg coloca Johnny dentro da história, a assistir ao seu desenrolar, no interior do enquadramento: o seu corpo invade o quadro como o fogo na enfermaria na primeira visão, em mais uma mistura das imagens de duas narrativas sobrepostas (deslocadas do tempo e do espaço), como em Videodrome, em que se combinava a “realidade” do protagonista com o seu delírio. Johnny dentro do quadro, assiste, então, ao assassinato e à revelação do seu autor. No entanto, a reacção de Johnny insinua a sua responsabilidade no evento, a culpa de nada ter feito para impedir o crime. A identificação da verdade ao tocar nos vários personagens começa a revelar-se um fardo demasiado pesado para o protagonista, como o portador de um mecanismo que atrai toda a maldade do humano.
Johnny relata que na última visão, no episódio do afogamento das crianças, havia algo que ele não conseguira ver, uma zona em branco, a “dead zone”, como um close-up sem definição, o fragmento de um plano que se tenta montar dentro de uma narrativa.
Johnny confidenciara ao pai, que quando a magia acontecia (as profecias), parecia-lhe estar a morrer por dentro. Perante os relatos de dores de cabeça cada vez mais presentes, o médico confirma que o caso de Johnny encaixa no padrão de casos semelhantes: à medida que as visões ficam mais fortes, o corpo enfraquece, como se o processo lhe estivesse a sugar a vida. O Dr. Sam Weizak procura convencer Johnny a voltar para a clínica na tentativa de reverter a transformação, mas o protagonista resiste, o que evidencia que em The Dead Zone o médico não é o habitual e dominante cientista, pois apenas assiste e documenta o processo. Cronenberg indica que os cientistas dos seus filmes anteriores, “mesmo estando ausentes”, a sua “influência permanece”, sugerindo que em The Dead Zone “Deus talvez seja o cientista cujas experiências nem sempre funcionam”: “Johnny Smith é uma das suas experiências falhadas”. O protagonista ambiciona barricar-se em casa, impassível, consciente do envolvimento numa missão particular, como um profeta com dificuldade em assumir a tarefa. Tem consciência de que embora pareça um “homem comum”, deixou de o ser, depois de ter “exposto a sua vida”: ele procura encontrar outra vida que “acomode aquelas capacidades”. Progressivamente, as “visões envelhecem-no e aproximam-no da morte”, como uma doença que deve suportar por necessidade de cumprir um projecto, uma missão. A presença de um tom melancólico, que desde o princípio do filme está projectado na paisagem invernosa, contamina o rosto de Walken, que passa a ser o “assunto do filme”: “todas as coisas estão no seu rosto”, confirma o cineasta.
Na antecâmara do terceiro acto, há um diálogo que coloca questões decisivas quanto ao desfecho da narrativa. Johnny começa por questionar o médico: se ele tivesse oportunidade de liquidar Hitler, sabendo o que a Historia nos mostrou, ele fá-lo-ia? Enquanto o Dr. Sam Weizak fica a cogitar, Johnny relata que na última visão, no episódio do afogamento das crianças, havia algo que ele não conseguira ver, uma zona em branco, a “dead zone”, como um close-up sem definição, o fragmento de um plano que se tenta montar dentro de uma narrativa. Este buraco é um alçapão que indica que o protagonista não só consegue ver o futuro, como alterá-lo, promover-lhe transformações, numa metáfora do valor das imagens, das suas possibilidades estéticas e de significação. O peso do poder das profecias é, então, incrementado, nessa faculdade de alterar a ordem do mundo, que contribuirá para a crescente melancolia da personagem.
A acompanhar a perseguição do xerife, a câmara de Cronenberg encontra um sótão e detêm-se num cavalo de madeira de baloiço, um brinquedo de infância do assassino, que está cingido por um coldre e um revólver, já não um brinquedo, mas uma arma de fogo carregada, como veremos nessa sequência. É um intróito para o cineasta, nesta América interior, colocar a ênfase do seu discurso na exposição de uma História de violência, uma herança documentada pelo western, na associação da imposição da força, na expansão do território, com a arma numa das mãos e a Bíblia na outra.
Johnny fora apresentado ao candidato a senador Greg Stillson (Martin Sheen) por Roger Stuart (Anthony Zerbe), pai da criança que o protagonista salvara do afogamento, antecipado pelas imagens das suas visões. O reencontro de Johnny com o candidato acontece mediado pelo televisor. Stuart aconselha, então, Johnny a recensear-se para votar contra Sheen, que se afirma o candidato do povo, numa designação que nos recorda o político de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, tangente que sai reforçada na sequência do comício. Ao recebermos as imagens, na relação com o diálogo entre as personagens, reforça a ideia de que o meio é a mensagem, de que aquelas imagens emitidas pela televisão insinuam uma possibilidade de conspiração, como um instigador de violência.
Cronenberg diz-nos que é necessário nomear “arte e propaganda como pólos opostos”. Se a predisposição for a de impregnar o filme com “proposições marxistas, fascistas ou qualquer outra teoria política que queremos apoiar”, estamos a impor um exercício de propaganda, o que significa que “não estamos a fazer arte”. Por isso, quando o cineasta começa a trabalhar num filme procura “limpar a cabeça de todas as considerações intelectuais do seu tempo”, para promover o “contacto com algo mais primordial, intuitivo e instintivo”. Num diálogo continuado com Scorsese e o seu cinema, Cronenberg afirma que o italo-americano “lida com o bem e o mal em termos proto-católicos”. O cineasta canadiano não “consegue acreditar no diabo”, nessa entidade que muitos projectam no humano de um “ser puramente mau”: “o seu demónio é que todos as perspectivas o encantam”. As pessoas têm um interesse, uma curiosidade genuína no acto de matar e, de certa forma, é a “experiência humana última”. Por isso, as pessoas são “fascinadas pelo período nazi”. De maneira abrupta, instalou-se “uma sociedade que se sustentou numa completa reorganização da ordem moral”, reduzindo as pessoas a meros “objectos”, nos quais se poderia experimentar, torturar, matar, fazer desaparecer. Tratou-se de uma gigantesca máquina administrativa, mas que foi “inventada pelas pessoas”, numa demonstração do que somos capazes.
Se no comício de Taxi Driver assistíramos à frustrada tentativa de De Niro assassinar o candidato, em The Dead Zone a aproximação de Walken a Martin Sheen é muito idêntica, mas o protagonista apenas pretende cumprimentá-lo. Esse aperto de mão é efémero, mas permite a Johnny aceder a uma sequência do futuro, que prognostica o deflagrar da Terceira Guerra Mundial. As palavras e as acções de Sheen nessa sequência são conduzidas por um destino que o candidato diz dever cumprir, como uma profecia feroz saída de um pesadelo. Os restantes intervenientes, representantes das várias instituições que procuram balançar os poderes, nada podem e Martin Sheen rejubila, numa associação de poder e crença religiosa: “Aleluia, os mísseis já estão a voar!”. Na sequência final, Cronenberg convoca os fantasmas do assassinato de políticos ao colocar Johnny no balcão da sala de comícios, a perspectivar o ângulo do sniper, como Lee Harvey Oswald, o atirador da versão oficial do assassinato de JFK em Dallas. Mas, o atirador e mártir Johnny conseguirá garantir que o candidato Sheen não terá futuro, mesmo falhando o alvo, ao espreitar e ao dar a ver a “dead zone” de um plano impresso na capa da revista Newsweek.