Os dois walshianos Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa trocam impressões sobre o mais recente filme de David Fincher que, após uma breve passagem pelas salas comerciais, caiu recentemente na “grelha” da Netflix. Filme estranho e desbragado, The Killer (O Assassino, 2023) serve para os walshianos organizarem uma crítica epistolar que percorre a obra do realizador norte-americano de modo a entender de que forma este novo filme ilumina e torpedeia as próprias fundações dessa máquina-cinema chamada David Fincher.

Allô Ricas,
Como vais? Espero que bem. Olha, lembrei-me de iniciar uma correspondência em torno do mais recente Fincher, lançado em streaming há relativamente pouco tempo, depois de uma passagem algo discreta pelas salas de cinema. Devo começar por dizer que, ao contrário de ti, e como não tenho hábito, vi o filme online. Não sei se tal facto determinará algumas impressões que queria partilhar contigo, mas acho sinceramente que a experiência em sala só tornaria ainda mais “viciante” a viagem do filme.
Queria começar por te dizer que parti para este The Killer sem grandes expectativas. Logo à cabeça, irritei-me à brava logo, logo com a possível apropriação (desconhecendo eu a fonte principal, em banda desenhada) de uma das minhas grandes paixões dos meus tempos de iniciação cinéfila: o exuberante e esfuziante The Killer (O Assassino, 1989) de John Woo [realizador acabado de regressar ao cinema de acção com o promissor Silent Night (Silent Night: Vingança Silenciosa, 2023)], protagonizado pelo inigualável Chow Yun-Fat. O trailer também não me entusiasmou, mesmo que a colagem a Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967), de Jean-Pierre Melville e com Alain Delon, me parecesse bem mais evidente do que a homenagem escondida ao grande cineasta de Hong Kong. O que retirei do trailer foi, em suma, a sensação de um filme de fórmula já por demasiadas vezes testada e, nalguns casos, originadora de um número mais do que suficiente de sucessos fílmicos. Para quê voltar à intriga ensimesmada e cool do assassino a soldo against the world? Tinha ainda no espírito o fabuloso The Mechanic (O Mecânico, 1972) de Michael Winner, e com Charles Bronson, quando soltei esse desabafo para os meus botões, ao jeito de um “Here we go again…”.
No filme “derivativo” ou “redundante”, Fincher reencontra a sua origem. E, quiçá, a possibilidade de voltar a ser – palavra perigosa – “original” na sua frieza pós-humana.
Depois de muito ter lido sobre o filme e de, agora, finalmente o “percorrer”, devo dizer que estava rotundamente errado: sim, a colagem existe, em relação à obra-prima de Melville e ao filme de Winner (sobretudo a primeira longa cena), mas isso não significa que saiba a requentado fílmico, nem tampouco se apresenta desfasado daquilo que tem sido a matriz do cinema de Fincher: personagens mais ou menos robóticas à mercê de um ou de um conjunto de erros humanos, demasiado humanos… E, acima de tudo, Fincher tem burilado, com o prazer sádico de um psicopata assassino ou de um ardiloso assaltante de bancos, uma linguagem fílmica em que “mais é menos”, em que o sentido mais profundo se descobre ou surpreende mais ao nível da pele, polida e luzidia, de um cinema maquinal. Uma espécie de Bresson da era computacional, de Zuckerberg e quejandos. Ora, nesse sentido, o que à partida se parece com uma escolha temática e formal demasiado óbvia, demasiado evidente, acaba por se revelar o desafio maior e mais excitante do seu cinema em muito tempo: agora que as condições foram criadas, Fincher põe-se à prova num “jogo” em relação ao qual não só ele conhece bem as regras como inventou alguns dos seus comandos.
Portanto, temos, aqui, Fincher a se reparametrizar, reequacionando-se numa espécie de elogio intra e extrafilme à redundância, afinando a maquinaria com poucos elementos e quase todos reduzidos à sua inexpressividade mais fria e cool: um assassino e o seu mundo/modo interior (protocolar, robótico, qual puro software) em choque com a fealdade e indecência do mundo empresarial e seus “patrões”. E The Smiths, a passar quase em loop, de princípio ao fim. A banda perfeita para expor a contradição entre a letra e a música, entre o interior e o exterior, entre “o programa” e a “performance”.
No filme “derivativo” ou “redundante”, Fincher reencontra a sua origem. E, quiçá, a possibilidade de voltar a ser – palavra perigosa – “original” na sua frieza pós-humana (é dele ou também é nossa e nos diz tanto?).
Mas diz-me tu o que pensas disto tudo que não quero esgotar assunto a propósito deste “Kilas, o mau da fita”.
Um abraço bem intencionado mas cheio de malware,
LM

Oi Luie-luie,
Como bem sabes, vi o filme antes deste cair nas malhas digitais e vi-o em sala, no grande ecrã, numa sessão do multiplex mais próximo de minha casa (com pipocas e tudo!). E quis escrever sobre ele, mas a vida não deixou. Aliás, comentei contigo que antes de ter o texto escrito já tinha várias possibilidades de título. Uma delas: “Que estranho caminho tive de percorrer para chegar até mim”. Era um título algo clickbait que combinava Robert Bresson com Pedro Chagas Freitas – o sacrilégio move montanhas. E, agora que penso nisso, acho que é essa a graça de The Killer, de David Fincher (não o do John Woo). Talvez o cinema do realizador americano nunca se tenha aproximado tanto da ideia bressoniana do intérprete-modelo do que através do papel e da personagem (sem nome) de Michael Fassbender.
The Killer é, então, um filme que se funda num paradoxo tão divertido quanto macabro: humanizar o cadáver através da autópsia, dar ânimo à máquina a partir da sua avaria.
A total impassividade dele é perturbadora (e vem sublinhar a dimensão algo psicótica da abordagem bressoniana). E é tão mais perturbadora quando todo o filme se constrói em torno de um erro: afinal a máquina de matar, o homem-ferramenta que opera o gatilho do carrasco, também se engana. O “turning point” do guião de Andrew Kevin Walker (que aparentemente adapta uma novela gráfica pré-existente) corresponde a uma falha: ele não acerta no alvo e isso inicia um protocolo de apagamento a que ele escapa por mera intuição. Tudo, no filme, acontece por causa desse erro (e dessa intuição) e – essa é a surpresa do filme – é esse erro que permite um escape, que subitamente abre uma brecha na espiral de mortandade em que vive a personagem. Nesse sentido, outro título à Chagas Freitas seria “Prometo falhar (o alvo)”.
The Killer é, então, um filme que se funda num paradoxo tão divertido quanto macabro: humanizar o cadáver através da autópsia, dar ânimo à máquina a partir da sua avaria. Toda a estrutura narrativa se centra num entendimento do mundo onde não há espaço para o percalço, para o improviso, para as areias na engrenagem. E, eis senão quando, tudo descamba quando a bala acerta onde não devia e deixa vivo quem se suponha que morresse. Se reparares, acho que não é por acaso que toda a primeira sequência do filme se faz numa total imobilidade onde se estabelece a personagem, o recorte da janela que a separa do mundo, e o mundo lá fora. Essa trilogia (indivíduo, ponto de vista, alvo) é, a meu ver, montada e desmontada ao longo do filme.
Para Fassbender há que evitar as “redundâncias, as redundâncias, as redundâncias” – assim mesmo, três redundantes vezes – e isso passa por fazer “redundar” o indivíduo com o alvo através do ponto de vista. Só que, por momentos a janela fecha-se, o tiro faz-se através de um vidro e, como a luz, sofre uma refração e desvia-se. Posto doutro modo, há uma desalinhamento entre o olho e o objeto, como numa ilusão de ótica. Que essa “ilusão” corresponda ao mais cinematográfico dos elementos arquitetónicos – a janela – não é, mais uma vez, coincidência. Fassbender falha por “intervenção divina”, leia-se, por intervenção do realizador (e sim, no cinema de Fincher, deus e realizador são sinónimos). Ele mata uma inocente para que se possa salvar, para que, por fim, encontre a sua “way out”.
Visto assim, The Killer transforma-se numa espécie de perverso guia de autoajuda. Aproveita os limões que a vida te dá (a morte de uma inocente) e faz limonada (isto é, faz um massacre). Achas que no final do filme o Fassbender está a beber o quê?
Abracinhos e cuidado com os “Espasmos d’Alma” e as quebras de tensão.
Ricky

Olá, olá,
A tua leitura de Pedro Chagas Freitas + Robert Bresson é verdadeiramente inspiradora. Que texto seria! Pronto, temos de nos contentar com esta correspondência transviada por um editor-pirata qualquer que a queira colocar a flutuar no ciberespaço – espero mesmo não estarmos a ser “escutados”, mas… Mas continuemos a leitura conjunta do “Killas”: gosto, verdadeiramente, desse título (não estou a ser irónico), “Prometo Falhar”. O que o filme do Fincher – e se calhar grande parte da sua obra, se tivermos presentes obras como The Game (O Jogo, 1997) e The Girl with the Dragon Tattoo (Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres, 2011), ambas excelentes – promete é: que não haverá quaisquer falhas. A longa sequência de abertura é de um artifício exuberante a este nível: com relativamente poucos elementos, Fincher constrói um extraordinário, para me armar em exegeta deleuziano, “bloco de tempo”. Um bloco luzidio e cool como um produto Apple. Mas depois… vem a mancha e a marcha intempestiva rumo a uma algo vertiginosa espiral vingativa.
O conceito áudio/visual no cinema de Fincher, creio, nunca foi tão poderosamente “do cinema”. E aí ele não falha, bem pelo contrário: o Fincher é uma máquina de precisão, talvez afim de um Stanley Kubrick, que explora as brechas possíveis (e os maus cheiros também) num universo habitualmente envolvido em celofane. Ora, o grande conceito de imagem e som, de tempo e espaço, está presente em todo o bloco inicial: o diálogo interior contra as circunstâncias físicas do protagonista e da sua disciplina – e disfarce – algo “absurdos” – até o sentido de humor é frio ou, usando uma palavra tua, cadavérico, mas está lá, finamente vertido. Há uma coreografia entre ideias e gestos, movimentos ritualísticos, seguindo a lógica de um relógio suíço. E depois há a playlist, o metrónomo pop: The Smiths. Talvez também esteja aqui o primeiro “desacordo” quase burlesco: um assassino que ouve The Smiths obsessivamente – é que começamos a pensar “isto pode não resultar lá muito bem…”
A sua impassividade choca: ele é o mais modelarmente (à laia de Bresson) anti-empático dos protagonistas fincherianos, mas a verdade é que nos seduz o seu percurso, o seu método, não por ele ser infalível, mas por ser estranhamente tão sofisticado quanto pouco convincente.
A verdade é que a tensão mais “expressionista” nessa sequência joga-se no contraditório, que promete falhar, entre a voz interior e uma externalidade robotizado, glauca, de acções e gestos. Um filme absolutamente “exterior” povoado por uma voz que só existe na cabeça do protagonista, que só existe no subcutâneo (ou será antes na superfície cutânea, propriamente?) daquilo que vemos. A sua impassividade choca: ele é o mais modelarmente (à laia de Bresson) anti-empático dos protagonistas fincherianos, mas a verdade é que nos seduz o seu percurso, o seu método, não por ele ser infalível, mas por ser estranhamente tão sofisticado quanto pouco convincente. É mesmo como um óptimo livro, cheio de excelentes referências, quite exquisitely done, mas… pertence a esse subgénero subalimentício dos livros de auto-ajuda (construído em tópicos que nos ditam receitas exemplares de vida, como quem passa uma óptima receita de escargot).
O final é marcado por um tique no rosto – Fassbender tem mesmo quantas linhas de diálogo? Diz mesmo, quer dizer, pró-fílmicamente, o quê, ao certo? Nem me lembro bem. O que retenho mesmo dele, do seu rosto – lugar de afecção – é o tique: um filme que começa com uma falha no protocolo, quer dizer, no software, e termina com um glitch no corpo estoirado de um assassino transformado em vingador, em “anti-vírus” do sistema que o criou, que o programou. É possível pensar em filmes de vingança como John Wick (2014), até eventualmente em obras igualmente depuradas e brutas como as de Steven Sodebergh e aí penso mais num título que muito estimas, Haywire (2011), curiosamente também com Michael Fassbender, do que noutro mais óbvio e, a meu ver, ainda mais estimável, The Limey (O Falcão Inglês, 1999). Mas eu acho que The Killer é mesmo Fincher a crack the code do seu próprio cinema: a habitá-lo onde tudo é mais profundo e sensitivo, na superfície cutânea das suas soluções de cinema. De cinema-cinema.
Abraço hipotenso,
Luís Mendonça

Cu cu,
acho que apanhaste precisamente aquilo que estava a tentar explicar de uma forma algo confusa. Embora a personagem marmórea do Fassbender abra pequeníssimas brechas e se transforme a partir delas, a pergunta que se impõe é se o marmóreo do filme também racha e expande além da sua frieza preestabelecida. A tua resposta é boa: a fissura abre-se a partir da tensão entre a impassibilidade dele e o monólogo interior que, estranhamente, curtocircuita o distanciamento cool. A esse esgaçar da exterioridade (através de uma externalidade) junta-se aquilo a que chamas um “desacordo burlesco”, os The Smiths. A estrutura narrativa começa a ceder, aos poucos. E, grão a grão, tudo caminha para uma espécie de abstração quase iconoclasta do filme de “assassino vingativo” (como sabes, também adoro esses dois títulos do senhor Soderbergh).
Essa é a graça de The Killer, perceber até que ponto Fincher consegue, ele mesmo, libertar-se de si, do seu bulldozer estético-narrativo.
Os encontros com cada uma das outras personagens, que funcionam como capítulos progressivamente mais descarnados, expõem a natureza formulaica do guião (e dessas mesmas personagens), sobrando pouco mais que a casca de um cliché ou lugar-comum. Só que Fincher fá-lo de uma forma exaustiva. A ele interessa-lhe desfazer tudo em pó. O que é o encontro com o brutamontes (a personagem chama-se The Brute) senão a afirmação de que ele, cineasta-total, pode fazer uma das melhores cenas de luta das últimas décadas? O que é o encontro com a personagem da Tilda Swinton senão a defesa do poder concentracionário dos rostos e dos diálogos (com Fincher a mostrar que, se quiser, também poder ser tarantinesco)? E o episódio com a companheira (Sophie Charlotte) que outra coisa é senão exibição da versatilidade melodramática do realizador – recorde-se The Curious Case of Benjamin Button (2008) – embora esse seja, a meu ver, o episódio que mais desequilibra a estruturação da personagem e do filme (que, caso não se tivesse percebido, se confundem).
Tudo, no fundo, serve para tentar desequilibrar o edifício de betão. Só que, pela sua própria natureza – ser de betão – o edifício não se desequilibra com tão suaves empurrões. Essa é a graça de The Killer, perceber até que ponto Fincher consegue, ele mesmo, libertar-se de si, do seu bulldozer estético-narrativo. E do mesmo modo que ele, Fincher, não consegue “falhar”, também ele, assassino/Fassbender, é impecável. Ou seja, até que ponto não é a falha ensaiada? Até que ponto não estamos simplesmente a assistir à encenação de um erro como forma de dramatizar a fuga (da personagem, do realizador)? Fincher não acerta em fazer um filme desequilibrado do mesmo que o assassino/Fassbender não acerta em falhar no alvo, porque o alvo é outro (é sair da vida de contract killer), porque o filme desequilibrado é outro (um exercício de estilo para a Netflix). Como se pode dizer que The Killer é um filme “falhado” diante da extraordinária mise en scène da visita ao escritório do advogado, com toda orquestra de movimentações, portas que se abrem e fecham, elevadores, casa de banho, pistola de pregos e gag final? É absolutamente magistral – Fincher e o assassino. Não há falhas, não há erros, é tudo depuradíssimo.
Falhar ou não falhar, eis a questão? Ou melhor, acertar falhando ou falhar acertando, eis o dilema?
Abraço,
Ricardo

Man,
Concordo contigo. Até digo mais: é, provavelmente, o primeiro magistral “exercício de cinema” com assinatura de David Fincher. Este é um realizador que estava, até aqui, amarrado à típica fórmula hollywoodesca “story first”. Não, The Killer é uma proposta tão simples quanto isto: tornar o protagonista um émulo perfeito, estrutural, para todo um cinema, para tudo aquilo que importa numa proposta de cinema deste calibre – o seu esqueleto! Não me interpretes mal: filmes como Girl with the Dragon Tattoo e Gone Girl já apontavam para esse desejo de “reduzir” o cinema ao movimento ou, para usar outra palavra tua, “orquestração” de gestos de personagens ou corpos absolutamente empáticos com esta maneira de organizar o mundo: clínicos/cínicos, precisos, exaustivos e intensos, às vezes brutos (a intensidade e violência libertam a possibilidade de um certo “erótico” no meio de todo este “programa”). A banda sonora metálica, insistente e eerie de Trent Reznor e Atticus Ross é, neste particular, a melhor “crítica” possível a tudo o que se propõe – a tudo o que se apresenta ou tudo o que se exclui.
Ele opera num sentido de absoluta oposição ao drama, adoptando como filosofia de vida mandamentos de alcance dúbio, tais como “não empatizar”. Ora, é isso que tradicionalmente é o cinema, pelo menos o popular, de Hollywood: máquina empática. Fincher contraria exactamente esta lógica, bem por dentro.
Por tudo isto, parece-me que este filme revela um extraordinário domínio sobre a linguagem cinematográfica ou aquilo que, mais subordinado à story, o próprio cineasta tem vindo a experimentar e a testar ao longo do tempo, dentro de uma linha quase bressoniana de redução ao essencial desse cinema-cinema, tal como referi na última mensagem. Ele opera num sentido de absoluta oposição ao drama, nomeadamente quando faz do protagonista um “Killas” implacável, que adoptou como filosofia de vida mandamentos de alcance dúbio (a ironia é sempre finíssima e cortante aqui), tais como “não empatizar”. Ora, é isso que tradicionalmente é o cinema, pelo menos o popular, de Hollywood: máquina empática. Fincher contraria exactamente esta lógica, bem por dentro, inventando uma personagem que opera ao nível estrito da “mecânica”, como um compasso que raramente se desalinha. E, contudo, o que empatiza é isso: o gesto, ritualístico e cerebral, de desempenhar tarefas – não é esta a realização plena do gesto, a tarefa? Não é o erro, até o erro minúsculo, quase imperceptível, como um verdadeiramente vertiginoso acontecimento neste quadro de valores e de práticas?
Quando um dia escrevi sobre Gone Girl (Em Parte Incerta, 2014), penso ter referido qualquer coisa como isto: não há émulo mais poderoso para um investigador académico do que (as personagens de) o cinema de Fincher, onde a um plano necessariamente bem gizado tem de corresponder a possibilidade do risco, que radica num desalinhamento qualquer que pode suscitar algum “sangue e lágrimas” ao argumento original. O “fuck” é o momento em que o autor muda de tese e se “atira”, com o mesmo sentido de rigor, mas “à aventura”, num outro argumento. E aí enfrentará outras questões – a cena da luta, intensa, quase animal, é uma dessas extraordinárias disrupções, tens toda a razão. Os seus filmes acabam por ser sempre sobre a angústia do investigador face ao seu método; sobre o bom investigador ou às vezes o óptimo investigador em distress, mas, de qualquer dos modos, e nunca esquecer, “o bom é inimigo do óptimo”. Ou seja, “Kilas, o mau da fita” ou o perfeito/imperfeito-comme-il-faut robot epistemológico. Uma espécie de ChatGPT apercebendo-se da sua borrada metodológica (“fuck”) e corrigindo o rumo a partir daí. Corrigindo até certo ponto… Porque, como dirão os cyborgs em 2054, “errar também é mecânico”.
Penso mesmo que é um dos grandes filmes de 2023. E tu?
Abraço,
Luís M.

Oi Luís,
Penso que sim, que é claramente um dos grandes filmes que este ano de cinema nos deu. E é tão maior quanto mais se revelam nele as contradições inerentes ao cinema de David Fincher. É o filme que expõe e revela as maquinações internas de uma obra singular (especialmente a partir do filme que marca a absoluta mudança de paradigma na sua obra, Zodiac). Mas fá-lo a partir de um esgaçar dessa mesma singularidade. É, até certo ponto, um momento de cristalização conceptual do adjetivo fincheriano. O que poderá ele fazer depois? Não sei. Mas é curioso que se tenha lançado a fazer The Killer logo depois do estardalhanço maciço que foi Mank (2020, projeto de família que surge na sua filmografia quase como uma encomenda de si para consigo). Como que para demonstrar a si mesmo que ainda tinha mão para o thriller cool, mas surpreendendo-se no processo com a própria mão (e fixando-se nela).
Retomando os domínios editoriais, além de Chagas Freitas, sabes que sou grande apreciador de livros de cozinha. Acho que Fincher é pouco gourmet e a tua referência aos escargot soube-me mal. Claramente um cineasta como Fincher é um defensor das dietas fit. Achas que é por acaso que Fassbender passa o filme a comer hambugers sem pão, ovos cozidos, vai a um “jantar romântico” onde só bebe shots e, quando vai ao supermercado, compra apenas carne picada, wiskey e comprimidos para dormir? Não. Fincher é um realizador hiperproteico e, como os rins dos massudos do ginásio, o seu cinema começa a dar de si. The Killer é o cúmulo de uma obra. A partir daqui é preciso começar a fazer análises regulares e ter cuidado com o excesso de excreções de ureia (na engrenagem).
Abracinhos natalícios,
R. V. L.