O nosso realizador finlandês favorito está de regresso com um novo filme em estreia nas salas de cinema, motivo para vários walshianos se reunirem à volta da sua longa filmografia, repleta de personagens memoráveis. Elogiando o seu estilo característico de um registo formal minimalista e de economia de planos, preenchido por momentos mundanos de um quotidiano de desilusão e alienação, mas também de escapes simbólicos em relação a uma fragilidade existencial, quer seja com a trilogia do proletariado ou dedicada à Finlândia, destacamos algumas diferentes etapas do cinema de Aki Kaurismäki.

Em Crime e Castigo, seu primeiro longa (todo um programa também do que virá), Kaurismäki não nos esconde nada: os móveis do crime, sua crepitação seca, a testemunha chave (que nega tê-lo visto, mas embora no plot que mal começou não adivinhemos o porquê, sendo apenas confrontados à evidência do que é: “não é este o homem”, e basta); inexiste o suspense, a ambiguidade prenhe de drama porque inexiste o limbo de transcendência que perdeu o Raskolnikov para o ave rerum de Sônia e as escaramuças de Porfírio, embora o mistério permaneça candente. Tudo, no filme que inaugurou sua carreira de longas, é cristalino e funcional, e relê Bresson segundo o agenciamento de uma cadeia de planos que me lembra uma linha de produção de sapatos; há, evidentemente, uma certa aura numinosa para os closes que assomam à superfície do plano sob a orquestração da música ‘che subito!”, mas este crescendo desmesurado do rosto humano, que o confirma como sendo o lugar da alma encravado na carne estagnada, é uma exceção que só ratifica a regra do todo: operacional e consequente, como em linha de montagem ou um teorema a que assistimos a demonstração; em sequências chaves, como o do quase-suicídio do policial diante do trem, assoma o inefável da existência, a sua casualidade misteriosa, mas nada é tematizado enquanto tal, encarecido, objeto de: poderia ser um acidente a acontecer para qualquer um. Se admiro intensamente o longa aqui descrito é porque Kaurismäki, um certo discípulo de Bresson, soube tirar da lição do mestre qualquer pátina ou verniz de sublime, e ficamos apenas com os gestos austeros e os cenários de madeira prensada e persiana.
Escolhi este plano, do início (admirável) de Crime e castigo porque, ao contrário da belíssima sequência, saturada de barroco masoquista, com que Fassbinder em In einem Jahr mit 13 Monden (Num ano de 13 Luas, 1978) nos mostrou um matadouro, em Kaurismäki todo o pathos sacrificial está, se não completamente elidido, severamente contido e sobretudo centrado nas consequências, aliás também parafraseando o Bresson de Une femme douce (Uma Mulher Meiga, 1969), que nos mostra que os efeitos devem ser mostrados antes das causas: não vemos os bois sendo mortos, mas os filetes de sangue que encharcam o escoadouro. Esta ênfase, sobriamente teoremática, nas consequências, nas superfícies claras e retilíneas (mesmo quando imundas de sangue) dos cenários, das cabines de telefone e dos corpos dos atores aparenta um tanto o filme a um sonho com ressaibo de sangue coagulado, ou de um hematoma cujo jorro de sangue permanece retesado na parcela de carne que agora habita; poucos realizadores hoje conseguem filmar um autor tão metafísico sem descambar para o melodrama sursum corda, cheio de estertores e gritos sem remissão; de Sternberg a Omirbayev todos contribuíram com seu génio para filmar Crime e Castigo, mas o de Kaurismäki preserva o mistério das almas pelo negativo da da funcionalidade do corpo autômato.
Luiz Soares Júnior

Este momento é o primeiro em que as duas personagens principais de Varjoja paratiisissa (Sombras no paraíso, 1986), Nikander e Ilona, se encontram no mesmo enquadramento, depois de até aí terem estado separados cada um no seu plano, ou pelo campo/contra-campo com que o filme as dividia até aí. Esta proximidade física dentro desta imagem é sinónima também de uma aproximação sentimental entre os dois, que desponta a partir deste encontro. Ele, a trabalhar na sua ronda como lixeiro, encontra-a numa pausa do seu trabalho como caixa de um supermercado; antes tinham-se cruzado também por acaso quando ela repara que ele, ao pagar as compras, estava a sangrar. Perante tanto acaso, ele resolve avançar sobre as dúvidas e convida-a para um primeiro encontro, numa sala de bingo (em que os dois voltam a partilhar o enquadramento). São pequenas coisas, acontecimentos mínimos e mundanos do quotidiano, que Kaurismaki eleva a pequenos milagres, pequenos actos de magia que permitem ver a luz no “desapontamento da vida” (não fosse Kaurismaki confesso adepto de Ozu), especialmente nestes cenários melancólicos do inverno finlandês.
Acima de tudo, este filme, o primeiro da trilogia do proletariado, revela também algo que será comum na filmografia de Kaurismaki, uma dedicação plena à humanidade das suas personagens, figuras anónimas e das margens da sociedade (muitas vezes, os que ficam sozinhos nos bares ou discotecas a ver os outros), anti-heróis que são aqui homenageados, retratados no seu orgulho, desejos e anseios, mas também pela sua impulsividade e distanciamento emocional. Depois do primeiro encontro, o par deste filme irá percorrer diferentes caminhos de uma fuga anunciada, uma aventura minimalista na forma mas que diz tanto sobre a procura de redenção. De poucos sorrisos e poucas palavras, em que o humor também tem o seu papel, não fosse elemento importante na forma de encarar a tal desilusão, estas histórias de amores e desamores tão improváveis como inevitáveis, revelam afinal um romantismo incuravel e contagiante.
João Araújo

No trajeto casa-trabalho, ou trabalho-casa, Iris lê no elétrico. Não lê Dostoiévski ou Flaubert, esse género de autores clássicos cuja referência fica sempre bem em cinema (e o nome/título na capa tende a dar pistas cultas sobre o próprio filme), lê antes um romance barato e escaldante de uma autora americana, Sara Orwig. Lê e, a certa altura, sorri, mostra-se transportada pela vida fervilhante daquelas páginas; uma vida que nada tem a ver com a sua, cinzenta e mecanizada. Entenda-se: a pobre Iris é operária numa fábrica de caixas de fósforos, e em casa sustenta a mãe e o padrasto, que a tratam como uma criada.
O ato da leitura neste plano de Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990) surge então como o legítimo escape da trabalhadora que assim passa uma rasteira à solidão, entregando-se a breves percursos coloridos, no interior da sua mente, como quem cria uma alternativa à angústia existencial pintada por Kaurismäki. E porém, Iris é, ela própria, uma espécie de livro fechado, um corpo-fósforo sem chama, que um dia se acende e compra um vestido novo, deixando-se levar numa dança de baile, qual gesto imprudente quiçá replicado de uma personagem dos tais romances cor-de-rosa que a absorvem nas viagens de elétrico.
Inês N. Lourenço

Um homem sonolento, de olhos cerrados, e uma mulher que leva aos lábios o cigarro que segura entre os dedos: à noite, lado a lado, no carro, na cidade de Helsínquia. São eles Koistinen e Mirja, em Laitakaupungin valot (Luzes no Crepúsculo, 2006), o filme que encerra a trilogia de Kaurismäki que se iniciou com Kauas pilvet karkaavat (Nuvens Passageiras, 1996) e Mies vailla menneisyyttä (O Homem sem Passado, 2002). A solidão visita (ou deverá dizer-se habita?) Koistinen, um guarda noturno que labora num centro comercial, cuja rotina, vestida de monotonia e melancolia, se limita ao essencial – a esperança e a ambição que carrega de construir o seu próprio negócio é, logo à partida, desprezada e aniquilada pela sociedade e pelo capital. O ponto de rutura acontece quando Koistinen conhece a cativante Mirja, que recorre ao seu poder de sedução para, sorrateiramente, fazer deste homem solitário um bode expiatório para o plano criminoso engendrado pelo grupo do qual é cúmplice.
No exercício de destacar um plano, isolo aquele que me parece ser a súmula dos opostos que atravessam o filme. Na figura feminina de Mirja, observamos o semblante que ilustra a sua frieza, dissimulação e satisfação depois da missão cumprida – colocar uma substância química na bebida de Koistinen -, que a aproximaria de cumprir o seu propósito. Na figura masculina, como resultado da ação anterior, observamos a alienação, a fragilidade e o corpo quase derrotado, simultaneamente enquanto reflexo da sua condição existencial. Também visualmente e esteticamente, o plano captado ilustra, na plenitude, o universo cinematográfico de Kaurismäki: o minimalismo, a composição esquemática e simétrica, a vibrante paleta de cores e a atmosfera nostálgica. Quem mais senão o cineasta finlandês?
Beatriz Fernandes