A primeira longa-metragem em mais de trinta anos de um dos realizadores mais celebrados do cinema espanhol, e apenas a sua terceira de ficção (a primeira em mais de quarenta anos), iria inevitavelmente carregar o peso das expectativas e de uma história cinematográfica preciosa. As duas obras icónicas, El espíritu de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973) e El Sur (O Sul, 1983), de uma riqueza imagética e plenas de simbolismo e de metáforas sobre a Espanha do século passado, são também duas obras em diálogo com o cinema e o seu poder de contar histórias através de imagens duradouras e assombrosas, e com múltiplos significados. No novo filme de Erice, Cerrar los ojos (Fechar os Olhos, 2023), a ligação ao cinema está presente, desde logo, porque o seu protagonista é um realizador, mas não é tão directa a relação ao cinema como espaço de ilusão – pelo menos à primeira vista – com a sua abordagem de tom mais realista sobre a representação do quotidiano contemporâneo. Aos poucos, porém, o cinema como arte ligada à memória e à tentativa de esticar o tempo das imagens irá também sobressair.

O filme começa de forma surpreendente com uma sequência quase mágica que parece como se fosse um filme de Erice perdido no tempo: em 1947, numa mansão nos arredores de Paris, um homem velho, rico e solitário (e mal de saúde, iremos descobrir), recebe um outro homem misterioso, que é afinal um detective privado. O mais velho espera contratar o detective para descobrir o paradeiro da sua filha desaparecida ainda em criança. Os movimentos de câmara e os enquadramentos são rigorosos, o ambiente ligeiramente misterioso e sombrio, um pedaço de cinema que parece de outra época. A surpresa revela-se quando descobrimos que este é um filme dentro de outro filme, o último protagonizado por Julio Arenas, o actor que interpreta o detective, e que desapareceu entretanto sem deixar qualquer rasto. O que vimos foi afinal uma das duas sequências existentes de um filme inacabado, de 1992, que é agora revisitado por Miguel Garay, o realizador desse filme e por uma repórter de televisão, que quer usar essas imagens para um especial de investigação sobre o desaparecimento misterioso do actor (e um dos melhores amigos de Miguel).
Ao evocar também o legado dos filmes anteriores de Erice, ao colocar em causa uma ligação ao passado, a nostalgia revela-se como uma espécie de crise, não de identidade, mas de procura de propósito e sentido pessoal do realizador, alter-ego de Erice.
A passagem do filme de 1992 para o presente, de um olhar meticulosamente construído e simbólico para um tom mais naturalista e repleto de objectos quotidianos, da película para o digital, do universo dos filmes anteriores de Erice para este novo retrato contemporâneo e mundano, significa enfrentar um choque de diferentes realidades. O contraste com o estilo visual dos filmes anteriores de Erice, de imagens que se multiplicavam em diferentes sentidos, cuidadosamente pensadas, com um sentido visual despido e quase trivial deste novo filme chega a ser desconcertante, algo que é ainda mais sublinhado pelo próprio Erice ao usar o filme dentro do filme, mostrando o contraste dentro do próprio filme. É uma linguagem visual muito mais próxima da contemporaneidade de Almodóvar em certos filmes, até como nesta primeira parte do filme a linguagem televisiva se intromete, com as imagens gravadas em estúdio artificial e os planos aproximados de rostos.
Este novo filme é também muito mais narrativo, na perseguição das peças do puzzle do mistério do que terá acontecido a Arenas, com a viagem de Miguel por Madrid a revelar cada vez mais diferentes partes do seu próprio passado, que este terá talvez tentado esquecer, despontando lentamente uma nostalgia de tempos perdidos. Ao evocar também o legado dos filmes anteriores de Erice, ao colocar em causa uma ligação ao passado, a nostalgia revela-se como uma espécie de crise, não de identidade, mas de procura de propósito e sentido pessoal do realizador, alter-ego de Erice, num filme que cada vez mais aponta para o seu tema central: o envelhecimento, a efemeridade, e a própria mortalidade, que Miguel tentou ofuscar durante muito tempo.
Três sequências em particular colocam-se como chave para chegarmos às inquietações de Miguel – e atenuam o estilo visual do primeiro terço do filme, com vários momentos em cenário nocturno, espaços reduzidos e iluminação delicada, que se aproximam da complexa construção da encenação presente nos filmes anteriores de Erice. Um encontro com o seu director de fotografia, Max, ele sim afogado em nostalgia e relíquias, amargurado com o estado do cinema, serve para mostrar o contraste com Miguel, que deixou o cinema para trás depois do filme de 1992 ter ficado inacabado. Uma conversa de Miguel com a filha de Arenas, que expõe o vazio deixado pelo desaparecimento do actor, e o desvanecer da memória, das imagens até, para os que ficam. Um outro encontro de Miguel com uma antiga namorada revelam pormenores e fios de outras histórias mal resolvidas, e confirmam: não há aqui saudosismo, mas sim uma viagem a um passado que Miguel tentou deixar para trás, juntamente com o filme inacabado. Este confessa que imagina que o amigo decidiu abandonar tudo, deixar os seus problemas para trás, recomeçar, esconder-se, mas o que descobrimos depois é que esse foi também o caminho escolhido por Miguel. São as sequências que mostram a vida de Miguel quando regressa a casa, numa pequena comunidade junto à costa, as mais comoventes pela forma como retratam o seu quotidiano, ocupado com a pesca, a escrita, a sua horta, a sua cadela e os seus vizinhos, que sublinham a sua solidão, o seu refúgio do passado e das suas tragédias; criam um curioso paralelo com o recente filme de Wenders, Perfect Days (Dias Perfeitos, 2023), também ele sobre outra personagem numa espécie de refúgio na rotina.
O tema da perda, que dominava El Sur, que nesse filme lidava com uma criança que procurava uma ligação com o seu pai desaparecido, é aqui também central, pela ligação perdida entre a filha de Arenas e a memória do seu pai, que domina também a ficção narrativa do filme inacabado de 1992, e é um vazio que também afecta o próprio Miguel, que perdeu um filho num acidente. Esse ponto de contacto com o cinema anterior de Erice, e outros, como o facto de ele também enquanto realizador ter tido os seus problemas de produção, com pelo menos um projecto a não chegar a ser filmado, e outro, El Sur, tornado incompleto pelo produtor, que não deixou o realizador filmar a totalidade da história que queria, indicam, para o realizador Erice e para o realizador Miguel, uma auto-examinação sobre o papel do cinema como forma de intervir na realidade para a corrigir, algo que será abordado na parte final deste filme.
O paralelo mais interessante será mesmo com o maravilhoso documentário que Erice filmou sobre o pintor Antonio López, El sol del membrillo (O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro, 1992), na tentativa de capturar a efemeridade da luz do sol sobre uma árvore, algo que parece destinado ao falhanço, num comentário à impossibilidade da arte em igualar a realidade, da representação da vida como uma ilusão, de uma luta inglória contra uma inevitabilidade – algo que parece afectar Miguel, que deixa também a sua obra por acabar. Tal como vimos recentemente no filme de Moretti, Il sol dell’avvenire (O Sol do Futuro, 2023), mais do que uma nostalgia pelo cinema como um arte em abandono, é um olhar para trás e uma auto-reflexão para tentar encontrar um sentido pessoal, e talvez recuperar a fé na arte como fonte de uma qualquer esperança, mesmo que ténue, que vem de uma ideia de necessidade de ilusão (Erice, Wenders e Moretti, caso para dizer, um tempo para velhos). O final, que com uma criança a cantar em lágrimas, evoca o final sentimental de Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957), de Stanley Kubrick, e um derradeiro paralelo no cinema de Erice (o seu primeiro filme começava com um grupo de crianças num cinema, este acaba com um grupo de adultos a ver um filme), e deixa no ar uma questão: será a ilusão do cinema, algo em que vale a pena acreditar como forma de esperança? Erice parece deixar a resposta no ar, para o espectador.
★★★☆☆