Em 2023, o seminário de cinema documental Doc’s Kingdom apresentou-se com o tema Corte – Travessia, com programação da autoria de Elena Duque e nova direcção a cargo de Marcia Mansur. O tema possui um duplo sentido: por um lado, esta edição dedica-se à montagem; por outro lado, em continuidade com o trabalho desenvolvido por José Manuel Costa, fundador do seminário, por Nuno Lisboa e Amarante Abramovici, directores artísticos das edições anteriores, a exploração incessante das potencialidades do documentário, em lato sensu, como veículo de relação com o(s) outro(s), com o mundo. Neste sentido, afirma Mansur, “o Doc’s Kingdom vai possibilitar um território de múltiplas interconexões em que heterogeneidades políticas, biológicas, linguísticas e desejantes possam ser entremeadas com o documentário.”[1]
Para cumprir a função dialéctica que lhe é historicamente atribuída, a partir da união de imagens e sons na procura por novos significados e formas estéticas, a montagem começa por criar um corte: “(…) a imagem sempre nos desafia a montá-la com outra, com o outro. Porque, na imagem, assim como na democracia, há algo em jogo, algo incompleto, uma primeira incisão ou lacuna.”[2] O princípio do corte não é tanto o da separação como o da suspensão, gesto que abre espaço na própria imagem para esta se mostrar enquanto tal. Na poesia, a suspensão diz-se caesura, uma pausa que interrompe a métrica de um verso. Dois poetas, Friedrich Hölderlin, para quem a caesura, isto é, o corte entre o sentido e o ritmo, permitia a aparição da palavra e da representação, e Paul Valéry, que define o poema como “uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”[3], servem de inspiração a Giorgio Agamben para definir o cinema, ou “um certo tipo de cinema”, como “uma hesitação prolongada entre a imagem e o sentido.”[4] Incertos de que “certo tipo de cinema” será esse a que se refere Agamben, encontramos decerto na obra da realizadora iraniana Maryam Tafakory a hesitação de que nos fala o filósofo, por onde o cinema irrompe como matéria igualmente poética e política.
Nazarbazi (2022) é, por excelência, um filme de hesitação entre a imagem e o sentido, embora pudéssemos também dizer entre a imagem e o texto, no qual as possibilidades de sentido se esgotam para dar lugar à forma de um poema que não obedece a quaisquer regras estilísticas ou formais previamente estabelecidas. Tafakory reúne imagens de 87 filmes iranianos do pós-Revolução Islâmica (1979), de um total 417 filmes vistos, entrelaçando-as com poemas de Forugh Farrokhzad, Ahmad Shamlou, Adonis e textos teóricos de Roland Barthes e Jacques Derrida, e acrescentando-lhes as suas próprias palavras numa composição indistinguível. Nazarbazi traduz-se como “jogo [bazi] de olhares [nazar]”, convocando o risco, o desejo e a proibição a que estão sujeitas as relações entre homens e mulheres, deixando ao olhar a sua única medida de aproximação a partir da distância dos corpos e da ausência do toque. O olhar passa, então, a ser a única forma de intimidade, ora doméstica, ora colectiva, e o silêncio a única linguagem que escapa à censura – sobre o que não é dito, o olhar é a única testemunha, a única evidência.
Se o cinema é a actividade, o exercício e o gesto de olhar, ele é ou pode também ser a resposta à pergunta de Tafakory no filme Irani bag (2020): “Como é que tocamos quando não podemos tocar?” Entre um corpo e outro, a censura impõe-se, mas o toque não desaparece, tendo encontrado outras matérias de mediação. Em Irani bag, a realizadora percorre novamente o cinema iraniano para nele descobrir que as malas, seja de que tipo forem, não são os objectos inocentes que se supõe, “mas mediadoras (da proibição) do toque”, um entre-dois por onde se transferem forças e tensões de corpos que, de outro modo, permaneceriam irredutivelmente separados e, no caso das mulheres, invisíveis ou até mesmo inexistentes. Por essa razão, lê-se no Jornal do Doc’s Kingdom, em On the films of Maryam Tafakory, de Mahan Moalemi, “a mala no cinema iraniano pós-revolucionário, mostra Tafakory, serve como um meio social por excelência, uma vez que desaparece em segundo plano, permitindo que aqueles que de outra forma não seriam representados façam a principal aparição no ecrã.”[5] Porque não são inocentes, as malas encontram-se também como extensão e barreira física em relação ao corpo das mulheres, sobre as quais o toque, ainda que mediado, exerce também uma forma de violência – um ataque à mala é um ataque a quem a segura. À semelhança de Nazarbazi, em Irani bag Tafakory entra num jogo de relações através da montagem – uma imagem surge à direita e prolonga-se noutra imagem que surge posteriormente à esquerda e quando duas imagens surgem em splitscreen é sempre o olhar de uma que se prolonga no gesto da outra, é sempre um gesto que se espelha num outro gesto.
O Doc’s Kingdom foi marcado pela sublimação do toque como veículo de travessia entre fronteiras paisagísticas, linguísticas, corporais, materiais, todas elas num certo sentido políticas.
Da não inocência das malas passa-se à não inocência do olhar, também ele inescapável à censura. A relação entre o olhar e a luxúria, forma de pecado tornado visível, é objecto de I have sinned a rapturous sin (2017). Por entre os discursos de ordem de clérigos iranianos sobre o controlo do olhar como ferramenta de controlo do desejo e sexualidade das mulheres, a palavra escrita ao longo das imagens é contrastada com a interpelação do poema Sin (em português, Pecado), de Forugh Farrokhzad, que dá título ao filme. Ao contrário dos dois filmes anteriores, a relação entre imagem e palavra não é disjuntiva, porque é imperativa a tradução do que é dito em persa no próprio tecido do filme, a imagem. Nesse sentido, a palavra que acompanha a imagem distingue-se em absoluto da palavra poética de Farrokhzad. Mais do que a montagem, ela é responsável pela cisão do não-sentido veiculado em discurso – e o sentido, novamente, remetido ao silêncio do poema que se lê, mas não se ouve.
Sabemos que o sentido não se esgota na palavra, assim como nela não se esgota a linguagem. O trabalho de Beatriz Freire, artista visual e poeta-táctil portuguesa, procura expandir o cruzamento de diferentes linguagens aparentemente opostas – o cinema e a tecelagem – que, na verdade, exigem ambas o toque como meio de trabalho. Partindo da consideração da tecelagem como linguagem, Freire encontra nos processos de manuseamento e tratamento de materiais têxteis uma possibilidade de reconfiguração material da película cinematográfica a partir da qual a imagem se materializa em toque. O filme-performance Re-Codis (2023) concretiza esse encontro entre o cinema e a linguagem: “A ideia é usar a poética dos têxteis, nas pessoas e nos espaços, através da criação de peças cinematográficas.”[6] Para isso, a artista transforma a película em tecido e vice-versa ao sobrepor as técnicas de montagem às técnicas de tecelagem e, assim, revelar uma nova travessia do visível ao tangível.
Numa abordagem mais “convencional” do dispositivo cinematográfico, Beatriz Freire apresenta também Tecer línguas (2023). Neste filme, o processo de tecelagem faz-se das palavras. O mesmo texto de Maria Gabriela Llansol retirado do livro Escrito nas Margens – Livro de Horas VIII é lido em voz-off em diferentes línguas e por diferentes vozes de mulheres:
“(…) desejava escrever objectos como palavras; (…) Objectos palavras; objectos língua; objectos históricos na história quotidiana. (…) Tratava-se realmente de ouvir os objectos (mais do que olhá-los) para sempre. Tactear, fechando os olhos. Depois, simplesmente ouvir, mudar o objecto de lugar, e escutar o texto do seu lugar vazio. (…)”
No primeiro movimento lateral da câmara impera o silêncio e a incidência da luz no interior de uma fábrica de tecelagem abandonada. No movimento posterior, em sentido contrário, ecoam as vozes de mulheres, na verdade, antigas trabalhadoras dessa fábrica, e o som das máquinas, como se pelo tecer e ecoar desses sons um passado pudesse repetir-se de novo no filme.
O Doc’s Kingdom foi marcado pela sublimação do toque como veículo de travessia entre fronteiras paisagísticas, linguísticas, corporais, materiais, todas elas num certo sentido políticas. É disso exemplo também o trabalho de Valentina Alvarado Matos. Mostrando-nos o ecrã como superfície dinâmica sobre a qual a mão se assume como principal agente de acção, a artista venezuelana trabalha as imagens em movimento como fontes inesgotáveis de novos significados que se geram no processo de montagem, ora relacionando a botânica com a palavra em ¿Se puede deletrear la hoja? (2022), ora apreendendo a paisagem como matéria-prima a partir da qual o olhar molda a realidade em El mar peinó la orilla (2019) e Trópico desvaído (2016). Sob o desígnio da Montagem/Collage, os filmes Cruce Postal: Del Otro Nuevo Viaje (2015) e Propiedades de una esfera paralela (2020) são o exemplo da importância da montagem no trabalho de Alvarado Matos, que acontece quer no interior da imagem, onde a mão é a responsável pela significação e re-significação de diferentes objectos, desde postais, pedaços de papéis, desenhos, escritos, cerâmicas, entre outros, criando um “mapa afectivo” e uma “topografia da memória”, como assim lhes chama a artista, quer no tecido total do filme, reiterando a ideia de que a montagem não se esgota na acção do corte. A acompanhar o trabalho de Alvarado Matos, foram também exibidos no seminário filmes de Carlos Vásquez Méndez, com quem a artista venezuelana colaborou em Paracronismos (I & II) (2019), Echo Chamber (2021) e FFF – FuegoFocFire (2023).
Do artista chileno destacamos Vientos del Oeste / Vientos del Este (2014), por determinar a viragem para a outra faceta temática do Doc’s Kingdom – a fronteira em relação com a paisagem numa acepção explicitamente política. Em Vientos del Oeste / Vientos del Este, Vásquez Méndez filma Ollagüe, pequena cidade na fronteira entre o Chile e a Bolívia que apenas o vento pode atravessar. No início do filme, pode ler-se: “Depois pensei que devia filmar a fronteira como se filma o vento: não é possível vê-lo, mas é possível perceber os seus efeitos.” É como se tudo estivesse parado, a cadência lenta do filme, os planos fixos, mas é o vento que os atravessa e se deixa sentir em cada gesto dos trabalhadores e nas quase impercetíveis oscilações da câmara por ele provocadas, como se qualquer sinal de vida naquela fronteira se devesse apenas ao vento.
A presença da montadora Claire Atherton no Doc’s Kingdom serviu de pretexto à exibição de uma obra-prima da realizadora belga Chantal Akerman, D’est (1993), e também do seu mais recente trabalho Man in Black (2023), de Wang Bing. Mas foi nas discussões intercalares às sessões que generosamente partilhou uma ideia precisa do que para ela é a montagem, numa altura em que a intenção desaparece do vocabulário do cinema, que se perde de vista a si próprio na exaustão de inumeráveis possibilidades, esvaziando-se a práxis cinematográfica da sua inescapável dimensão ético-política. Tendo trabalhado com Akerman desde 1986, Atherton tem a firme crença de que a sua função enquanto montadora é descobrir o filme que já existe em potência nas imagens. Para isso, disse-nos, é necessário estar disponível, é necessária uma abertura do olhar para o que é invisível nas imagens se torne no filme que nos é dado a ver no final.
Porque nos mostra a paisagem, constituída por rostos, sobretudo rostos, ruas, edifícios, estradas e tudo quanto dela se pode mostrar, humano ou não-humano, animado ou inanimado, D’est, de Chantal Akerman, é, nas palavras da montadora Claire Atherton, “um filme político no sentido em que ele nos inunda de sensações, de sentimentos, de emoções que nos fazem pensar, que nos fazem re-atravessar a história”[7]. Na articulação da fronteira com a paisagem, o que está em causa é a possibilidade ou impossibilidade de travessia. Invisível ao olhar, a fronteira revela-se na paisagem sob o signo da esperança ou da violência. Na história nossa contemporânea, atravessar fronteiras tornou-se o verbo da tragédia que o olhar inerte testemunha. Outrora um corte fictício desenhado no território em linhas invisíveis, a fronteira é hoje, mais do que talvez algum dia o tenha sido, a paisagem transformada em cemitério diante de nós.
Apesar do cinema, apesar de, o cinema:
“Yesterday, today, and tomorrow, there were, there will be, there are at this very moment, / people whom history, which no longer even has a capital H, whom history has struck down, people who were waiting there, packed together to be killed, beaten, or starved, or who walk without knowing where they are going, in groups or alone. / There is nothing to do. It is obsessive and I am obsessed. / Despite the cello, despite cinema. / Once the film is finished, I said to myself, So that’s what it was. That again.”
D’Est, au bord de la fiction (1995), Chantal Akerman
[1] Jornal do Doc’s Kingdom 2023, p. 3.
[2] Serge Daney, Montage obligé. The War, the Gulf and the Small Screen, Cahiers du Cinéma 442, p.50-54.
[3] Giorgio Agamben, Difference and Repetition: On Guy Debord’s Films, p. 317.
[4] Idem ibidem.
[5] Jornal do Doc’s Kingdom 2023, p. 103.
[6] Idem, p. 122.
[7] Idem, p. 112.