É importante começar pelo fim. Ferrari (2023) não marca um ponto de retorno de Michael Mann (depois de oito anos sem fazer cinema) à obra a que nos habituou. Dá-se por terminada a era azul do auteur, dos planos oceânicos que fundem e agarram estes homens (heróis?) másculos e melancólicos à paisagem (humanidade), aprisionados pelos seus próprios desejos e as memórias de um passado ofuscante, como vemos acontecer em Thief (O Ladrão Profissional, 1981), em Manhunter (Caçada ao Amanhecer, 1986), em Miami Vice (2006), em Blackhat (Blackhat: Ameaça na Rede, 2015). Mas isso não é – nunca é, aliás – necessariamente um pobre indício. Mann continua a fazer cinema relevante, aqui num filme concentrado e cativante, ainda que bemol e até estranhamente achatado, disfarçado de caricatura biográfica.
Passo a explicar. Ferrari começa e acaba com a intenção de Mann em se debruçar sobre a figura mestra do Commendatore, do magnata dos carros de luxo italianos. Uma grande porção de entrevistas feitas ao realizador nos últimos meses partem daí, de um desejo que se estendeu durante 30 anos. Porquê exactamente? Faz sentido que Mann tenha um interesse nesta figura ambígua, a vulnerabilidade do cavalheiro (mais homem ou mais máquina?) incapaz de resistir aos seus impulsos obsessivos, ao mundo contaminador. Sabem, claro está, todos os aficcionados de Mann quão lógico seria este projecto tendo em conta as temáticas e preocupações do auteur: a “modernidade líquida” do mundo (uma instabilidade atroz) e o enaltecer da mobilidade. Afinal, permanecer em constante movimento é o melhor escape para verificação de que corremos apenas em torno de nós mesmos. Mas Ferrari aproxima-se mais de uma nota de silêncio sustenida na criação de uma redoma temperamental, sempre a cobrir ou à espera de cortar o som do rugir dos motores dos carros ou da exaltação dos espectadores durante a tragédia, do que de um filme que nos exemplifica esta vontade voraz.
Dito isto, Ferrari nunca chega a ser uma biografia de Enzo Ferrari (Adam Driver). Ou das suas duas famílias. Ou dos carros. Ou dos pilotos que os conduziam. Ao contrário do que acontece com todos os outros rapazes de Michael Mann, este já não conduz o carro. Apenas contrói-o, e treina aqueles que nele correrão. Não é, no entanto, um filme de género também, porque só levanta voo no seu clímax. O que temos perante nós é bruto sem deixar de ser suave, solene e grave, mas sempre ténue. Em suma, uma cerimónia discreta que fala sobre como o luto sufoca o presente que não resiste em continuar a enfrentar a morte. Voltamos à anatomia de fluxo do homem do pós-guerra obcecado com o futuro, à mesma poesia particularmente masculina. Não há tempo para lamentar a morte de um piloto de corrida. Há apenas que substituí-lo. E por essa mesma razão nenhum tempo é dado para que sintamos falta destes homens, que é o mesmo que dizer para que vivamos no filme. “Dois objectos não podem ocupar o mesmo ponto no espaço. Ao mesmo tempo.”, ressoa Enzo. Alguém terá sempre de travar. O mesmo acontece com a estrutura de Ferrari. A vacilar entre interiores asfixiantes e clássico-renascentistas [lembram-se em Ali (2001)? “O ar é pesado. É como se estivesse dentro de água.”] e exteriores tácteis e contemporâneos que brilham livres independentemente da rugosidade das suas superfícies, encontram-se os corpos humanos (mais contornos arrastados do que figuras enquadradas), cena atrás de cena, travão atrás de travão, num conflito de pólos opostos que não se electrificam. Temos, de facto, perante nós um filme de Michael Mann. Mas não aquele que esperávamos.
Entre os eixos da necessidade alarmante por uma velocidade qualquer, a mesma de toda a restante obra de Mann que nega um mundo que parou de progredir, o filme move-se em contracções melodramáticas e sedutoras que infelizmente não provocam danos no espectador.
Pensar no filme de maneira retrospectiva só acentua esta noção. Especialmente porque, tal como acontece no melhor que Michael Mann já nos ofereceu (Miami Vice), Ferrari trabalha dentro de nós mais depois do que durante. Até lá, é um filme desprovido de muita da propulsão que lhe dá um sentido de identidade, de casa. Como linhas telefónicas, o filme quer caminhar como o cinema que nos assalta, sem sabermos que o faz. Começa por apalpar e comandar todos os procedimentos de pesquisa e construção apenas através daquilo que nos mostra na sua mise-en-scène. Toca no drama familiar, a mulher e a namorada (Penélope Cruz e Shailene Woodley), a guerra e os dois filhos, para chegar à insolvência da empresa no pós-guerra no ano de 1957, onde nos encontramos. E mantém sempre na mira a Mille Miglia, que teria que salvar a Ferrari (e salvou), acabando também por matar onze pessoas, nove dos quais espectadores (quatro eram crianças), determinando aquele o último ano da competição desde que esta tinha sido instituída em 1927. Entre os eixos da necessidade alarmante por uma velocidade qualquer, a mesma de toda a restante obra de Mann que nega um mundo que parou de progredir, o filme move-se em contracções melodramáticas e sedutoras que infelizmente não provocam danos no espectador. Mas oh claro que é um filme de Michael Mann ou a vida não seria desgovernada em volta de algo atmosférico, que tão rapidamente se evapora como invade, algo que se exclui de significado. Uma força motriz demasiado fatalista para ser prontamente caracterizada.
O seu lado mais operático vem aliado ao seu fado. Tal como o icónico carro vermelho, há uma característica rudimentar em Ferrari que o condena ao digital que se parece com digital (aquele CGI é tão abonecado; as corridas são aborrecidas e condenadas ao vazio), com um argumento que denuncia televisivamente o seu destino (ai, o pneu, o pneu), e sequências como a da missa de domingo entrecruzada com o bater de um recorde na pista de corrida. Humoroso? Sim. Mas aquém da sua adulta matéria-prima. Algo poderia ser dito da ligação que o filme parecia querer encontrar entre o que é cirúrgico e o que é divino, a visceralidade que é possível de resgatar, alterar, salvar como o motor de um carro, e a outra deixada nas mãos de entidades invisíveis, como a distrofia muscular do filho. Mann não lhe deu continuidade. Como em todos os filmes do realizador, corremos o risco de ver o que desejaríamos que pudesse lá estar. É a doença do crítico que se vê realçada num filme que precisava antes de mais de electricidade, e de um controlo mais aprimorado na sua montagem por vezes confrangedora de tão visível.
Ferrari encontra-se mais perto de ser um triunfo do que de não ser. Para pesar do espectador, permanece na boca de uma gárgula, sempre prestes a ser cuspido, sempre sob a ameaça da indiferença.
O que não é possível de fantasiar é quão bom actor Adam Driver é, e quão estranha é ao mesmo tempo a escolha dele enquanto Enzo Ferrari. Ferrari curva-se de dor e sufoco, tal e qual cãibras abdominais, nos momentos de paragem e contemplação com planos por cima do ombro de um Adam Driver que tira e coloca os seus óculos de sol embrulhado na penumbra da noite; eis o cânone manniano do herói sério que persegue e é perseguido, e se recusa a render. Mas a personagem perde-se para o espectador sempre que o actor abre a boca [porquê aquela ideia de sotaque italiano outra vez? Não bastou o engendrado para House of Gucci? (Casa Gucci, 2021)]. E sempre que penso nele agora, tons acinzentados vêem-me à cabeça. Por um lado, enquanto típico homem manniano, está sempre distraído. Por outro, não parece correr sangue nas veias do Enzo de Driver, nem mesmo quando lágrimas lhe escorrem pelo rosto, o que diz muito de onde Mann se encontra agora. Felizmente o filme consegue, aqui e ali, cobrir-nos numa névoa de inteligência, na sugestão de que há algo mais [por momentos levou-me até de volta a Ad Astra (2019) de James Gray]. As personagens são normalmente criaturas para Mann, uma anonimidade de tão humanas. Por isso é que quando as vemos, vemo-las a agir apenas. O filme pode ser romântico, mas o tratamento da personagem não é.
Seja como for, Ferrari só arranca quando chegamos à recta final, àquele terceiro acto, momentos antes da Mille Miglia começar, com os rapazes (todos excepcionais, do também piloto de corrida Patrick Dempsey ao jovem Jack O’Connell; pena não passarem de rascunhos de personagens) a serem como que enviados para a guerra, cartas escritas para as amadas e deixadas nos seus quartos de hotel. A isto segue-se uma longa sequência infecciosa dos carros impossivelmente vermelhos e lustrosos a partirem para a sua expedição pelas várias cidades italianas (Ravenna, Bologna, Palma, Brescia) antes do anunciar da madrugada, que antecipa as paisagens quase que tocadas pelo sobrenatural que determinam este pedaço de Ferrari um deleite cinemático. Por isso, mas não só, Ferrari encontra-se mais perto de ser um triunfo do que de não ser. Para pesar do espectador, permanece na boca de uma gárgula, sempre prestes a ser cuspido, sempre sob a ameaça da indiferença.
E não deixa de ser curioso que, numa altura no tempo com as salas a inundarem-se de filmes debruçados sobre homens que mudaram o mundo como o conhecemos [Oppenheimer (2023), Napoleon (Napoleão, 2023), Maestro (2023)], a mais pura gravidade emocional de Ferrari pertença às actrizes que comandam o filme. Shailene Woodley nunca vacila e Penélope Cruz é uma potência. Diria até que o filme lhe pertence sem grande esforço ou alarido. Ao contrário do homem que deu o nome ao carro e já não o conduz, a Signora Ferrari não precisa de velocidade. Ela tem uma arma, e não tem medo de a usar. O caminho em frente vem escrito dentro dela.
★★☆☆☆