A quarta parte (assim denominada pelo próprio realizador) da trilogia do proletariado acrescenta um novo capítulo a uma das mais brilhantes séries do cinema europeu das últimas décadas. Trinta e três anos depois do último filme dessa trilogia, este novo tomo parece transportado directamente desse tempo do final da década de 1980, e podia passar por um filme perdido no tempo que foi entretanto redescoberto. Simultaneamente, não podia mostrar-se mais actual, como imagino que continuaria a ser relevante se fosse filmado daqui a outros trinta anos, pelo menos enquanto o proletariado for miserável, solitário e condenado a sobreviver: aqui joga-se na intemporalidade do próprio cinema, na empatia como forma de arte, na cumplicidade do espectador com as personagens, ou seja, no campo de Chaplin e de Ozu.

Há, desde logo, um primeiro acrescento em relação aos tomos anteriores: a passagem do tempo em relação à época anteriormente retratada, uma inalteração do estado da classe trabalhadora, e a relevância ainda pertinente de continuar a apresentar estas personagens das sombras anónimas da sociedade e resgatá-las do esquecimento, apenas revela o pouco que mudou entretanto, e que se prevê, também, que pouco venha a mudar nos próximos tempos. Tal como os irmãos Dardenne, ou muitos outros que filmam pequenas variações dos seus temas dentro de uma linguagem visual consistente, esta repetição ganha aqui um significado extra por afirmar a passagem perniciosa e castigadora do tempo sobre estas personagens, ameaçando erodir uma qualquer ideia de felicidade.


Se olharmos para os filmes anteriores da trilogia [e de certa forma, até para os mais recentes Le Havre (2011) e Toivon tuolla puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017), familiares próximos destes], outro factor que se destaca é o tom mais pessimista e fatalista deste mais recente: Varjoja paratiisissa (Sombras no paraíso, 1986) é talvez o mais romântico e afectuoso no retrato do desassossego amoroso do par do filme; Ariel (1988) é mais humoroso na forma como encara a tristeza existencial das suas personagens; e o terceiro, Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990), o mais corrosivo, quase de uma fúria emudecida na solidariedade com a sua protagonista. Em Kuolleet lehdet (Folhas Caídas, 2023), encontramos outra vez um par desencontrado de personagens fechadas no seu mundo taciturno, num quotidiano de pouca esperança, em que os poucos momentos de alienação em relação ao seu destino (uma noite no bar, um encontro num café, um jantar a dois) se mostram de fruição temporária, muito adiando qualquer redenção que se começa a imaginar impossível – e talvez por isso mesmo, sejam mais comoventes pela incapacidade destas personagens de encontrarem alguma esperança. Aqui, a solidão é mais duradoura, mais punitiva, mais silenciosa: repetem-se os espaços vazios e os corações partidos.



Este minimalismo poético é também uma homenagem directa à história do cinema, ao poder de contar uma história sem muitas palavras.
Aliado a esse tom mais pessimista, de desilusão com a vida, mais do que uma nostalgia pelos tempos retratados nos filmes anteriores desta trilogia, aqui Kaurismäki parece sublinhar uma sentida amargura pela condição destas duas personagens principais, por um arrastar da sua situação sem resolução, fruto do ambiente e estatuto social, mas também das suas escolhas (cada vez mais desesperadas). Se, recentemente, Víctor Erice com o seu regresso ao passado em Cerrar los ojos (Fechar os Olhos, 2023), partia da nostalgia para uma reflexão sobre a passagem do tempo e o envelhecimento, se em Il sol dell’avvenire (O Sol do Futuro, 2023), Nanni Moretti olhava para trás numa espécie de crise existencial sobre as possibilidades da ficção, e se, em Perfect Days (Dias Perfeitos, 2023), Wenders relectia sobre o quotidiano mundano e os seus pequenos momentos de escape como forma de encarar a solidão e o envelhecimento, aqui, Kaurismäki, numa nova variação dos elementos que anteriormente tinha explorado, parece comentar sobre a própria intemporalidade desta tristeza de viver, como se as personagens desta trilogia estivessem numa espécie de limbo, debaixo de um permanente estado de aflição, à procura da saída, a quem é imposta a impossibilidade de dias melhores, de que isto é tudo a que têm direito.




Em baixo: Folhas Caídas (2023); Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) de Yasujiro Ozu
Numa sociedade capitalista, em que pouco controlamos da nossa vida, as pequenas coisas que conseguimos chamar de nossas ganham relevância. Em Folhas Caídas, essas pequenas coisas, distrações-vícios-prazeres, não oferecem grande esperança quanto a tempos melhores, pelo menos durante algum tempo (e prejudicam a saúde, entretanto). Para Ele, um trabalhador metalúrgico que vive num dormitório partilhado, as pequenas coisas passam pela bebida, pelo tabaco, por um pequeno rádio e por algumas saídas à noite com o seu amigo (o bingo de Sombras no paraíso é aqui substituído pelo karaoke), mas não oferecem um vislumbre de alguma melhoria: como ele diz, bebe porque está deprimido e está deprimido porque bebe. Para Ela, que começa num supermercado, passa por um bar e acaba a trabalhar numa fábrica, os jantares de micro-ondas são acompanhados pela rádio, que em vez de música dá conta de notícias da guerra na Ucrânia (uma das poucas notas que estabelecem o momento temporal do filme; já em A Rapariga da Fábrica de Fósforos as notícias eram sobre o massacre de Tiananmen), e aproveita a companhia de uma amiga para algumas saídas. A música, sempre presente, melancólica e dramática, acaba por oferecer algum conforto e escapismo, tal como o cinema (que dá lugar à melhor frase do filme), simbolicamente lugar de desencontro e encontro, onde Ele espera à procura de alguma luminosidade e Ela reaparece finalmente, como que saída de um filme, porque a esperança o fez esperar.
Os pontos de contacto com os filmes anteriores, especialmente no retrato dos tempos que ocupam a espera pelo próximo dia, são muitos, confirmando a noção de que Kaurismäki trabalha variações pequenas da mesma história (tal como Ozu – se num filme, a filha não quer sair de casa por temer a solidão do pai, noutro é o pai que teme a solidão da filha e procura motivo para ela sair de casa, seguindo com a vida), ajudando a expandir a ideia de intemporalidade, de este filme poder ser de hoje mas também de um passado recente, ou vindo de um futuro distante, sobre histórias que se repetem; mas também por vezes em diálogo com os filmes anteriores, preenchendo espaços antes vazios.





em baixo: A Rapariga da Fábrica de Fósforos (1990), Sombras no Paraíso (1986), Folhas Caídas (2023)
Aqui, tal como em Sombras no paraíso e Ariel, as personagens masculinas acabam em bares, solitários até recolherem a casa, tal como os salaryman dos bares de Tóquio nos filmes de Ozu, e, tal como em A Rapariga da Fábrica de Fósforos, elas ficam ao canto a ver os outros a divertirem-se. O encontro entre as duas almas solitárias é assim uma forma de redenção em relação à sua existência, mas está longe de ser imediata, terá de ser conquistada e irá ser posta à prova.




Em baixo: Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) de Ozu, Folhas Caídas (2023) de Aki Kaurismäki
A forma como Kaurismäki enquadra as suas personagens em planos hopperianos é característica desta trilogia, muitas vezes retratados sozinhos em cenários esparsos, de cores vivas, com as personagens a encarar de frente a câmara, a olhar para o infinito. É uma composição poética e gentil, que conhece aqui o seu apuro máximo no que toca ao estilo de Kaurismäki, que permite ao espaço manifestar a tristeza das personagens e evocar o vazio que sentem, como quadros despojados de elementos mas repletos de significado. Este minimalismo poético é também uma homenagem directa à história do cinema, ao poder de contar uma história sem muitas palavras, reforçado por planos de transição (os “pillow shots”) entre sequências que procuram um paralelo entre as paisagens urbanas desoladoras, frequentemente despidas de pessoas, e a condição emocional dos protagonistas, imersas num sentimento de saudade por algo que ainda não conhecem. Tudo isto, e todo o encanto de Folhas Caídas como obra que ecoa no tempo, é confirmado num momento final, que sublinha como, entre outonos e primaveras, a felicidade também espera.
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