Grief-work. It sounds such a clear and solid concept, with its confident two-part name. But it is fluid, slippery, metamorphic. Sometimes it is passive, a waiting for time and pain to disappear; sometimes active, a conscious attention to death and loss and the loved one; sometimes necessarily distractive (the bland football match, the overwhelming opera).
― Julian Barnes, Levels of Life (2013)
Para a sessão de encerramento da Mostra de Cinema IPO Lisboa 100 anos, iniciativa coorganizada entre o IPO Lisboa e o IndieLisboa, recentemente realizada de 5 a 7 de Janeiro, acolhida pelo Cinema São Jorge, o filme escolhido a ser exibido foi A Metamorfose dos Pássaros (2020) de Catarina Vasconcelos. Das breves palavras proferidas pela realizadora e pelo produtor no momento anterior à projeção, ficaram-me sobretudo gravadas as de Pedro Fernandes Duarte, que expressavam a carência e a relevância da realização de filmes que abram espaço para a reflexão sobre o luto e que nos façam pensar e sentir sobre esse processo tão subjetivo e particular quanto acutilante e visceral, experienciado por cada um de nós em alguma fase das nossas vidas. É, enfim, na perda que Milyang (Sol Secreto, 2007), a quarta longa-metragem do cineasta sul-coreano Lee Chang-dong, se edifica.
Para cumprir o sonho do falecido marido, que um dia pretendia voltar à sua cidade natal, Lee Shin-ae muda-se com o filho, o pequeno Jun, para Miryang, de forma a construírem uma vida melhor. Chegados à pequena povoação, Lee Shin-ae conhece Kim Jong-chan, o mecânico que a ajuda quando o seu carro, ainda em estrada, avaria, e o homem que a acompanha na sua integração na desconhecida Miryang – desde a forma como divulga à restante comunidade a intenção de Lee Shin-ae abrir uma escola de piano para dar aulas a crianças até à forma como lhe recomenda um conhecido proprietário para que esta pudesse comprar um terreno e construir uma casa.
É a partir daqui que a pouca estabilidade emocional que resta a Lee Shin-ae começa a escapar-lhe por entre os dedos: uma noite, regressada a casa, procura desesperadamente por Jun, mas não o encontra. Recebe o telefonema de um homem que, julgando saber sobre o dinheiro que guardava para concretizar o suposto negócio de aquisição, sequestra o seu filho e avança com um pedido de resgaste. Mas Lee Shin-ae escondia a verdade: a sua pretensão de comprar um terreno não passava de uma frágil mentira, escondida pelo desejo de querer transparecer, com medo de ser julgada pela comunidade, ter uma riqueza que, na realidade, não existia. Confessando-se ao raptor e entregando-lhe uma insignificante quantia, Lee Shin-ae “vê” Jun ser assassinado.
Assim como a espiral de sofrimento de Lee Shin-ae parece não ter fim, o espetador é confinado a um espaço em que os longos planos concebem uma completa imersão na realidade, gerando a sensação de impossibilidade de fuga.
O choro e a dor tomaram conta de si quando viu o corpo do filho no local do crime, mas a apatia e o entorpecimento secaram-lhe as lágrimas que, no funeral, nunca chegaram a cair. Mas a espiral de sofrimento e solidão que morava em Lee Shin-ae, e não cessava, parecia começar a encontrar na religião um mecanismo de sobrevivência, e na jornada de navegação das distintas fases do luto – negação, raiva, negociação, depressão e aceitação – um refúgio. A certeza da inexistência de Deus, porque se Deus existisse “como pôde deixar o Jun morrer tão cruelmente? Ele era uma criança inocente” foi permutada pela crença e pela fé, manifestadas nas reuniões que começou a frequentar na Igreja, e nas quais expunha as suas vulnerabilidades.
Porém, ultrapassada a adaptação à tragédia, e a intensa tristeza que daí adveio, seguindo-se-lhe a procura de uma explicação divina e, com esta, a esperança e o alívio, chegaria o estágio de retomar ao ponto de origem: a revolta de enfrentar que existem perguntas para as quais a religião não tem resposta. A fé depositada por Lee Shin-ae desvanece quando decide ir à prisão visitar o homem responsável pelo assassinato do filho, e este, à sua semelhança, assume-se como crente e diz ter encontrado a paz e saber que Deus o perdoou. Mas Lee Shin-ae não aceita e questiona-se: “Como pode Deus tê-lo perdoado se nem eu mesma o fiz?” Como poderia Deus fazer-me isto?”.
Lee Shin-ae simbolizava a tragédia e a agonia. Kim Jong-chan, uma constante ao seu lado, era a balança que equilibrava, que possibilitava uma certa leveza, e que procurava que nas brechas da escuridão duradoura entrasse a claridade, embora efémera. Assim como a espiral de sofrimento de Lee Shin-ae parece não ter fim, o espetador é confinado a um espaço em que os longos planos concebem uma completa imersão na realidade, gerando a sensação de impossibilidade de fuga. Fuga, essa, que Lee Shin-ae procurava encontrar quando, em momentos transformadores, contemplava o céu e, implícita e simbolicamente, lhe reconhecíamos o seu conflito interior.
Por fim, desviemos o foco da abertura do filme, em que é a partir do olhar de Jun que observamos as nuvens e o sol que rompe por entre as mesmas, para a cena final, em que o movimento da câmara – uma panorâmica vertical – se desloca do azul-celeste do céu, “habitado” por Deus, para o pedaço de terra molhado, que suporta a Humanidade, e que cobria o espaço em que Lee Shin-ae e o pequeno Jun brincavam. Lee Shin-ae inicia, assim, o processo de aceitação, e o abstrato, o metafísico e o transcendente dão lugar ao concreto, ao material e ao real. Citando Lee Chang-dong, a partir de uma entrevista concedida ao The New York Times em 2007: “Cinema is a great tool, a way to talk about the invisible through the visible”. Consigamos, enfim, escutar as perspetivas do realizador sul-coreano e, sobretudo, seguir as suas belíssimas pegadas.