À memória de Margarida Medeiros, para sempre entre nós
Quando vemos um filme, somos movidos e afectados por conjuntos de relações rítmicas, somos excitados pela pulsação de uma cadência vital. Cinema: não imagens em movimento, mas imagens que (nos) movimentam. Se o “quê” implica a distância e o “onde” o jogo, o “quando” implica o ritmo.

Roland Barthes dizia haver uma relação consubstancial entre poder e ritmo: “em primeiro lugar, aquilo que qualquer forma de poder impõe é um ritmo (em tudo: um ritmo de vida, um pensamento, um discurso)”. É o ritmo que define como vivemos juntos, que determina um conjunto de (im)possibilidades em função de tudo o que nos separa e pode (re)ligar. Se no interior do nosso corpo convivem ritmos distintos (por exemplo, quando o bombeamento do coração é movimento oposto ao do processamento do oxigénio nos pulmões falta-nos o ar), imagine-se entre duas pessoas, entre membros de um grupo, entre os elementos de uma sociedade. Talvez aqui se perceba a grandeza d’O Homem da Câmara de Filmar (1929), de Dziga Vertov, que passa pela invenção de um ritmo geral que tudo une numa cidade imaginária, ou de Boxing Gym (2010), de Frederick Wiseman, que presta atenção à relatividade de opostos que está na base da utopia americana. Ver um filme é um convívio, uma forma de relação que, tal como o amor, a amizade ou as encenações da vida em comum, implica a imposição de um ritmo ou a submissão ao ritmo (poder) de outrem.
O que acontece quando filmamos? Essa evidência agudiza-se: ‘esbarramos’ no ritmo do real, na sua mobilidade ondulante.
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“Ritmo. O poder supremo dos ritmos. Não é durável senão o que é captado pelos ritmos.” (Bresson). Um exemplo: Hand Catching Lead (1968), de Richard Serra. De entre infindas interpretações possíveis, é de um confronto tenso entre dois ritmos distintos que esse filme-instalação parece “falar”. Como defende Tomás Maia, são sobretudo as obras mudas que nos dizem alguma coisa. Nesta, ao longo de três minutos, uma mão tenta apanhar folhas de chumbo que caem sucessivamente do topo do enquadramento. Como já foi bem observado, o gesto da mão assemelha-se a um fluxo e refluxo, espécie de simulação do batimento cardíaco. É também uma metáfora elementar do processo artístico. Segundo Serra, o filme seria a maneira mais justa de “documentar” (leia-se, de comentar) a construção de uma escultura feita a partir do mesmo material, assim melhor “falando” do que esteve implicado numa relação corpo-a-corpo entre o artista e o chumbo a partir da qual se ergueu (nasceu) a obra.
No entanto, não é só um filme sobre a elevação da arte, mas também sobre a vontade de reagir através de um gesto treinado. O filme exibe um ethos do acto de filmar: não importa o que se agarra e/ou não agarra, nem onde, como ou porquê; importa o quando. O movimento sistemático e cada vez mais fatigado da mão diz-nos que tudo o que acontece diante da câmara de filmar importa, pois tudo morrerá de igual modo. À semelhança de um ginásio de boxe, é o cinema como campo de treino do timing.
O cinema, diz-nos a mão-corpo do filme de Serra, ensina que é preciso estarmos prontos para, a qualquer momento, reagir à passagem das coisas – como os grandes boxeurs, que são capazes de inclinar o tempo a seu favor, mesmo que não desfiram um único golpe. Se as folhas de chumbo que caem representam a correnteza do mundo, a mão que as tenta apanhar (e que, quando as apanha, logo as larga, ou por vezes até sacode) diz-nos que o acto de filmar não é tanto uma forma de registo e de fixação, mas de articulação vital com o ritmo efémero da vida. “O tempo é um rio, uma corrente inexorável de acontecimentos que se avista e logo desaparece rapidamente e é seguida por outra que, por sua vez, é varrida” (Marco Aurélio). O cinema intensifica este fenómeno, dando-o a ver. Se, como Luiza Neto Jorge escreveu, “o poema ensina a cair”, o cinema ensina a suster, qual gesto de segurar (o tempo) para que não caia.
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Se filmar é suster o que diante da câmara acontece, então o ecrã é essa outra câmara que sustém/segura brevemente quem diante dela permanece: nós, espectadores.
Alguns filmes têm o poder de suster o nosso próprio movimento. Seguram-nos momentaneamente, mesmo que, depois, continuemos a cair e a prosseguir o nosso trajecto de vida. O que acontece quando vemos filmes desses? A interrupção do nosso desígnio transforma-se numa mobilização, dando-se uma espécie de movimento embalado pela suspensão do tempo. Na verdade, tais filmes apenas desviam ligeiramente o nosso trajecto, pois que o rumo muda, mas a queda é inevitável. Daí que, de um ponto de vista fenomenológico, faça todo o sentido a proposta de Gaudreault para que reformulemos a pergunta “o que é o cinema?” para a pergunta “quando é cinema?”.
Há filmes que nos levam a querer filmar de modo diferente. Há cerca de dez anos, vi O Pão (1959), de Manoel de Oliveira, na Cinemateca. Ou melhor, O Pão viu-me, agarrou-me e sacudiu-me. Pela primeira vez, estava a ver um filme que me dizia para ir filmar (ver, ouvir, ordenar) as coisas de uma certa maneira. À medida que o filme se desenrolava, a vontade de continuar a vê-lo conflituava com a necessidade de sair para filmar.
Enfim, filmar como quem gestualiza o real, como forma de revalorizar o tempo através de uma experiência do choque entre ritmos distintos (o da câmara-corpo e o dos corpos errantes).
Não por acaso, o filme de Oliveira inicia-se com um gesto de plantação – todos os grandes filmes “engravidam-nos” como um agricultor fertiliza o chão. E “cresce” a partir do momento inicial: depois de um casamento, ao qual se segue a “penetração” da terra, as figuras do dia-a-dia (primeiro no campo, depois na cidade) vão surgindo como sangue que se alastra num derrame vital, sempre em diálogo com o pão (i.e., o corpo de Deus). O gesto iniciático de semeação do trigo confunde-se com um momento de reinvenção do Todo – perspicazmente, José Manuel Costa viu o significado da pomba no final dessa sequência inicial. Daí em diante, os gestos, profanos e sagrados, mundanos e ritualizados, apresentam-se como consequências desse “desvio” que o olhar do cineasta produz através da montagem entre espaços dispersos no tempo. Todas as coisas se apresentam (são representadas) como parte de uma mesma natureza, “porque não há nada para além dela, que a contenha ou seja separada dela”, ou seja, o mundo como “unidade de ordem e conceitos” e não como “mistura simples de coesões e dispersões” (de novo, Marco Aurélio).
Em consonância, ao ver O Pão, senti-me integrado (posto em movimento) no Todo – mais do que simplesmente detido. Fui “desviado” da minha trajectória; a minha “queda” foi sustida tempo suficiente para redefinir o rumo. Desde o que vivenciei naquele filme que sei quais são coisas que “caem” à minha frente e que merecem ser filmadas (potencialmente sustidas e desviadas), mesmo que, ou sobretudo quando, a câmara não está à mão para ser ligada. Desde então que, quando filmo, me sinto num campo de treino do corpo e das suas articulações para melhor suportar o ritmo (o peso) do mundo.
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O Pão de Oliveira fez mais do que reformar o meu olhar: apresentou-me uma modalidade de treino, uma proposta de exercício físico, em que a câmara de filmar se acrescenta à musculatura com que tentamos suportar o peso do mundo. O corpo, acompanhado pela câmara de filmar, descobre novos corpos, ideia ou sensações à medida que tacteia aquilo que por ele passa.
Desde então, o filme mais importante que fiz só podia ter sido filmado ao longo de noites, tacteando na escuridão – a noite como a fase em que menos se nota a mudança da luz e simultaneamente tudo muda. Fi-lo com consciência daquilo que estava a tentar suster (blocos de tempo) e que deveria vir a ser parte de um processo/uma imagem de alastramento a partir da repetição do mesmo, uma metamorfose do que “cai” sempre do mesmo modo. Os muitos turnos da noite que vivenciei encontraram a sua forma final numa “curta-metragem” com quase duas horas de duração, que condensam um trabalho de oito horas. Inicialmente, o meu desejo era fazer um filme dessa mesma duração, em tempo real, mas só artistas verdadeiramente livres, como Kevin Jerome Everson ou Wang Bing o ousam.
Durante as muitas horas de vídeo e áudio que acumulei nessas filmagens, as coisas aconteciam (e acontecem) sempre da mesma maneira. Após momentos de letargia, quando uma chamada de emergência “cai”, sai-se em missão. O veículo móvel é a primeira câmara de reanimação que se liga ao batimento cardíaco da vida no exterior. Quis filmar os técnicos de ambulância em emergência (o Hugo e o Luís) como cineastas sempre a postos, de “mão estendida”, prontos a reagirem ao ritmo da urgência (do Outro) que surge.
Noite após noite, tornava-se cada vez mais evidente não o quê, não onde, mas quando devia filmar. Por exemplo, nos tempos de descanso e de espera, sustendo aquilo que, sendo menos óbvio, era “marca d’água” de um ritmo nocturno e antecipação da adrenalina por chegar como uma brisa de agitação, por vezes trágica, para logo se dissipar. Filmar um dos técnicos a fumar não merecia menos tempo de filme do que uma viagem de condução arriscada ou uma reanimação cardíaca – são variações de uma mesma pulsação vital.
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Estar naquelas ambulâncias e naqueles lugares, suspendendo a minha vida durante oito horas nocturnas, ensinou-me a “camerar” (camérer), conceito do francês Fernand Deligny que só mais tarde viria a ser introduzido no meu léxico cinematográfico: se um filme (e filmar) pressupõe um produto final, camerar denota o gesto de expressão fílmica sem finalidade produtiva, um meio sem fim. O acto de camerar gestos mínimos do quotidiano, dos pragmáticos aos ritualizados, instala um “cinema permanente” (outro termo de Deligny), um cinema a postos para tudo filmar, de modo a visibilizar uma outra forma de existência. Camerar implica um gesto repetitivo (uma forma de praticar) e um horizonte infinito (de experimentação), e a sua formulação envolve uma temporalidade diferente da das filmagens (produções cinematográficas) convencionais, uma emancipação da “indústria dos filmes”. Enfim, filmar como quem gestualiza o real, como forma de revalorizar o tempo através de uma experiência do choque entre ritmos distintos (o da câmara-corpo e o dos corpos errantes).
Por várias razões, o meu Turno da noite nunca chegou a ver a luz do dia em festivais de cinema, cineclubes ou salas comerciais. Apesar do grande desgosto à altura, foi o melhor que lhe (me) podia ter acontecido.
Num dos textos sobre o acto de camerar, Deligny revela o desejo de filmar o degelo de um iceberg em tempo real, “nada para além do iceberg na tela durante semanas”. Este desejo de filmagem permanente da vida, qual processo contínuo de filmagens, encontraria uma possibilidade prática anos mais tarde no projeto de Deligny em Cévennes, no sul de França, em conjunto com jovens autistas (“inadaptados” do dito “mundo comum”), um modo de vida comum em que a câmara se define como um “utensílio pedagógico”. Para este pedagogo (nas palavras do próprio, também “poeta e etólogo”), o cinema foi a forma de pôr em marcha um sempre inacabável “film à faire”, uma ideia de camera(da)gem que se repete, mais do que propriamente evolui ou se concretiza dia-a-dia, de acordo com o reconhecimento de uma estruturante precariedade da vida.
A câmara pode ser ferramenta responsável por estabelecer uma nova relação entre os seres e as coisas, sobretudo, uma forma de sustentar (mais do que representar ou substituir) a própria vida, qual “ginásio de boxe” para alunos em “manutenção”. E o cinema pode transformar a experiência do tempo (de quem filma e de quem é filmado nas suas tarefas e trajectos diários) num valor não amoedável, não mensurável, em suma, não funcional – não um tempo fílmico planificado, previsto ou contado, mas um tempo filmável sem fim, vivido, de pura iteração. Um cinema permanente que suspende o tempo da vida para o valorizar, antes de o voltar a deixar “cair”.
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Um cinema permanente implica saber quando filmar, porque esse “quando” permite instalar uma suspensão na ordem das coisas.
Quando filmar passa a ser uma forma de apenas prolongar o compasso de um ritmo já percebido, então o momento em que seguramos as coisas que “caem” deixa de conter a possibilidade de lhes imprimir um desvio – está apenas a adiar-se uma inevitabilidade.
Por várias razões, o meu Turno da noite nunca chegou a ver a luz do dia em festivais de cinema, cineclubes ou salas comerciais. Apesar do grande desgosto à altura, foi o melhor que lhe (me) podia ter acontecido. É-me óbvio que o grande interesse dessas filmagens está no facto de me terem sugerido um programa de trabalho que, hoje, através da experiência de filmagens na Trafaria, com o Diogo, o Francisco, o Nico, o Tomás e o “Stôr” Tiago (e outros virão, especialmente os mais jovens, encaminhados pela mão do João) sei ser possível. Na pior das hipóteses, falhar significará qualquer coisa determinante sobre as condições de possibilidade da nossa época. Esse programa de trabalho pressupõe não tanto a capacidade de “documentação”, como a articulação de diferentes temporalidades num eterno presente que só o acto de camerar possibilita: a câmara é o “utensílio pedagógico” que suspende e intensifica o fluxo da realidade, aquilo que inclina o tempo a nosso favor. No limite, a câmara não precisa de estar sequer ligada (“fazer um filme sem película”, como desejava Deligny), mas somente presente: a mera possibilidade de enquadrar já implica a virtual instalação de uma outra temporalidade.
O atelier en plein ar de quem filma não é, nunca poderá ser, igual ao atelier de outro artista, pois nesse atelier o tempo escapa continuamente. Bresson viu-o bem: “Em toda a arte existe um princípio diabólico que age contra ela e a tenta demolir. Um tal princípio talvez não seja totalmente desfavorável ao cinematógrafo”. Passamos a filmar as coisas que não queremos deixar cair (no esquecimento) de qualquer maneira. Filmar é descontinuar (suspender, interromper, desviar) a trajectória pré-definida do tempo pré-determinado, mesmo que saibamos que tudo acabará por cair.
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Saber quando devemos filmar implica saber quando nos devemos articular com o ritmo daquilo que “cai”, dure o tempo que durar. Nesse sentido, o filme Hand Catching Lead é sobre o tempo justo com que decidimos adiar um pouco mais o inevitável. O cinema como prolongamento essencial (nem mais, nem menos) de uma “fatia” de vida, como prática não subordinada à necessidade de fazer obra, mas simplesmente de tentar que as coisas permaneçam por mais um pouco de tempo, ou, na melhor das hipóteses, que sofram um ligeiro desvio. Quando falamos de cinema, é-nos permitido falar do que está aquém da potência-arte, que é a de elevar.
No filme de Serra, não chegamos a ver o produto dessa elevação. Vemos apenas uma mão que só sai de cena depois de, durante algum tempo, persistir em encontrar a folha que procurava. A mão parece dar por cumprida a sua tarefa por finalmente apanhar um pedaço de chumbo mais importante ou útil à construção da obra. Depois da persistência, há algo de irresoluto no último gesto: “aqui já não há mais nada a filmar”. Talvez este último gesto (precedido por uma espécie de espasmo que parece vibrar com a aproximação da folha “ideal”) não sirva aqueles que não sabem o que procuram quando filmam, mas que, ainda assim, filmam (cameram) pacientemente, como quem espera por algo de revelador. Nos casos em que não andamos em busca de fazer obra, mas simplesmente para aprender a suster aquilo que nos comove ao “cair” diante de nós, talvez a pergunta não seja “quando filmar?” mas sim “quando parar de filmar”?
A resposta, por sua vez, talvez seja idêntica a todas as relações em que se impõe uma paragem, um ponto final, e já não um breve desvio. Quando a camera(da)gem deixa de ser um jogo de improviso (uma dança de pugilistas sem fim) e se torna numa forma de prisão (um combate de boxe com vencedores e perdedores), numa rotina de gestos e timings apreendidos, já não há mais nada de novo a apre(e)nder. Quando filmar passa a ser uma forma de apenas prolongar o compasso de um ritmo já percebido, então o momento em que seguramos as coisas que “caem” deixa de conter a possibilidade de lhes imprimir um desvio – está apenas a adiar-se uma inevitabilidade. Mais tarde ou mais cedo, não há cinema (cameragem) que aguente o peso da realidade. É aqui que entra a singularidade da arte para nos salvar, aquela que somente verdadeiros artistas nos podem ensinar: “só aprendemos a cair com o que levantamos”.
(ao Pedro “Carrilho” dos Santos e ao Tomás Maia, por me terem deixado filmar à noite)
Turno da Noite (2014): nightshift