Todos os seres vivos estão interligados e todos cedem ao mesmo formidável impulso. O animal toma o seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga sobre a animalidade, e toda a humanidade, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, à nossa frente e atrás, numa carga arrebatadora capaz de derrubar todas as resistências e transpor todos os obstáculos, talvez até a morte.
Henri Bergson, A Evolução Criadora
Aposto que julgas que me acordaste sobre isto da carne?! Mas tu só conheces o trivial social sobre a carne. Não penetras além do medo social da carne! (…) Não falo do sexo e penetração, falo da penetração além do véu da carne! De um mergulho profundo no lago do plasma!
Seth Brundle em The Fly (A Mosca, 1986)
Mel Brooks, que produzira recentemente Elephant Man (O Homem Elefante, 1980) de David Lynch, foi quem abriu a porta a Cronenberg à sua primeira aventura com uma major de Hollywood, a 20th Century Fox. No entanto, o cineasta pôde rodar na sua Toronto, com a sua entourage técnica. Ao contrário do que sucedera em The Dead Zone (Zona de Perigo, 1983), o seu filme anterior, Cronenberg aceitou reescrever o guião original de The Fly, da autoria de Charles Edward Pogue, que adaptara o conto de George Langelaan (1957), que dera origem ao filme do ano seguinte, com um guião escrito por James Clavell.
No guião recebido por Cronenberg, Pogue usara a estrutura do filme de 1958. O protagonista, um cientista, vivia com a mulher numa relação duradoura, não sendo facultado ao espectador o período em que o casal se conhecera e apaixonara. Segundo o cineasta, a abordagem de Pogue era “tratá-los como um casal afligido por uma desgraça”, leia-se, por aquela metamorfose acidental. Desde logo, o protagonista era desinteressante, apenas instruído no que se relacionava com a tecnologia. Por isso, Cronenberg “inventou Seth Brundle (Jeff Goldblum) e fez dele um excêntrico”: era necessário que ele apresentasse uma perspectiva peculiar “relativamente ao que lhe estava a acontecer e falasse disso”, para tornar o filme “tenso e revelador”. No entanto, o que o fez interessar-se pelo projecto, em algo que já estava no guião de Clavell, foi a “premissa básica”, aquela transformação inadvertida ditada pela tecnologia, no cruzamento entre um homem e uma mosca, pois ao contrário do conto original, era muito “orientada para o corpo, muito consciente do corpo”. Apesar de achar as “personagens medonhas, os diálogos banais e o final medíocre”, havia no guião original com óptimos detalhes, como as unhas das mãos do protagonista a soltarem-se. Por isso, Cronenberg lançou-se na reescrita total do guião, que passou a ser “preponderantemente dele”, mas que “sem a versão original não seria possível”. Nesse processo, o primeiro desafio era permitir ao protagonista articular as suas ideias, expressar a forma como olhava para aquela doença, ao contrário do filme original em que o cientista usava a máquina de escrever. Essa capacidade de acedermos ao modo como o protagonista “racionaliza” a sua transformação era essencial para garantir ao filme “um discurso dramático”.
Cronenberg pretendia em The Fly falar das transformações do corpo, mas também da mente. As mudanças do nosso corpo acompanham o passar do tempo, “primeiro crescemos, depois minguamos”. Há apenas um período, razoavelmente duradouro, em que temos “a ilusão da estabilidade”. No entanto, com a mente estas transformações são ainda mais sofisticadas. As “mentes envelhecidas” apresentam “forças e fraquezas” quando comparadas com “as mentes jovens”. Não são, portanto, “uma versão deficiente” das mentes jovens, pois apesar de se revelarem mais frágeis no “acesso instantâneo a dados triviais”, apresentam “grandes poderes de compreensão e de síntese”. Como sintetiza Chris Rodley, The Dead Zone fora o último filme de Cronenberg “a lidar no mundo real com significativas implicações sociais das acções e experiências das personagens principais”; a partir de The Fly, “o cientista ou experimentalista recluso ocupará o centro do palco e tornar-se-á o protagonista”.
Perante mais uma experiência falhada no teletransporte de um babuíno, Brundle dirá a Ronnie (diminutivo de Veronica, Geena Davis): “Os computadores são burros, só sabem o que lhes dizemos. Não devo saber o suficiente sobre a carne. Terei de aprender”. Brundle, que convidara a jornalista a conhecer o seu laboratório, tinha realizado uma demonstração bem sucedida com uma das meias de nylon dela. Naquele lugar, que o cientista alienado usa como local de trabalho e domicílio, quase despido de tecnologia, dominado por escasso e obsoleto mobiliário, com apenas uma excepção: duas cabines de teletransporte, mediadas por cabos e por um posto de computador. Neste encontro, um boy meets girl em contexto científico, a invenção de Brundle está ainda incompleta, pois o que a máquina faz é analisar e identificar o componente a transportar, o que se revela eficaz apenas para objectos inanimados. É o primeiro de muitos gritos de Cronenberg durante o filme: o de pôr na boca dos seus personagens a primazia da carne, na relação com a máquina e com a tecnologia.
Brundle e Ronnie envolvem-se nessa mesma noite, intimamente, como se o sexo fosse o conhecimento da carne que o cientista precisava de experienciar. Ronnie dir-lhe-á no leito enquanto o morde: “É por isso que as velhotas beliscam os bebés; a carne deixa-as doidas”. Depois de provarem um bife teletransportado, que apresenta um sabor sintético, Brundle resolve o enigma, pois o computador estará a pensar na interpretação do bife, ao invés de reproduzir a carne, porque as máquinas desconhecem a carne: “A carne devia enlouquecer a máquina, como as velhotas a beliscar bebés”. Quase de imediato, Brundle realiza um teletransporte com sucesso de um babuíno. Um vapor de luz branca solta-se da cabine e invade o plano, uma luz que é uma metáfora para o triunfo da ciência, uma emanação da fonte de conhecimento.
A jornalista já aceitara registar o projecto, ao envolver-se no processo de investigação, na compilação dos seus antecedentes, na condição de apenas publicar quando a máquina estivesse desenvolvida e testada. As câmaras estarão presentes de uma forma quase silenciosa, mas a registarem as circunstâncias e as fases mais relevantes do projecto, na confirmação da imagem em movimento como um elemento que supera a mediação, na relação da carne com a tecnologia. Numa mecânica acelerada, a que voltaremos adiante, nessa mesma noite, Brundle e Ronnie são enquadrados no espaço como um registo do quotidiano de um casal no domicilio, a antecipar um melodrama. Brundle tinha apresentado a invenção como uma revolução de todos os conceitos de transporte, de fronteira e limites, do tempo e do espaço. Mas também tinha referido que desde criança que enjoava em veículos em movimento. Quando termina o registo em vídeo do transporte do babuíno, Ronnie dir-lhe-á que ele nunca mais enjoará de automóvel ou de avião, ao que o cientista completará: nem de triciclo. O projecto, dissera Brundle, culminaria com o teletransporte dele próprio, o que confirma uma das características dos cientistas de Cronenberg (e de Ballard), colocando o seu corpo no centro do seu trabalho experimental: a investigação como o culminar da possibilidade de resolução de um trauma pessoal.
Numa última metáfora, Cronenberg propõe uma possível fusão do masculino com o feminino, o que, a exemplo de outros organismos, permita a invenção de uma nova espécie humana, que apresente outras possibilidades.
As torres da baixa da cidade, em aço e vidro, tomadas pela tecnologia, são o contraponto ao mundo de Brundle e do seu armazém-laboratório. Stathis Borans (John Getz), o editor de Ronnie e com quem ela manteve uma anterior relação amorosa, protagoniza um jornalismo feroz e mercantil, que equivale às grandes corporações de filmes anteriores de Cronenberg, correspondendo, portanto, ao antagonista do cientista. O filme é de uma economia notável, apresentando apenas três personagens desenvolvidos, com escassos lugares, concentrado quase na íntegra em interiores. Segundo Chris Rodley, Cronenberg terá sintetizado o seu projecto de filme como “basicamente, três pessoas num quarto a conversar”, o que confirma o crescente apelo do trabalho do cineasta em “divagar em direcção ao interior” dos personagens e de “experiencias claustrofóbicas” condensadas nas actividades do protagonista.
Ainda nessa primeira noite, Ronnie cede à chantagem do editor e deixa Brundle a celebrar sozinho o êxito com o teletransporte do primeiro organismo vivo. O cientista, embriagado pelo sucesso e pelo champanhe barato, decide teletransportar-se. O espectador, ao contrário do protagonista, tem acesso à imagem que evidencia a presença de mais um participante na viagem: uma mosca. Cronenberg coloca a mosca em primeiro plano, com Brundle por detrás, antecipando o desfecho daquele transporte e da prevalência na fusão. Ainda antes de acionar a máquina, há um plano que junta Brundle (dentro da cabine) e o babuíno, como se fosse um retrato da evolução da espécie humana: o cientista coloca a mão sobre o vidro a saudar o seu antepassado. A câmara testemunha o aparentemente bem sucedido transporte e, a atravessar o fumo branco, o corpo de Jeff Goldblum é enquadrado num ligeiro contrapicado, o que sinaliza um acto heróico que se cumpriu, independentemente das contrariedades: a ousadia da ciência é mais relevante do que os problemas que o processo acarreta. Em mais uma das metáforas de Cronenberg, a enfatizar a importância da carne, o que fez Brundle acelerar o seu teletransporte, sem aguardar as necessárias análises ao babuíno, foram os ciúmes de Ronnie, os ciúmes da carne.
Os sinais da transformação de Brundle expressam-se de imediato, nessa mesma noite, percepcionados por Ronnie, que regressara, entretanto, ao armazém. O cientista adquire características que o aproximam de um super-herói, na forma supra-humana como se movimenta e exerce a força. Enquanto Brundle disserta sobre a possibilidade de a máquina o ter purificado, de ter conferido outras possibilidades ao seu corpo durante o processo de rematerialização, Ronnie observa e comenta o adicionar contínuo de açúcar no café pelo parceiro. O auto-centramento de Brundle, fá-lo delirar ao encontro da utopia do cientista: Ele terá finalmente a possibilidade de ser ele próprio, no culminar do alcance do trabalho da sua vida. Depois de horas de sexo, surgem as primeiras fissuras na relação: ele continua insaciável e nem precisa de dormir, ela está fatigada. O Frankenstein precisa de uma noiva: Brundle pede para Ronnie se submeter ao teletransporte. Mas ela recusa-se, diz que algo correu mal no processo, que ele está a mudar, a transformar-se. Ronnie aponta-lhe o mau aspecto, um cheiro desagradável, talvez o cientista esteja doente. Na formulação do binómio transformação-doença, Brundle é já resultado de um duplo movimento que junta à sofisticação da espécie humana características que apontam a uma regressão animal.
Pouco depois, sozinho, Brundle encara no espelho a transformação do seu rosto. Dos seus dedos solta-se um líquido viscoso e as unhas caem, como um artificio desnecessário. O cientista murmura: Estou a morrer, é assim que começa? A máquina mostra-lhe a fusão homem-insecto, ao nível molecular e genético. O cientista pede para Ronnie o visitar. Se o filme se afirma como uma ficção orientada para a ciência, nunca abdica do foco na história de amor. Ele diz-lhe que todos os dias há mudanças, envelheceu de forma acelerada, em mais uma afirmação daquele corpo como o objecto de estudo científico, mas também de tragédia pessoal. Cronenberg reitera o valor da inteligência humana quando comparada com o funcionamento da máquina: o computador ficou confuso, não devia haver dois padrões genéticos e em consequência disso juntou-os, promoveu a fusão genética de Brundle com uma mosca doméstica. Como um dos personagens de The Brood (1979), Brundle diz que está a acontecer uma revolução no seu organismo, um caos celular, que se revela como uma forma bizarra de cancro. Receia desintegrar-se. O plano em que Cronenberg junta Ronnie ao Brundle transformado e amparado por muletas explicita o envelhecimento brusco do cientista. A personagem Veronica no contexto bíblico entregou o seu véu a Cristo, durante a via sacra, para que ele pudesse limpar o rosto. A Veronica de Cronenberg observa o rosto enrugado do protagonista e uma orelha que cai, e abraça-o. A misericórdia passará a ser o atributo essencial da performance de Geena Davis.
Para Chris Rodley, The Fly permitiu a Cronenberg voltar aos seus temas de eleição: “ciência, transformação e doença”, no reencontro com a “obsessão pela carne”, através de um protagonista que está a “experienciar uma revolução do seu organismo”, que “emerge como uma metáfora no processo de envelhecimento”. Coloca no centro uma história de amor “com efeitos especiais”, que encena a “tragédia da mortalidade”, no envelhecimento acelerado, “na transformação difícil de acomodar”, pelo personagem e pela estética do filme, que resulta da fusão genética de um humano com um insecto. Cronenberg convoca regularmente os sonhos como material de trabalho. Ele confessa que, por vezes, quando conta um sonho que “o aterrorizou” a alguém, apesar de descrição minuciosa, percebe no rosto da outra pessoa que “o terror não está lá”. E então compreende que não era a narrativa, a acção do sonho, que promovia o terror, mas sim o “sonho ele mesmo”, o “tom”, a “ambiência”, como “algo tangível”: “acordamos e ainda estamos a vivê-lo”. O cineasta partilha um dos seus sonhos: “estava a ver um filme e o filme estava a fazê-lo envelhecer rapidamente”. O filme estava, então, a “infectá-lo, a passar-lhe uma doença”, que na “essência era o seu envelhecimento”. Ainda no sonho, o “ecrã transforma-se num espelho onde ele se via a envelhecer”. Esse sonho que o “acordou apavorado” é sobre o que ele quer falar em The Fly e em vários dos seus filmes.
A transformação de Brundle aparenta-o progressivamente a um insecto. O processo é percepcionado, pelo espectador e pelo personagem, não apenas como degenerativo, mas como algo que acrescenta propriedades a esta nova criatura, como caminhar com desenvoltura pelas paredes e pelo tecto. O cientista verbaliza o pensamento de Cronenberg, de que a doença pode ser benévola e conferir atributos, sendo a mutação um prenúncio do desenvolvimento da espécie: “Fui atacado por uma doença com um objectivo, certo? (…) Afinal, talvez a doença não seja assim tão má”. Brundle revela, então, ter percebido o que a doença pretende: quer transformá-lo noutra coisa, numa mosca de 90 kg. Cumpre-se a premissa das narrativas de Cronenberg: um acidente impõe uma metamorfose mediada pela ciência, na criação de uma nova espécie, a “Brudle Fly”. O cientista produz uma demonstração para a câmara, sobre a forma como se alimenta. Começa por vomitar um líquido (que concentra uma enzima) para cima do alimento, para que posteriormente o possa ingerir sob a forma líquida. É o editor Stathis quem assiste à gravação, num raccord com a cena anterior, como se estivesse a assistir a um filme de terror. O Homem-Mosca continuará a lidar com a máquina, a procurar refinar a nova espécie, num trabalho científico ininterrupto. Mas o computador já não lhe reconhece o padrão de voz: a máquina identifica-o como algo não humano. Depois de conferir as mais recentes transformações na imagem devolvida pelo espelho, a criatura guarda os últimos dentes, como quem armazena peças de arqueologia, meros artefactos de uma era passada: “o armário de medicamentos é agora o Museu Brundle de História Natural”.
Após a estreia e disseminação de The Fly pelos finais dos anos 80, o público e uma boa parte da crítica olharam para o filme como uma tentativa de usar a epidemia da SIDA como subtexto. Segundo Chris Rodley, Cronenberg “resistiu a esta interpretação”, pois entendeu que isso enfraquecia o filme, ao “subjugá-lo a interpretações sociais e políticas específicas”. Cronenberg afirma que “mesmo que não houvesse SIDA, ele teria feito The Fly”, da mesma forma que “fizera Shivers (1975) e Rabid (1977)”. Quando lhe elogiam o carácter “proféctico” desses filmes, ele responde com a “noção da nossa condição e existência”, e exemplifica com a “praga da sífilis no virar do século”, disseminada em grande medida pela prostituição. O cineasta aponta à crítica um excesso de “ligação ao que está a acontecer” no presente, sendo que para ele estas “percepções sobre a doença” permanecem num trabalho continuado e exemplifica com um pequeno cartaz na parede do consultório de Shivers: “o sexo é a invenção de uma doença venérea inteligente”. É evidente que esta frase encaixa no “conceito, publicidade e medo” associados à SIDA, mas insiste que esse desligar de um assunto particular é determinante para que os filmes mantenham a validade, continuem a ser “poderosos daqui a trinta anos” quando se espera que a epidemia da SIDA possa ter afrouxado. Portanto, a ligação com a SIDA é “muito superficial”. Os filmes discutem o envelhecimento, a doença e o cancro, a “nossa vulnerabilidade” e a “tragédia da perda humana”. São muitas vezes uma catarse para a “dificuldade de aceitar” a morte, da necessidade de “entrar num acordo”, pois temos de o fazer. É preciso criar a consciência, “cavar mais fundo”, pois todos temos a “doença, a doença da finitude”, é o nosso “pecado original”: “a consciência da inevitabilidade da nossa morte”. Cronenberg pretende olhar o envelhecimento focado na percepção individual. Insiste que “as pessoas velhas não pensam que são velhas”, não se vêm desse modo, podem ser quebradas pela “dor e pela enfermidade”, mas quando “alguém morre aos 80 anos, é a morte de uma pessoa jovem”: é assim que “ela se vê”.
Ronnie descobre que está grávida de Brundle. Num sonho, um pesadelo que a realização de Cronenberg não sinaliza, da mesma forma que em filmes anteriores não se apartavam as imagens da “realidade” dos delírios dos personagens, é Cronenberg quem interpreta o obstetra que ajuda a nascer a criatura, uma larva gigante a contorcer-se, um enorme falo ensanguentado, que abandona as entranhas de Veronica. O Homem-Mosca diz a Ronnie que não deve voltar ao seu covil, pois apesar de ele ter tentado ser o primeiro insecto político, o insecto despertou definitivamente nele e os insectos são brutais, não têm compaixão, não são confiáveis. O personagem de Jeff Goldblum, que Cronenberg elogia por ter produzido uma interpretação pungente por detrás daquele fato de borracha e da maquilhagem, é ainda um humano tomado pela melancolia. E, nesta réstia de uma história de amor, a banda sonora de Howard Shore preenche as imagens, na antecipação e no sublinhar da tragédia.
A criatura irromperá na clínica onde Ronnie fora levada para abortar. A sequência em que Brundle transporta a sua Veronica nos braços, no topo do edifício, remete para a acção de um super-herói, como o salvamento de Lois Lane pelo Super-Homem. Ronnie chora, diz que tem medo do que pode ser aquela criança, quando Brundle lhe implora para não o matar, não matar o que resta dele. A criatura Brundle propõe à companheira grávida uma nova fusão, a junção dos dois na cabine de teletransporte, que permita o encontro definitivo dele com Ronnie e o feto que os dois geraram. Numa última metáfora, Cronenberg propõe uma possível fusão do masculino com o feminino, o que, a exemplo de outros organismos, permita a invenção de uma nova espécie humana, que apresente outras possibilidades. Numa sucessão de transformações, o corpo de Brundle desintegra-se, no que era uma espécie de casca que se quebra, como uma crisálida que se cumpre para dar a conhecer a verdadeira criatura, até então oculta: o insecto. Um acto de misericórdia de Veronica responderá aos lamentos, aos gemidos da criatura depois da última fusão, do derradeiro acidente: a combinação do insecto Brundle com a máquina, que resulta numa criatura efémera e desagregada, mas ainda assim uma tentativa da ciência.
Cronenberg trabalhou bastante num final alternativo, no parto de Geena Davis. O público esperaria “o pior”, como antecipou Rodley, depois do “pesadelo” em que Cronenberg (“ele mesmo”) auxiliara no nascimento de uma “larva gigante”. Mas a audiência iria receber, para sua “surpresa”, a origem de uma “criança borboleta”, a concretizar o optimismo do melodrama científico, na génese de uma nova e articulada espécie. No entanto, Cronenberg diz que o “público não recuperaria para esta coda”, depois do final “devastador” de Brundle. O cineasta diz que aprendeu com Shakespeare: “no final da tragédia deve haver um corte para sugerir que o reino avançaria para um caminho melhor”. Foi isso que tentou e pensa que se traduziu num final mais poderoso e mais preciso na tentativa de “lidar com a tragédia” do casal protagonista.