Correndo o risco de cair no mais retumbante lugar-comum, que é dar como título a este texto o mesmo que George Orwell deu ao seu romance, nada caracteriza melhor a ascensão nazi do que a imagem do triunfo dos porcos (na sua dimensão mais imunda, grotesca e violenta). É certo que é um lugar ingrato para o porco-animal, aparentemente tão asseado e amigável; no entanto, é um arquétipo que tem servido para as mais diversas circunstâncias – a interdição do consumo de carne de porco na cultura muçulmana, a peça-filme de Pier Paolo Pasolini, Porcile (Pocilga, 1969), o filme de Manoel de Oliveira, Os Canibais (1988), o primeiro episódio da série Black Mirror ou até mesmo o caso Joana, a criança assassinada pela mãe e o tio, esquartejada e dada aos porcos. A imagem do porco parece estar destinada a assombrar a consciência colectiva, da cultura religiosa à cultura popular, não só pelo seu característico revolver imundo na lama, mas também porque é aparentemente dotado de uma voracidade titânica, sem ética, nem estética. E não é por acaso que no único momento em que o casal nazi é propositadamente “parodiado” na sua dimensão mais grotesca (ou seja, Glazer nunca sente a tentação maniqueísta ou didática de caracterizar aquele casal como gratuitamente abjecto; pelo contrário, o casal é abjecto porque, através das mais diversas acções ao longo do filme, revela-se intrinsecamente abjecto em toda a sua condição), enquanto conversam sobre uma eventual viagem a um spa na Itália fascista, trocam um par de oincs um com o outro, como se o único gesto possível de intimidade só pudesse ser o som onomatopaico de um porco.
Um segundo aspecto que quero destacar, antes de me lançar ao core do texto, é a escolha do frame que utilizei. Tal escolha prende-se com uma posição ética que recusa destacar o inimigo, até porque o filme – e essa é a maior virtude de Zona de Interesse – sendo sobre o casal, não é sobre eles. Talvez possa parecer um paradoxo, porém o filme não procura interessar-se por eles, humanizá-los ou mesmo criticá-los. Muito menos se deixa seduzir pelo rigor das vestes ou do cabelo – tal como Visconti se deixou seduzir, em La caduta degli dei (Götterdämmerung)(Os Malditos, 1969), filme responsável pela (re)estitização do nazismo: do nazi-aristocrata de bons modos, de linguagem coloquial e irrepreensivelmente bem vestido. O que Glazer procura são, acima de tudo, os efeitos daquela presença. Tanto o comandante das SS, Rudolf Höss, como da sua mulher, Hedwig – apesar de não podermos ignorar a sua dimensão pessoal, até porque tal leitura incorre no risco de os desculpabilizar ou descriminalizar (e este foi um dos ataques feitos à teoria de Hannah Arendt) –, há algo que os transcende e os coloca como parte de um colectivo pequeno-burguês de poderes ilimitados. Pasolini, em Salò o le 120 giornate di Sodoma (Saló ou 120 Dias de Sodoma), através da conversa entre dois oficiais nazis, diz que não há nada mais anárquico que o poder. De facto, não houve nada mais anárquico do que o poder nazi, mesmo na sua dimensão mais racional e burocrática. Porque apesar da linguagem do oficial-director-burocrata ser incapaz de se referir aos judeus exterminados nas câmaras como “judeus”, preterindo invariavelmente a palavra “carga”; assim como a matriarca-dona-de-casa-proprietária, oriunda das classes baixas e que através do nazismo, pôde ascender à “boa vida” (mostrando inclusive um certo orgulho no título de “Rainha de Auschwitz”), o retrato com que ficamos destas duas figuras é que por detrás da “banalidade do mal”, codificada e limpa, há um exercício de poder indiscriminado, que ameaça a todo o momento a vida de quem os rodeia (e a própria vida deles, pois o caso da substituição temporária do comandante Höss de Auschwitz, é também parte da volatilidade do poder).
Possivelmente aquele prisoneiro que escolhi para ilustrar este texto não é igualmente “digno”, talvez seja um kapo (figura difícil de classificar, porque apesar da coação exercida dentro dos campos de concentração pelas SS, não podemos ignorar o lado colaboracionista e mesmo activo no terror físico e moral perpetrado pelos mesmos contra os prisoneiros que eram encarregues de vigiar). Certamente não é um judeu (apesar de terem existido kapos judeus, ainda assim eram uma minoria face à totalidade de kapos existentes), porque os judeus não tinham acesso à casa (a própria Hedwing em conversa com a mãe, quando esta lhe pergunta se algum dos empregados é judeu, ela responde peremptoriamente: “Aqui só há polacos, os judeus estão todos do outro lado”). No entanto, este frame do filme não deixa de ser o resultado daquela presença (tanto das SS, como dos prisioneiros, que raramente são filmados, porque a vida e a morte daqueles homens, mulheres e crianças acontece apenas do outro lado do muro), daquela lógica prisional e de extermínio (que assentava fundamentalmente no trabalho e no trabalho enquanto máquina de morte – “o trabalho liberta”) e daquele tempo (os códigos, as vestes, os símbolos, os cabelos, a arquitectura, o darwinismo social, os negócios).
Tal como Resnais, Glazer filma o que resta e é nesse resto que somos confrontados com a barbárie.
Se é certo que a grande fraqueza do filme está no seu artifício enquanto dispositivo formal – há uma série de maneirismos absolutamente desnecessários, mostrando ainda o forte ascendente que Kubrick tem sobre a geração de cineastas contemporâneos, que de Lanthimos a Glazer, fazem escola de ângulos, fish eye e distorções sem propósito algum, apenas pela vacuidade do gesto, do fascínio autocentrado na capacidade de poder fazê-lo enquanto realizador-deus –, enquanto dispositivo ético, a escolha de não filmar a violência dentro dos campos [ou pior, de a romantizar ou de a tornar suportável, como é o caso de A Vita è Bela (A Vida é Bela, 1997) de Roberto Benigni, filme em relação ao qual Claude Lanzmann sempre foi manifestamente contra], à semelhança de um quase contemporâneo seu, Saul Fia (O Filho de Saul, 2015) de László Nemes, outro caso que face à impossibilidade de filmar o horror na sua totalidade, opta por seguir um prisioneiro em close-up constante, em que as costas do mesmo são praticamente a totalidade daquilo que é mostrado dentro do campo de concentração. Não é que a vida dentro dos campos de concentração não possa ser mostrada – pelo contrário, ela deve ser mostrada, porque apesar do anátema que Adorno lançou às artes e que durante muito tempo vingou, “que depois de Auschwitz, escrever um poema é um acto bárbaro”, colocar um interdito às artes de pensar e representar os campos de concentração, é proibir a possibilidade de pensar sobre o mesmo ou de que alguma maneira o que aconteceu é irrepresentável (o que coloca o perigo do apagamento histórico). E são vários os exemplos que contrariam essa tese do filmar ou pensar o “irrepresentável”, porque da filosofia de Georges Didi-Huberman, que apesar das inúmeras controvérsias, foi capaz de pensar sobre uma fotografia-limite, onde os prisioneiros aparecem a ser gazeados dentro de uma câmara de gás; ao cinema, desde os documentários de referência, Shoah (1985) de Claude Lanzmann, ao Nuit et brouillard (Noite e Nevoeiro, 1955), de Alain Resnais, passando pelas obras ficcionais que encenam a vida dentro dos campos, em que destaco o tocante filme de Wanda Jakubowska, Ostatni Etap (The Last Stage, 1948), realizado por uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, ou ainda, um dos filmes-charneira do cinema polaco, Pasażerka (A Passageira, 1963) de Andrezj Munk – este são alguns dos exemplos que ousaram pensar e representar a vida dentro dos campos de concentração.
Contudo, o que Glazer procura não é dimensão dentro de campo (e a sua possibilidade de representar), mas o fora de campo (e o termo “campo”, serve tanto para o cinema, como para o próprio campo de concentração). É através do fora de campo e das suas “contaminações” (aquilo que acontece dentro do campo, mas que se manifesta no seu exterior) que Glazer abre o filme à possibilidade mais extrema – os gritos de comando e de medo, as chaminés dos comboios e das torres dos crematórios, os artigos roubados aos prisoneiros dos campos e que servem para ornamentar as esposas dos funcionários das SS, as botas cobertas de sangue do comandante Höss, a cor avermelhada que invade o quarto da mãe de Hedwig, as palavras que a criança repete dos carcereiros e prisioneiros enquanto brinca com os seus bonecos, a figura espectral da filha sonâmbula que vagueia pela casa e olha absorta “lá para fora”, as cinzas despejadas ao rio (como se esta fosse a figura do eterno retorno, impossível de recalcar mesmo sobre o “ideal nazi”, porque o horror e a violência perpetrada contra os judeus, os comunistas, os homossexuais, os ciganos, os deficientes mentais e físicos, está constantemente a voltar para os assombrar, para relembrar a consequência das suas acções, para corromper a sua “limpeza”), o travelling avassalador de Hedwig a correr em direcção ao marido junto ao rio, que dá a dimensão do tamanho e da estrutura do campo de concentração, a placa dentária que o filho mais velho analisa na cama, como se esta estivesse destituída de um corpo, de uma vida, fosse apenas uma peça invulgar de um qualquer gabinete de curiosidades.
Mas se a dimensão intolerável do nazismo está essencialmente fora de campo e nas sugestões que suscita, há igualmente uma dimensão dentro de campo representada e também ela praticamente intolerável. É certo que a comparação entre o porco e o nazi ou mesmo a classificação da acção nazi enquanto “obscena”, apesar de vedar a possibilidade de justificar ou relativizar as acções cometidas pelo nazismo, pouco ou nada quer dizer, mesmo sendo justas para classificar as acções dos nazis dentro da gramática do horror, impedem a possibilidade de pensarmos essas mesmas acções como parte do território da acção humana. Olhar simplesmente o nazismo como “intolerável” e os nazis como “monstros”, coloca aquele tempo e aquele sistema em suspenso no próprio tempo histórico, fazendo dele uma excepção. Pelo contrário, tanto Arendt como Foucault demonstraram precisamente o contrário, de que o nazismo é antes o resultado de uma série de processos em curso e de que a História não caminha rumo à “humanização” e ao “bem colectivo” (que tanto Kant como Hegel vaticinaram). Os nazis, e o romance de Martin Amis é particularmente sensível a essa dimensão, não são seres de outro mundo (tal como tantas vezes os alienígenas surgem representados nos filmes de ficção científica) ou mesmo uma espécie excepcional de humanos (apesar de ter sido essa a filosofia que justificou a superioridade do povo alemão), mas antes o resultado concreto de um sistema que deu à burguesia a possibilidade indiscriminada de transformar o outro como “inimigo da nação”, arrestando e salvaguardando a propriedade e o poder enquanto classe dominante, e ao capitalismo, enquanto sistema económico sem barreiras ou limites morais, dispondo desses mesmos corpos enquanto parte essencial à produção de bens na industria alemã (é particularmente evidente em dois momentos no filme – primeiro, na conversa entre Hedwig e o marido, sobre o facto de empresas como a Siemens estarem “a mudar-se para aquela parte”; como num segundo momento, em que um comandante nazi está preocupado com o plano de extermínio levado a cabo pelo comandante Höss, pois este precisa daquela força de trabalho para operar nas fábricas).
Além de que o filme começa e acaba com dois planos particularmente inteligentes: o primeiro é o “ideal nazi” (aquele que a dado momento é descrito por Hedwig ao marido como a realização do sonho hitleriano, para justificar simplesmente a preocupação mesquinha de se manter como proprietária da casa), junto a um lago, numa cena bucólica de verão, onde adultos e crianças brincam (e, no entanto, o corte de cabelo denuncia logo quem são aquelas pessoas e em que tempo histórico estamos situados); como o plano final, em que o comandante Höss após um exame médico, ao descer as escadas do edifício, o mal parece começar a tomar conta daquele corpo, como se um cancro não visível ao olho clínico o estivesse a corroer por dentro, como se todo o horror por ele perpetrado finalmente lhe tocasse. Através de um gesto de desterritorialização do espaço e do tempo que ao perder a sua dimensão concreta, abre um portal que o confronta com o nosso presente, com aquilo que resta do seu legado, do “grande sonho alemão”. Tal como Resnais, Glazer filma o que resta e é nesse resto que somos confrontados com a barbárie. É sobre a pilha de bens, de ossos e de roupa que tomamos a vaga consciência do que foi a máquina de extermínio nazi. Além de que o campo de concentração-museu aparece apenas com o pessoal da manutenção (daqueles que cuidam e preservam a memória), impedindo a imagem do campo de concentração-museu enquanto espaço turístico (preocupação que tem vindo a ser suscitada por diversos críticos que vêem Auschwitz a converter-se um ponto de passagem nos guias e onde massas de turistas afluem para tirar fotografias ou pior, como a dado momento, foram instalados aspersores que serviam para refrescar os turistas ao longo da caminhada, invocando a memória dos chuveiros a gás). São, por isso, mais as qualidades que os defeitos e maneirismos presentes no filme de Glazer, porque, apesar da preocupação estetizante do filme, nunca há a preocupação de estetizar o nazismo ou os nazis. Mesmo quando eles surgem “humanos” (por exemplo, no cuidado de Hedwig com as suas flores ou na carinhosa despedida de Höss à égua), este contraste entre dimensões, suscita em nós, espectadores, um terror ainda mais profundo, porque é possível coabitar a indiferença perante a vida humana dos presos e exterminados e o cuidado particular com a vida animal e vegetal.
Se há momento humano no filme, é apenas no episódio-fantasia, o da criança que, à semelhança do conto de Hansel e Gretel, deixa umas maçãs para os prisoneiros se alimentarem, maçãs essas que servem também como elemento que nos conduz ao caminho da resistência, ao lugar da casa enquanto abrigo contra o exterior, o espaço que permite a liberdade, mesmo que codificada, de tocar e entoar a canção yiddish sobre o futuro livre, sobre o triunfo contra o nazismo. Uma última nota ainda sobre dois aspectos particularmente inteligentes do filme: o filme não escolhe apenas o alemão como língua, mas antes a língua particular do III Reich (a todos os interessados, o livro-diário de Victor Klemperer é essencial a este tema), um vocabulário que permitiu não só desumanizar o inimigo (tão evidente na cena entre a mãe e a filha, que comenta que a patroa judia deve estar do outro lado do muro, aquela “imunda” que só lia propaganda “comunista”; assim como através da codificação burocrática, a acção surge como “limpa” e livre de encargos morais), como a música de Mica Levi (a mesma compositora de Under the Skin [Debaixo da Pele, 2013]), que pontua apenas certos momentos e nunca serve de corroboração à imagem, mas antes como elemento de disrupção ou de fenda à própria imagem.
★★★☆☆