“Era simples ser múltiplo; bastava ter o centro em toda a parte” (Herberto Helder) – esta é a lei da vida, a lei do cinema. Não é coisa pouca. O cinema leva-nos à pergunta fundamental na era da “economia da atenção”: como é que damos a ver (a pensar) o que não é visível a olho nu?
O cinema (ainda) é a materialização do intervalo que nos separa da correnteza do mundo. Face à possibilidade de interrompermos o tempo e de o sujeitarmos à nossa temporalidade, face ao fascínio da omnivisão e do imediatismo, o cinema é o último reduto do diferimento, a última disciplina de educação visual capaz de nos devolver a cegueira, por consequência, de nos voltar a fazer depender uns dos outros. Como na parábola budista dos cegos e o elefante, o cinema é o “buraco” através do qual podemos vislumbrar a luz exterior e, simultaneamente, o caminho que conduz ao interior.
Eis que surge, então, a pergunta essencial: como filmar? Ou melhor, como é que filmar ainda pode evidenciar um programa de resistência na era da linearidade (leia-se, na era da ausência de profundidade)?
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O movimento pressupõe sempre um certo grau de violência, por mínimo que seja. Manoel de Oliveira disse-o bem: “O próprio acto de filmar… quero dizer, de fotografar, é uma violência”. A hesitação de Oliveira entre os verbos filmar e fotografar, talvez menos inconsciente do que à primeira leitura pareça, evidencia a violência que está na base de qualquer imagem técnica (na acepção de Flusser, uma imagem programada por aparelhos, não-humana por definição). Se o cinema tem a capacidade de nos e-mocionar, de nos pôr em movimento, é porque as suas operações de movimentação, remoção ou deslocação implicam a intervenção de uma máquina no real – não somente a câmara de filmar, entenda-se, mas o aparelho cinematográfico, político e ideológico com que se filma (para estabilizar ou transformar) a realidade. Daí que tenha sido Bresson a ver bem (quem mais?) o problema fundamental do cinema: “Problema: fazer ver o que vês, por intermédio de uma máquina que não vê como tu vês”. E daí também que o problema fundamental de quem filma não seja o “porquê”, o “onde”, o “quando” ou “quê”, mas simplesmente o “como”.
Se há tantas respostas possíveis àquele “como”, quando nenhuma de carácter prescritivo é possível dar, é porque alguns filmes (poucos – os melhores ou os mais perigosos) reinventam o modo como se filma, seja o que for, à sua maneira. Se é certo que “O cinema não são as histórias, é o modo de as filmar” (João Botelho), é possível ir mais longe e dizer que a única coisa que interessa no cinema é o modo como se filma. E daí que não seja possível ensinar como filmar.
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Ainda assim, a pergunta impõe-se: como filmar? Ninguém ou nenhuma escola devia ousar uma resposta, pois é o “como” que define o estilo de cada um, isto é, não somente a maneira como filmamos, mas também a maneira como vivemos. Filmar e viver seguem um mesmo método (ou anti-método, lá irei), porque a maneira como vivemos está ligada à maneira como filmamos e vice-versa. Filmar, para quem vive artisticamente, é a suspensão da vida, assim como viver é a suspensão da criação. Eis a riqueza do cinema – e pobres daqueles que se deixarem capturar pela via “profissionalizante” de um cinema impessoal que se apodera da totalidade do seu tempo.
É essa a razão pela qual a obra dos grandes cineastas só ambiguamente se confunde com a sua biografia. Se, como escreveu Herberto Helder, “o estilo é a criação da dignidade”, descobrir como filmamos é a via para descobrirmos a forma do nosso movimento (e a forma da inscrição do nosso ritmo) no mundo. No “como”, consubstanciam-se todas as perguntas de fundo, porque filmar como modo de vida (não falo de necessariamente fazer filmes, mas sim de filmar como forma de pensamento e criação) é modelar os intervalos da própria vida. Quando filmamos, mais do que simplesmente suspendermos a métrica da normalidade, confrontamos a vida (o espaço e o tempo) que nos envolve de forma ilusoriamente ininterrupta. “O poeta não transcreve o mundo, mas é o rival do mundo” (de novo, Herberto Helder).
Poderíamos acrescentar: o cinema foi a maior invenção (a maior in-disciplina) que já se criou para saber como lidar com o mundo (des)conhecido. Talvez por isso, o único cinema que vale a pena ensinar é aquele que nos ensina a ser livres. Na política como na arte, a liberdade é a única forma de vida por que vale a pena lutar.
Como filmar tendo em vista ou tendo por base a liberdade? Como inventar o nosso próprio estilo, a nossa verdade? Para tal não há método. Ainda assim, apontemos as duas e únicas formas de filmar possíveis: extraindo ou escavando.
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Primeira hipótese: extracção. Acto ou efeito de extrair. Separação de uma substância do corpo de que formava parte. Arrancamento. Retirar ou sugar a essência de alguma coisa. Em sentido figurado: conseguir algo com muita dificuldade, com esperteza ou violência: extrair as verdades do incriminado.
Convoco Kazuo Hara, o mestre do “documentário de acção”. Na sua autobiografia, Camera Obtrusa, o japonês confessa a necessidade de estar pronto para todos os tipos de confrontos com o Outro: “Esse confronto (struggle) em si nada mais é do que o drama vivo e vibrante da vida humana”. Confessa também que sempre desejou “encontrar o que está enterrado no interior dos seres humanos, de modo a trazê-lo à superfície”. Sobre o seu método, diz ainda que “a câmara é absolutamente necessária” para “encontrar” a verdade do Outro e, simultaneamente, a via pela qual acede ao “outro lado”, à dimensão de si que ainda lhe é desconhecida: “Encontro-a uma ou duas vezes por filme”, diz-nos.
Hara é o exemplo superlativo de um artista livre, desalinhado, pois o seu método é irreproduzível e incompatível com as extracções de grande escala. No reverso das suas técnicas de “extracção da verdade”, encontramos a força de uma “torrente chamada vida”. Ele é um dos poucos que podemos dizer ter estado à altura de um Sergei Eisenstein. Ambos são figuras faustianas capazes de domar o “cine-punho” (a maquinaria militar) do cinema com a delicadeza dos poetas.
Em Gokushiteki erosu: Renka 1974 (Extreme Private Eros: Love Song 1974, 1974), seguimos a gravidez de Miyuki Takeda, ex-companheira de Kazuo Hara. O filme encena um jogo íntimo de performances, identidades, ciúmes e confrontos interpessoais, numa atmosfera política extremada pelas ondas de choque dos movimentos estudantis dos anos 70, no Japão. No seu momento climático, presenciamos um nascimento natural e em directo, observado de um ponto de vista ostensivamente frontal, escutado com proximidade. Levando ao limite o cinema de acção deste realizador japonês, o corte que instala esse plano abre uma ferida no filme, tal como a vagina de Takeda, qual boca de cena, se assemelha a uma fenda negra na imagem, da qual brota uma forma nascente. Medicamente, trata-se de um parto não assistido por opção de Takeda; ontologicamente, está-se perante uma coreografia de testemunhos, da qual a audiência faz parte. É esse o efeito (est)ético principal dos planos fixos no cinema: obrigar a escutar obedientemente o que ‘fala’ (“obediência” provém do latim ob-audire, génese da palavra “audiência”, ainda sem o sentido da audição).
Tudo o que precede aquele momento do filme (literalmente tudo – a história da arte e a do cinema em particular) desagua nesse plano em estado nascente. Qual parteira, a câmara de Hara concretiza uma ontologia da cumplicidade, como nas primeiras tomadas de vista dos irmãos Lumière, nas quais o espectador recebia “nos braços” um novo mundo “do lado de cá” do enquadramento. Num só lance de extracção, Hara leva ao cume um cinema sobre as profundezas insondáveis do ser humano: vir ao mundo é ascender improvavelmente à superfície de visibilidades numa confusão de reflexos; é ser enlevado numa teia de rostos (não por acaso, é a busca de semelhanças com pai e/ou mãe que define o ser nascente) em estado de guerra.
Em suma: vendo o cinema (e lendo a autobiografia) de Hara, é evidente que o seu violento método de extracção, o seu “como”, o ensinou a viver no meio do caos.
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Quando filmei o nascimento da minha filha, tornou-se evidente para mim que fazer imagens é (só pode ser) uma forma de extracção simultaneamente delicada e violenta de vida. O cinema é a máquina que tira mais violentamente vida à própria vida. E a forma como se filma (como se mostra) um nascimento diz tudo sobre a delicadeza (ou não) dessa extracção – é a verdade do nosso estilo ‘escancarado’.
Aprendi com essa filmagem e, mais tarde, também com o filme de Kazuo Hara, que não devemos extrair nada da vida a não ser que almejemos produzir mais vida a todo o custo. Aprendi que no cinema de pequena escala, tal como na vida, não há espectadores, há cúmplices, e que esses serão sempre a minoria, pois fazer um filme livremente implica correr o risco de partir o frágil elo que nos liga/separa do realismo pragmático em que habita a maioria.
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Segunda hipótese: escavação. Acto ou efeito de escavar (abrir buracos ou cavidades). Trabalho de remoção ou de desobstrução de terras para alterar um terreno. Operação de deslocar terras (abertura de cortes, terraplenagens etc.). Em sentido figurado: estudo, investigação, pesquisa.
Em O Olho Interminável, Jacques Aumont fala brevemente de um pequeno género da História da Pintura, o estudo, realçando-o para dar a ver como a fotografia (depois o cinema) esvaziaria(m) o seu grande propósito. O que me interessa nessa ilação não é tanto a precedência histórica da pintura de face-a-face com o real que a fotografia e o cinema actualizaram, mas as qualidades que o autor identifica nesse género de representação ‘ao natural’.
Segundo Aumont, o que distingue o estudo não é a busca de exactidão, antes a sua rapidez de execução que, destinada a captar uma primeira impressão sobre “fragmentos de natureza”, pretende oferecer algo de novo à nossa percepção. E se, na antiguidade, essa natureza era seleccionada como um pedaço de céu na terra digno de estudo, uma paisagem representativa da organização geométrica e perfeita do mundo que só os deuses conseguem inventar, na modernidade, o estudo passou a destacar-se pelo seu interesse em “fragmentos quaisquer”, assumindo que todo e qualquer canto de natureza merece ser isolado e estudado pela sua (aparentemente) anódina singularidade.
Aonde é que nos levam esses fragmentos? Aonde nos leva o estudo? Quantas vezes a nossa vida já mudou por causa de um livro/um filme sobre o qual nos demorámos a estudar em profundidade? Face a esta hipótese, é estimulante a ideia de que o cinema, desde a sua emergência técnica, talvez nunca tenha deixado de ser uma espécie de laboratório, ou sala de aula, onde se tenta resolver os problemas dos outros – um pouco à semelhança de uma actividade da área das ciências humanas (dêmos também razão a Raymond Bellour, que viu bem a emergência do cinema como contemporâneo da psicanálise). Talvez isso explique por que motivo tantos e de tão diferentes campos, pelo mais variado tipo de razões, foram ‘meter as mãos’ no cinema.
Num certo sentido, se a história do cinema é uma grande “escola do ver”, é porque todos os filmes sem excepção são estudos em potência. E, de Marey a Godard, de Vertov a Wiseman, os maiores “cineastas-estudantes” deixaram-nos “esboços sucessivos” sobre a indefinível e contraditória natureza humana, desde as suas capacidades utópicas às suas maiores limitações. Aquilo que define o seu cinema e os aproxima é, antes de tudo, esse interesse por fragmentos de realidade que só o cinema pode dar a ver (e a estudar) de um certo modo.
Penso numa frase lapidar de Wiseman: “I often don’t know anything about a subject before the filming begins. (…) For me, the shooting is the research”, e penso na primeira sequência da sua obra-prima, Welfare (1975).
Após uma série de retratos fotográficos que simbolizam uma relação desigual entre sujeitos e a “Grande Máquina” do Estado que tudo burocratiza e anonimiza, o filme situa-nos no exterior de uma loja de assistência social por via de convencionais establishing shots. Vemos longas filas de pessoas que aguardam, ao frio, a hora de abertura daquilo que poderia ser um welfare center em qualquer área urbana dos E.U.A, à data de 1974. Logo depois, no interior do espaço, os sons rotineiros, as posturas conformadas e os pequenos gestos cansados, ensonados ou impacientes levam a crer que estas pessoas, que podiam ser outras semelhantes noutro dia qualquer, são figuras dramáticas numa encenação quotidiana a ter lugar naquele espaço social. Nos dezassete planos, introdutórios e relativamente rápidos (com uma média de 2 segundos de duração), uma primeira provocação insinua-se: à semelhança da máquina fotográfica inicial que “rouba” as almas de quem está prestes a entrar naquele “teatro do absurdo” (Beckett será mesmo citado no final do filme), também o nosso olhar, aparentemente invisível, confortável, parece operar um outro tipo de violência: tal como a “Grande Máquina”, tendemos a olhar maquinalmente aqueles corpos.
No entanto, após os referidos establishing shots no interior do espaço, surge a imagem de um rapaz que desenha esboços de retratos daquilo que o rodeia, como se de um plano em contra-campo (no sentido absoluto do termo, um anti-campo) dos dezassete planos anteriores se tratasse. Aos esboços no desenho deste rapaz, segue-se a primeira de muitas situações dramáticas que nos são dadas a testemunhar proximamente no resto do filme.
Estamos, assim, perante uma primeira grande reconfiguração do olhar wisemaniano, que se faz através da figura angular do desenhador de retratos. A figura do desenhador seria, aliás, a primeira metáfora do que, daqui em diante, o cinema de Wiseman nunca deixou de ser declaradamente: convocatória de um olhar desejoso de estudar o real, figurado na grafia do desenho e a que só a fugacidade instável do toque lhe dá forma. A câmara-lápis de Wiseman ainda hoje corresponde a uma viagem sensível que, mais do que extrair pedaços de vida com máquina de filmar, muda radicalmente a nossa percepção sobre os espaços da (nossa) vida com a máquina de escrever – um cinematógrafo puro e duro, como na acepção de Bresson: “uma escrita com imagens em movimento e sons”.
Tal como o estudo na pintura, uma via possível do cinema passará provavelmente por actualizar a forma de resolver os problemas das outras disciplinas que pensam a vida, dando-lhes outra visibilidade. “Resolver” não significa descobrir a fórmula para extrair vida ou para fugir da prisão (do caos) em que vivemos. Significa, sim, revelar, enquanto se descobre as profundezas da vida como não a podemos conhecer à superfície. É, se quisermos, um modo bressoniano de “mostração”: o de ir directamente ao fundo das coisas, com poucos meios e soluções mais simples, o de mergulhar fundo nos “buracos da prisão”, sem tempo a perder. Só o cinema pode ajudar a ver com maior simplicidade e intensidade as vias desconhecidas que nos levam ao mesmo fim.
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“Não há nada para ver aqui; isto aqui não tem interesse nenhum”, ouve-se numa frase-chave do filme que eu e outros “escavadores” (estudantes) andamos a fazer na Trafaria. Ao contrário do que à primeira vista/escuta se possa pensar, o nosso filme (o nosso estudo) não desmente essa conclusão que os mais lúcidos “locais” levaram uma vida a tirar. Pelo contrário, confirma-a: para se perceber quão certa essa afirmação está, é preciso ver muito, ver tudo, conhecer as coisas como se fôssemos de lá, embora de maneira diferente (é essa maneira diferente de ver o mesmo problema que a câmara-lápis permite estudar subtilmente). Quem for à Trafaria não vai lá inventar novos problemas (muito menos solucioná-los): vai lidar com os que já existem, na melhor das hipóteses, identificando-os por outra via, nos sítios mais inesperados. No nosso caso (o caso do cinema), como quem inspecciona túneis antigos, escavados por outros antes de nós, guiados por quem os habitou: “não há dúvida de que aquele que escava deve fazê-lo guiando-se por mapas do lugar. Mas igualmente imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tateante no escuro reino da terra” (Walter Benjamin).
Filmar como quem estuda em conjunto: uma lição de anatomia, identificar (com velocidade) e percorrer (com intensidade), em poucos minutos ou horas, as vias de fuga que outros demoraram décadas a escavar e conhecer. Em suma, como no cinema de Wiseman, mostrar, com a fragilidade do desenhador, através de estudos e esboços sucessivos, o que nenhuma outra disciplina até hoje inventada pôde conhecer. Filmar a realidade como se estudássemos os filmes que mudaram a nossa vida: capazes de alterar a nossa atenção, o nosso cuidado com as coisas e com as portas para o desconhecido que abrimos. Filmar (o mesmo que olhar) como quem estuda. A hipótese do cinema (a “hipótese Trafaria”, como lhe temos chamado) nos fazer compreender o ritmo da vida, a sua pulsação vital, ao mesmo tempo desautomatizando a percepção sobre os ritmos pré-estabelecidos pela “Grande Máquina”. Estudar o espaço para o perceber, estudar continuamente. O quê? Formas, linhas, cores, em suma, sentimentos – trajectos de fuga para melhor habitar em conjunto a prisão através da arte de ficar. “A força conduz à força – o gesto conduz ao gesto – e não existe porta que não abra para outra porta por abrir” (mais uma vez, Herberto Helder).
Derrogando quaisquer noções de cinema industrial ou autoral, num verdadeiro estudo, não há nada a esperar para além do exercício de relação corpo a corpo com o lugar, para isso bastando um lápis na mão (uma câmara-lápis) e uma folha de papel qualquer (uma timeline imaginária onde já se ensaie uma montagem sem ter em vista um produto final). Até que aquele pedaço de natureza desapareça, levaremos câmaras, tripés e microfones; depois, projectores e fragmentos fílmicos catalisadores de diálogos; no final, saberemos bem que as nossas notas diarísticas e conversas ao final do dia irão valer o mesmo que as imagens em movimento e sons que de lá trouxemos para continuar a estudar – a pura e simples vontade de estudar.
(Quero um dia poder olhar para as imagens e sons que recolhemos, para os episódios que fizemos e múltiplos filmes que faremos, e sentir a mesma vitalidade que sinto quando volto a pegar nos cadernos encaixotados da primária, secundário, licenciatura e mestrado, e a caligrafia tosca, os conteúdos da matéria a que escolhi dar atenção e as páginas rasgadas revelam muito mais que um arquivo pessoal; são manchas e traços que simbolizam uma vontade de compreender o mundo desconhecido que então se abria diante de mim).
O cinema (e uma escola ao “ar livre”), enfim, como lugar de constituição de uma nova realidade que, para transformar, é necessário estudar continuamente.
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Como filmar?
Uma hipótese: a câmara obtrusa como instrumento de extracção. Filmar como quem abre fendas de onde emergem as formas vitais. Filmar não para uma audiência, mas para cúmplices de um “crime” que estamos dispostos a cometer em nome da liberdade.
Outra hipótese: a câmara-lápis como instrumento de escavação (de estudo em profundidade): “Escava nesse lugar. Não deslizes para outro sítio. Duplo, triplo fundo das coisas” (Bresson – é claro). Filmar como se voltássemos ao cinema desenhado nas paredes e abóbadas das cavernas paleolíticas, onde sabemos ter sido feita a mais velha forma de inscrição do movimento. Talvez por isso, a longa espera do cinema por um aparelho fotográfico (uma possibilidade técnica) o tenha tornado capaz de ainda hoje poder ser frágil como o traço fino do carvão.
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Seja como for, é preciso aprender a dominar a máquina de filmar como se de uma arma perigosa se tratasse. Disse Chris Marker: “a fotografia é como a caça, mas o clique, em vez de matar, imortaliza”; e poderiam dizer um artista ou um estudante de espírito livre: “o cinema é como a guerra, mas a câmara, em vez de matar, resguarda”. Seja como for, o movimento do cinema é (ainda pode ser) um movimento de resistência, de detenção e desvio face ao “princípio sacrossanto da realidade” (Deligny). É a preparação possível para uma paragem alternativa no incessante fluxo na sociedade do espectáculo, uma cesura na realidade em loop que nos envolve.
Se a escola é (devia ser) o lugar em que se resiste à forma como se vive (no caso das escolas de cinema, como se filma) no exterior, é porque aprender a filmar – aprender como filmar – significa (ainda devia significar) prepararmo-nos para o impossível, isto é, o cinema como antecâmara do desconhecido. Há dias, ouvimos Tomás Maia: “Se o ensino se tornar numa mera reprodução do que existe no exterior e deixar de ser uma preparação para o que não existe, então desaparecerão as invenções para lidar com o desconhecido”. E, tal como lembrou o Bernardo na última intervenção após esses três dias de pura alegria, liberdade e conhecimento partilhado, “não basta fazer a janela, é preciso entrar nela”. Como? Extraindo, escavando. Em qualquer dos casos, cegamente tacteando a escuridão que o cinema nos ensinou a desejar.
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(aos alunos e professores – “artistas, revolucionários e operários” – da Universidade Zero)