I’m sorry, no offence, but you’re a very earthly being, okay,
and we’re talking about space magic.
Thor em Avengers: Endgame (Vingadores: Endgame, 2019)
I
Numa das cadeiras que leciono peço aos meus alunos que leiam o capítulo da Dialética do Iluminismo, de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, sobre a indústria da cultura. Para compensar o possível obstáculo de os exemplos dados se referirem a factos culturais das décadas de 1930 e 1940, tento ocasionalmente substituí-los por exemplos mais recentes. A escolha de exemplos é uma questão delicada: os exemplos que me ocorreriam mais naturalmente seriam provavelmente recônditos e irritantes para um público que espera quase sempre que o professor seja um snob. O meu exemplo preferido é o dos filmes de super-heróis.
Costumo mostrar um anúncio da FNAC em que vemos uma jovem coberta de símbolos e produtos alusivos a filmes de super-heróis e do Harry Potter, com a seguinte legenda: “Mostra que és fã”. A jovem mostra que é fã não só comprando aqueles marcadores de identidade empresarial, mas escolhendo uns em vez de outros: ao mostrar-se uma entusiasta por produtos da DC e não da Marvel, sugere-se que nem tudo é igual e que a metáfora da linha de produção permite uma discriminação que é, na verdade, estimulada pela indústria da cultura: ao encorajar-se a fã a defender uma marca contra outra, a julgar que escolhe entre produtos em competição, promove-se uma ligação identitária a um conjunto qualquer de objetos, havendo produtos para todos os fãs e fãs para todos os produtos.
No capítulo de Horkheimer e Adorno, há outra ideia que costumo ilustrar com filmes de super-heróis: a noção de que aquele que sofre e que procura resistir às causas do seu sofrimento é sempre o vilão. É um lugar-comum sobre a banda-desenhada de super-heróis que o super-herói é uma figura conservadora, sempre ocupado a preservar o mundo que o super-vilão quer mudar. Mais elucidativas do que as histórias de origem dos heróis são as dos vilões, porque costumam depender de uma injustiça (ou perceção de injustiça) que o vilão decide corrigir. O sofredor torna-se perigoso porque não aceita a injustiça social de que foi um alvo mais ou menos arbitrário, decidindo antes agir. A conclusão deste processo, tão frequentemente glosada em filmes deste género, é o momento em que o super-herói se vê “obrigado” a matar o super-vilão porque este simplesmente não aceita a derrota. Para Horkheimer e Adorno, que se interessam sobretudo pela harmonia social promovida à força pela forma dos produtos, este lugar-comum narrativo insiste que o importante é aceitar a derrota, aprendendo a ver como figuras trágicas – isto é, destinadas ao fracasso – aquelas que tentam resistir a uma vida apresentada como destino.
Por esta altura, costuma tornar-se evidente uma certa confusão da parte dos meus alunos: o prazer evidente com que dou exemplos como os do Abutre, da Feiticeira Escarlate, ou de Zemo, parece entrar em contradição com o uso de filmes de super-heróis para ilustrar alguns dos mecanismos mais reacionários e formulaicos da indústria da cultura.
II
Os filmes de super-heróis dependem da lógica da serialização, em que um filme isolado é uma aberração ou um sinal de fracasso comercial: o mecanismo interno do filme de super-heróis é o da proliferação de sequelas, prequelas e derivações, à imagem das bandas-desenhadas em que se baseiam. É fácil notar que a maioria dos filmes de super-heróis anteriores a Iron Man (Homem de Ferro, 2008), com exceções que me escuso a enumerar, oscila entre a falta de convicção e a falta de imaginação, tendo levado a que, na maioria dos casos, a estrutura serial da linha de produção planeada acabasse interrompida pela má qualidade de um filme e por vezes reiniciada.
A minha experiência de ver filmes de super-heróis antes ou para lá dos filmes feitos pela própria Marvel foi sempre pontuada por alguma ansiedade: um mau filme do Homem-Aranha – e há alguns – ou do Quarteto Fantástico – que são todos – fazia voltar tudo ao início. O que os filmes da Marvel feitos após Avengers: Endgame têm vindo a mostrar, numa escala muito maior, mas com fracassos menos espetaculares, é que não é fácil fazer um filme decente de super-heróis. É altamente improvável que alguma vez deste subgénero resulte uma obra-prima: tratando-se de um produto supervisionado de perto pelo estúdio de modo a compensar comercialmente o enorme investimento financeiro, seria absurdo esperar uma qualidade cinemática fulgurante num produto como este. O filme da Marvel que mais namorou com esta ideia foi Eternals (Eternos, 2021), de Chloé Zhao, sem dúvida o pior e mais desinteressante filme feito pela Marvel.
Pelo contrário, o que distinguiu os 23 filmes feitos pela Marvel entre 2008 e 2019 foi uma transmutação da quantidade em qualidade, uma qualidade só atingível numa linha de produção. Há necessariamente oscilações qualitativas e vários filmes que ficam apenas na memória de canais por cabo ou de plataformas de streaming – provavelmente ninguém se lembra com gosto do segundo filme do Homem de Ferro (2010), do segundo Thor (2013), ou do segundo filme dos Guardiões da Galáxia (2017) – assim como grandes filmes de aventuras – é o caso do primeiro Homem de Ferro (2008), do segundo Capitão América (2014), do primeiro filme dos Guardiões da Galáxia (2014), do primeiro Homem-Formiga (2015), assim como do primeiro e do quarto filme dos Vingadores (2012 e 2019).
Mesmo faltando ao primeiro filme dos Vingadores a dignidade artística do décimo terceiro quarteto de cordas de Schubert, não lhe falta o desafio a que o espectador procure nele uma densidade alusiva.
A forma pesada como escrevi esta lista, referindo-me à posição numérica de cada filme dedicado a uma personagem específica, pretende sugerir que a qualidade especial destes filmes não é tanto a sua individualidade, mas o facto de comporem uma totalidade interligada. Aquilo a que, no tom pomposo típico deste tipo de publicidade, se chamou o Universo Cinemático da Marvel é a importação bem-sucedida para o cinema contemporâneo da serialização que tantas trilogias (e, num caso, até uma trilogia de trilogias) haviam ensaiado de forma ainda tímida, e que era mais característica da banda desenhada e da televisão.
O feito de se fazer 23 filmes interligados em 12 anos, todos de qualidade pelo menos razoável, aos quais se pode acrescentar todo o material cinemático e televisivo desde então produzido já em modo de mediocridade hiperativa, cumpriu a função importante de gerar um número considerável de filmes de super-heróis de qualidade semelhante em pouco tempo. Tal como o apreciador de westerns terá sempre muito por onde escolher, também agora a Marvel e as suas imitações criaram um corpus que cresce fenomenalmente e com segurança a partir de alguns esforços esporádicos e desajeitados. É a partir desta quantidade e da variação infinita das suas fórmulas, num subgénero que não é mais fortuito, mas firmemente estabelecido, que se torna possível a produção de vários filmes melhores, que teriam sido muito mais difíceis de fazer num contexto de maior fragilidade genérica e menor confiança nos resultados de bilheteira de filmes deste tipo.
Em 2023, quinze anos depois do primeiro filme feito pela Marvel, não tenho para onde me virar e, se assim o desejasse, poderia passar a maioria das minhas noites a ver filmes e séries de super-heróis uns atrás dos outros. É uma circunstância que reflete a experiência de qualquer leitor de banda desenhada de super-heróis, experiência esta a que voltei no ano passado, quando li cerca de vinte anos de bandas desenhadas do Capitão América, desde o início dos anos 1970 ao início dos anos 90. Falta-me sempre muito para ler e faltar-me-á cada vez mais para ver. Para quem passou pela aflição de ver filmes de super-heróis realmente maus uns atrás dos outros, já ninguém me tira esta felicidade da linha de produção.
III
Voltando aos entusiastas cuja colaboração inconsciente na sua administração pela indústria da cultura é notada por Horkheimer e Adorno, um dos aspetos mais alienantes para o espectador que chega aos filmes sem conhecimento de ou interesse pelas bandas desenhadas é a quantidade de referências que são apenas compreendidas pelos fãs e que podem diminuir a capacidade geral de apreciar o filme.
Ensinei recentemente uma banda desenhada de Alan Moore e David Lloyd, V for Vendetta (1982-1989), numa cadeira de literatura inglesa. Tal como qualquer outra obra de Moore, também esta se caracteriza por um número vasto de referências de vários tipos, algumas das quais são identificadas por Moore num ensaio (“Behind the painted smile”) que costuma ser publicado com a banda desenhada, embora a maioria dependa do trabalho detectivesco dos fãs na internet ou do conhecimento enciclopédico do leitor. Normalmente, as únicas referências que os meus estudantes identificavam – ou até as únicas que identificavam enquanto referências – eram as que vinham da alta cultura: citações de Shakespeare, títulos em lombadas de livros, ou representações de quadros renascentistas. Eu próprio declarei imediatamente a minha incapacidade para dizer algo de útil sobre algumas das referências feitas por Moore a contos pulp ou a ficção científica relativamente obscura da década de 1960.
Passa-se algo de semelhante com estes filmes. Não é difícil reconhecer uma citação bíblica (“Upon this rock, I will build my church”), uma citação de Shakespeare ou de T. S. Eliot (“hollow men”), ou do filme do Pinóquio da Disney (“I had strings, but now I’m free. There are no strings on me”), todas ditas ou cantaroladas por Ultron, um robô que decide aniquilar a humanidade depois de ler a internet inteira num par de segundos. Por outro lado, são muito menos transparentes as referências um pouco mais recônditas ao trabalho de décadas que compõe o mundo da Marvel (“You have reached the life model decoy of Tony Stark. Please leave a message”).
São talvez as referências à alta cultura, mais depressa ditas elitistas, que melhor se identificam, ao passo que é o conhecimento do passado da indústria da cultura que se torna mais difícil de garantir fora do universo dos seus conhecedores. A linha de montagem da banda desenhada de super-heróis produziu tais quantidades de produtos, e estes produtos fazem de tal maneira parte do tecido intertextual dos filmes e séries feitos a partir deste material, que, mesmo faltando ao primeiro filme dos Vingadores a dignidade artística do décimo terceiro quarteto de cordas de Schubert, não lhe falta o desafio a que o espectador procure nele uma densidade alusiva.
Ao espectador que ache uma perda de tempo descodificar alusões obscuras a personagens de terceira categoria, imaginadas numa revistinha de uma vintena de páginas publicada algures na década de 1970, pode responder-se como se responde a leitores que se queixam do elitismo referencial de certos textos provindos da altíssima cultura: se o leitor ou o espectador não se dão ao trabalho de estar culturalmente à altura do que lhes é apresentado, tanto pior para eles. Para esses, basta o sumário condescendente com que, num par de segundos, um homem de ferro convence um homem aranha a bater num sujeito grande, forte e com mau ar: “He’s from space. He came here to steal a necklace from a wizard”.
Miguel Ramalhete Gomes
Professor universitário