Algo vai mal no reino da Dinamarca. Ou melhor, algo vai mal no reino de Hollywood. Depois de mais de duas décadas em que os filmes de super-heróis dominaram as bilheteiras dos cinemas ao nível mundial, começa, lentamente, a sentir-se uma fadiga. Essa é a expressão que tem titulado uma série de artigos na imprensa norte-americana. No final de 2023, a jornalista Maya Philips, do The New York Times, perguntava-se “Is This the Endgame for the Age of Heroes?” numa paródia à linguagem apocalíptica que define este subgénero cinematográfico. Na Variety, na Forbes ou no The Guardian (“Have we gone from Marvel fatigue to Marvel exhaustion?”) artigos semelhantes têm aparecido, indicando que, se o fenómeno da “super hero fatigue” pode bem não ser mais do que um efeito passageiro de alguns maus filmes (mas alguém acha que os filmes da série The Avengers são bons?), ele é, certamente, algo que preocupa aqueles que orientam a linha de crédito dos grandes estúdios de Hollywood.

Porém, o ano de 2023 parece ter sido a afirmação lapidar – no sentido de lápide – do cansaço do espectador contemporâneo de cinema popular perante os filmes de heróis com superpoderes e fatos elásticos. Os falhanços comerciais (relativos) dos recentes The Marvels (As Marvels, 2023), Aquaman and the Lost Kingdom (Aquaman e o Reino Perdido, 2023), Ant-Man and the Wasp: Quantumania (Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, 2023) e Shazam! Fury of the Gods (Shazam! Fúria dos Deuses, 2023) parecem ser a confirmação do progressivo desinteresse do espectador comum que, diante da bilheteira do cinema, de balde de pipocas em riste, preferiu ver uma sátira feminista em formato musical à força do patriarcado [Barbie (2023)] ou um grande épico sobre um interrogatório feito numa salinha de reuniões [Oppenheimer (2023)], do que a enésima variação do fim do mundo onde só o empenho coletivo de um conjunto de sobre-humanos (übermensch) pode salvar-nos da morte certa.
Diante disto, o À pala de Walsh resolveu organizar um dossier onde se procura, por fim, olhar de forma retrospetiva para os mais de vinte anos em que o filme de super-heróis foi o modelo dominante das narrativas populares e, a partir daí, procurar compreender (ou pelo menos identificar) que cinema sobra dessa mastodôntica produção. Dito doutro modo, “Rei morto, Rei posto”, isto é, agora que os filmes de super-heróis estão a esmorecer e, no horizonte, surgem novas formas de cinema popular, há que olhar para trás, com a distância dos anos passados e dos ecos que os vários filmes deixaram, e tentar separar o trigo do joio. O dossier intitula-se “It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis” e o trocadilho dá bem a ver a nossa posição ambivalente perante o subgénero.
Confessamos o nosso desinteresse por muito do que tem sido a produção do “universo Marvel” e “universo DC” e por todos os demais barroquismos novelescos com que se tem esmifrado o espólio das bandas desenhadas dos anos 1950 e 1960. No entanto, estamos em crer que faz parte do trabalho da crítica de cinema olhar – com olhos de ver – para o cinema popular da sua época. Não foi a atitude radical da geração Cahiers du Cinéma que olhando para os géneros mais populares (e por isso mais desconsiderados pelas cúpulas da erudição), como western ou o noir, fundaram uma política de autores que tinha, precisamente, na dimensão popular a sua força política?
Não defendemos a popularidade como garante cultural, artístico, estético ou político – longe disso – nem tampouco propomos uma renovação do vulgar auteurism que sempre nos pareceu um movimento que tinha mais de provocatório do que analítico (provocação que, contudo, provinha de um desacerto entre os interesses da crítica e os interesses do público). Mas também não acreditamos que a generalidade do público seja ignorante. Os fenómenos de popularidade são, no mínimo, uma chamada de atenção para as tendências do gosto como movimentos de massas. E isso tem um valor intrínseco, mais não seja o de aproximar a crítica da realidade do cinema enquanto experiência social ampla. No fundo, o que estamos a propor é uma operação não muito diferente daquela que Umberto Eco defendeu no seu afamado ensaio “Ascensão e Queda do Super-Homem” (compilado no livro O Super Homem das Massas), só que em vez de aplicado à literatura popular de folhetim, aplicamo-lo ao cinema popular de folhetim, vulgo “cinema de super-heróis”.
A dado momento do artigo, Eco lança-se à “Trilogia dos Mosqueteiros” escrita por Alexandre Dumas e, em particular, olha para aquele que é o terceiro tomo, O Visconde de Bragelonne – consensualmente tido como o mais desinteressante dos três romances, por ser também aquele que de forma mais declarada cumpre a sua função comercial (preencher semanalmente uma página de jornal). Citamos Eco, numa passagem que serve de modelo político-semiótico para o que será este dossier, sendo que onde se lê “literário”, deve ler-se “cinematográfico” (sublinhados nossos):
“Se qualquer máquina narrativa tem uma estrutura, O Visconde [= The Avengers] parece não ter nenhuma e escapa a toda e qualquer definição. Romance-folhetim – parece vencido pelas próprias necessidades do mercado, e Dumas [= Joss Whedon, Anthony e Joe Russo] surge-nos como o artesão que semana a semana fornece qualquer coisa que não tem qualquer relação estrutural com o que o precedia. Em tal caso, dever-se-ia escutar o conselho de quem adverte que não vale a pena indagar com métodos literários os fenómenos que ‘de literários’ nada têm. Mas trata-se de uma tentação aristocrática e perigosa. Na forja da narrativa popular [e a oitocentista é importante porque nela se delineiam os mesmos motivos que, numa chave industrial mais desenvolvida, ainda funcionam na actual produção do divertimento prefabricado (= o blockbuster)] tudo tem uma lei, nada nasce por acaso: as exigências do público e a estrutura do mercado interactuam com as tradições do enredo, dando vida a uma ‘forma’ que é preciso individualizar.”
Eis a nossa vontade, “individualizar a ‘forma’ da narrativa popular” do cinema contemporâneo, porque essa ‘forma’ revela os padrões da nossa sociedade (as tensões entre o mercado e os desejos do público) e porque não fazê-lo é passar ao lado do que é a produção mais relevante da cultura cinematográfica do século XXI – mais relevante para o bem e para o mal.
De facto, é impossível não admitir a importância do género nas últimas décadas. Não só a título comercial (que é mais que evidente), como a título estético-cultural. Importa não esquecer que filmes como The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, 2008), tomaram de assalto os polegares dos críticos norte-americanos e que, dez anos depois, Joker (2019) levou para casa o prémio máximo do mais antigo certame da cinefilia europeia, o Festival de Veneza – entre centenas doutros galardões, tornando-se num dos “filmes de qualidade” mais consensuais desse ano (na lista de “melhores filmes de 2019” do À pala de Walsh, o filme ficou em terceiro lugar, apenas precedido pelas mais recentes obras de Quentin Tarantino e Clint Eastwood). E, já agora, note-se como, em 2022, The Batman, de Matt Reeves, foi um dos filmes preferidos de cineastas-autores como Alain Guiraudie ou João Pedro Rodrigues, e para o mui fino crítico e programador Jean-Pierre Rehm.
Também o cinema de autor como o entendem os festivais-mercados de Cannes e Veneza tem-se aproximado – se não na linguagem, no tom – do cinema de super-heróis (ainda que por vezes através de formas críticas ou satíricas). O exemplo mais recente dessa contaminação é o último filme de Yorgos Lanthimos, Poor Things (Pobres Criaturas, 2023), que o crítico dos Cahiers du cinéma Yal Sadat identificou numa das últimas edições da revista como um sintoma “daquilo que se tornou o autorismo ocidental, solúvel em micro-alegorias infantilizantes”. De facto, tem havido um processo de disneyficação do cinema de autor com desejos de mercado, numa lógica de aproximação magnética ao cinema popular de Hollywood – aproximação essa fomentada pelo circuito mercantil dos festivais e pela elevação de um conjunto de novos realizadores-autores que entendem o cinema a partir de códigos narrativos e estéticos que estabelecem com o cinema de super-heróis uma relação de simbiose.
O poder de influência do género mais popular das últimas duas décadas faz-se por isso sentir de forma subterrânea, através do modo como infeta/afeta o imaginário dos espectadores/consumidores. Até por isso, não olhar para estes filmes – e a verdade é que a rejeição aristocrática de muitos destes títulos tem sido a norma (e quando são vistos, são muitas vezes “mal vistos” – é passar ao lado do que é a grelha de produção que domina o cinema comercial contemporâneo (em Hollywood, evidentemente, mas fora de Hollywood, de forma mais sub-reptícia).
O fenómeno dos super-heróis não é substancialmente diferentes doutras vagas que tomaram de assalto os estúdios norte-americanos em décadas precedentes. A títulos de exemplo, Quentin Tarantino, no seu recente ensaio sobre os cinema americano dos anos 1970, Cinema Speculation, compara a atual obsessão com o subgénero dos “homens de collants” com a moda dos musicais românticos dos anos 1960, [a que ele chama “studio Broadway musical based extravaganza [The Sound of Music (Música no Coração, 1965), My Fair Lady (Minha Linda Senhora, 1964), Hello, Dolly! (1969)]”], acrescentando num parêntesis, algo como – e parafraseio – “muitos realizadores de hoje mal podem aguardar pelo dia em os filmes de super-heróis estão finalmente mortos, e bem mortos, como aconteceu aos ‘Post-Sixties Anti-Establishment Auteurs” que ganharam a revolução cultural contra os referidos musicais” (os filmes mais populares do início da década de 1960). Mas o mesmo se poderia dizer das spaceship operas dos anos 1970 e 80, das comédias românticas dos anos 1990 e 2000, etc., etc., etc.
“It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis” propõe-se a ver os filmes (e a revisitar a história das imagens e das narrativas que lhes deram origem – incluindo a história do cinema) e a entendê-los à luz da sua importância de facto. Não é uma apologia, nem é também um combate, é a agremiação de uma série de pontos de vista sobre o fenómeno que pretende, através do olhar pluridisciplinar e multiperspético, compor um retrato abrangente da cultura de massas em que estamos inseridos. Assim, pretendemos atravessar a produção das últimas décadas estabelecendo tangentes que nos lançam para os filmes-folhetim de Louis Feuillade até às suas reconversões seriadas por Olivier Assayas, passando pelo cinema dos “vigilantes” dos anos 1970, pelas referências helénicas e shakespearianas do universo Marvel, pela revisitação coming of age dos super-heróis como metáfora da adolescência, pelas costuras proto-fascistas da exclusão e fortificação do Outro (ou a sua inversão) ou ainda pela reavaliação da história do cinema português segundo este quadro estético-narrativo.
Depois da fadiga dos homens em collants, é tempo de enfrentar o elefante na sala.
Ricardo Vieira Lisboa
(com Luís Mendonça)