Past Lives (Vidas Passadas, 2023), a estreia no cinema da dramaturga sul-coreana-canadense Celine Song, não é só um filme. É um cisne branco. É difícil acreditar na beleza da sua espiritualidade quando se desliza à nossa frente. Mas ali está. Depois daquele primeiro visionamento procurar-se-á a origem da força que o sustém, mas será difícil de o localizar. Talvez até impossível. No lugar do esotérico, encontrar-se-á a linha de montagem. A procura não será muito diferente que aquela que provoca a própria cinefilia: nada é mais forte do que a vontade de possuir o filme que já provocou uma modificação, forçar o replicar daquilo que o corpo se lembra de sentir. Mas com a fome e a repetição vem a desconstrução de atrelado. Nunca mais o veremos outra vez pela primeira vez. Não há como o fazer. E com isto, pergunto, como é que se escreve então sobre ele? Como é que se escreve sobre um filme de que se ama? Continuo à procura de uma resposta, mas a dificuldade parece ser comum. Com medo de nos depararmos com as peças do filme ou talvez por receio de que o debruçar nas palavras antagonize a universalidade do maravilhamento construído, evitamos escrever sobre. Mas isto não quer dizer que Past Lives esteja imune à análise. Estará talvez só mais protegido dela. Mais aberto à verdadeira crítica de cinema: uma criação também ela cinemática de uma obra vista.

Como já tinha acontecido com Aftersun (2022) o ano passado, Past Lives chega até nós retirado da textura autobiográfica que, desde logo, prepara a proximidade e não tem receio de criar uma relação de vulnerabilidade com o espectador. Há exposição de uma vida interna, por contar, de um alguém desconhecido mas nosso igual, o que possibilita uma mais ágil construção de noções credíveis de durabilidade e amor ao longo do tempo entre pessoas (neste caso, são três momentos temporais contados de 12 em 12 anos) através de muito poucas sequências com o devido espaço para tal expansão. Parte do sucesso do filme começa aí. O resto pode ser atribuído ao facto do seu rasgo efervescente, na forma como junta ou separa estas personagens, se deitar numa brandura inesperada, que se traduz nos movimentos mais sedosos e ternurentos, próprios do mundo sabido efémero. O mesmo mundo de Lost in Translation (O Amor é um Lugar Estranho, 2003), por exemplo, ou Before Sunset (Antes do Anoitecer, 2004) ou Columbus (2017): eis a celebração de estar vivo no mundo e de como marcamos a vida dos outros com a nossa passagem.
Ao partir do prisma da anonimidade – e de como o espectador se verá nestas pessoas -, Past Lives parte em direcção ao iluminar, em tons quentes, torrados até, da história que une estas personagens umas às outras.
A história que conta é simples: uma relação de infância é fundida entre um rapaz e uma rapariga numa história de um primeiro amor. Quando essa rapariga emigra da Coreia para o Canadá com a família, tudo muda. Até o nome dela. De Na Young para Nora Moon (Greta Lee). Uma versão canadiana dela surge, e mais tarde uma outra americana aparecerá quando esta volta a emigrar, desta vez para Nova Iorque. O filme não se prende nos “e ses”. Há recurso a lugares-comuns, mas não há insistência neles. Ela voltará a reconectar-se com Hae Sung (Teo Yoo), o rapaz ternura da sua cabeça. Primeiro por Facebook e depois através de longas conversas por vídeo chamada onde o ecrã irá congelar e a frustração de tentar reduzir a distância entre Seoul e Nova Iorque será tremenda. Anos mais tarde, ele irá visitá-la a Nova Iorque. Mas aí Nora estará casada com outra pessoa, Arthur (John Magaro), um escritor Americano. E tudo o que poderia estar sob o efeito da mudança na vida dela encontrar-se-á estabelecido. Lá para o meio, a crença de que as interacções entre duas pessoas que eram previamente estranhas é atribuída a In-Yun, uma filosofia Coreana que ilumina a noção de destino numa luta com o livre arbítrio. Noutras palavras, de que tudo está relacionado, e mais cedo ou mais tarde, iremos entrar em contacto com aqueles com quem já estivemos em vidas passadas. Mas não é precisamente sobre ou por causa de um amor perdido que o filme de Celine Song ressoa na memória.


É importante mencionar que quando o vi, numa projecção de imprensa no Festival de Berlim há exactamente um ano, vi-o liberta do toque de um qualquer (aparentemente inevitável?) discurso. Nada me podia ter avisado para a travessia de Nora e do desenho identitário do imigrante que ainda sonha na sua língua-mãe, da sua necessidade para navegar esse estrabismo emocional entre dois mundos, ambos surdos em relação ao outro. A desintegração do Eu, por um lado. A renovação e melhoramento da pele desse mesmo Eu, por outro. The one who leaves, como Hae Sung se refere a Nora mais tarde, é mais sinónimo de uma coragem que ele não encontra dentro dele do que definição de quem ela é. No ecrã não vi propriamente a provação da rapariga asiática num mundo ocidental. Não pensei na diáspora Asiática nem como ela tem estado cada vez mais presente nas imagens que passam por nós (há um belo texto de Rebecca Liu para o The Guardian sobre a fraqueza desta tendência). No ecrã, vi um espelho da minha própria experiência enquanto emigrante, a minha vida bi-cultural, e de como nunca ninguém deixa de o ser assim que entra num outro país, até mesmo e especialmente quando regressa ao de origem. E o detrito que as vidas passadas deixam, especialmente quando se vêem agarradas à memória de um forte amor por alguém: vão-se revelando nos espaços mais liminares. Espectrais, também.
O veículo usado por Song para nos conduzir de mãos dadas ao que será um longo flashback para o passado, e em direcção ao futuro, parece dizer logo tudo sobre o tom e o ritmo que o filme adoptará. Num bar em Nova Iorque às 4 da manhã uma narradora questiona-se quem serão aquelas três pessoas a beber ao balcão e o que serão umas às outras. Ao partir do prisma da anonimidade – e de como o espectador se verá nestas pessoas (com as quais se poderá deparar nos não-lugares de uma cidade, seja no metro ou neste caso num bar de madrugada) -, Past Lives parte em direcção ao iluminar, em tons quentes, torrados até, da história que une estas personagens umas às outras. A vida é muito longa, e muito expansiva na forma mais mundana, onde somos só pontos no horizonte e condutores de complexidades indizíveis. Past Lives isola a história destas três pessoas primeiro, arrebata-nos com ela, e depois lança-as no ar e para dentro de mais um apartamento em mais uma rua iluminada no East Village.
entre o amor encontro-acidente que conversa com o amor abençoado pelos deuses, lá se encontra Nora-Celine. O rescaldo do filme dir-nos-á que não há nada nem ninguém a quem dizer adeus. A mágoa vem com a saudade por algo que nunca se concretizará. Fica a garantia de que Past Lives sabe como falar sobre os mistérios que assombram as nossas vidas.
Como é que poderia então um filme que se carrega com tanta poesia, sendo esta poesia o elemento que provoca e até incentiva a constante mudança do Eu, não ser absolutamente luminoso? Atinge a sua meta, atinge uma casa. E nada melhor poderá alguma vez ser dito de um primeiro filme. Entrelaçado está também por fios de maturidade que nos confortam de que nada aqui é só sobre pequenos quois que recaem no que fica por dizer ou em planos de naturezas mortas, embora estes também existam e sejam bem-vindos. Saberemos o mote do filme logo nos primeiros 10 min através da mãe de Nora: ganha-se sempre quando se deixa algo para trás. E quando tanto Nora como Hae Sung atingem a idade adulta, e o filme se transforma num filme de actores com os seus fumegantes jogos de olhares e silêncios, o vocabulário fílmico altera-se ainda mais para acompanhar os encontros e desencontros soletrados na narrativa e confirmar esta verdade. Arthur entra na vida de Nora através da janela do seu quarto em Montauk durante uma residência artística. Aquando da sua chegada a Nova Iorque, Hae Sung é sempre filmado através de superfícies de vidro, como as janelas do hotel onde fica. Celine não receia filmar apenas Nora e Hae Sung e deixar Arthur completamente de lado quando os três falam no bar. E todo o movimento em direcção a um outro futuro é anunciado com planos que seguem carros em movimento e personagens perdidos em pensamento dentro deles. O futuro inesperado será alcançado no final destas viagens. Até que o filme pergunta em retrospectiva, embrulhado na melancolia própria da paisagem e sentimento de uma cidade como Nova Iorque, onde passamos a maior parte de tempo: quando é que deixamos de ser estranhos aos olhos do mundo? Quando é que Nora e Hae Sung deixam de ser apenas duas pessoas que atravessam a estrada para serem aqueles que se despedem para sempre, fechando uma qualquer porta algures?




Celine Song filma a anonimidade dos seus personagens não só para os destacar mas enquanto os destaca. Somos sempre ambas coisas, afinal. A dada altura o peso do que estarão todos aqueles milhões de pessoas numa só cidade à procura de muitas das mesmas coisas, todas elas feitas de tantas camadas particulares, assoberba. Por tudo isto, será fácil de atestar quão difícil é rever o filme como está a ser para mim escrever este texto. Tudo escapa na tentativa de exactificar. Aberto à facilidade do comentário relativo às suas composições excessivamente feitas de tão pensadas, com todas as janelas e espelhos e lógica de transferência reflectiva, o que dele me fica é a dificuldade em reproduzir em palavras a essência globosa que atordoa e entranha. É um filme delicado e adulto que contém na sua fruição a exacta espiritualidade de que nele nos é falada. Não há violência, não há sexo também. A personagem de Arthur trata a parceira como uma pessoa que existia no mundo antes do encontro com ele, realmente aberto a deixá-la experienciar o que necessita não apesar da relação deles, mas porque é essa a relação deles. É raro ver humanismo assim no ecrã. Verdadeiros actos de amor.
Assim sendo, entre o amor encontro-acidente que conversa com o amor abençoado pelos deuses, lá se encontra Nora-Celine. O rescaldo do filme dir-nos-á que não há nada nem ninguém a quem dizer adeus. Ao contrário do que tem sido alimentado pelo cinema ao longo dos anos, não há uma decisão a tomar. Nunca houve. As reacções vão surgindo enquanto respostas a eventos ao longo do tempo, durante o processo de crescimento. A mágoa vem com a saudade por algo que nunca se concretizará. Enquanto isso, Celine Song projecta-se para nós. O filme que realizou e escreveu está nomeado para o Óscar de Melhor Filme da Academia e Melhor Argumento Original. Mas será que Celine se encontra nele? Será que algum artista realmente se encontra naquela primeira obra, tão carregada pelo Eu? A mesma pergunta poderá ser feita sobre a obra de Charlotte Wells. Fica a garantia de que Past Lives sabe como falar sobre os mistérios que assombram as nossas vidas. Ou pelo menos assim mo continua a dizer a minha memória dele, toda eu cara chorosa, olhos muito cansados, e imagino sorridentes, na segunda fila do Berlinale Palast.
★★★★☆