Esta é a história do Dr. Noah Praetorius. Mas é claro que esse não é mesmo o nome dele. O nome dele é Ludwig. E talvez ele não seja verdadeiramente um médico, talvez seja mais um anjo da guarda. Ou talvez ainda um fazedor de milagres. Ou um curandeiro.
Confuso? Mais confuso é ainda explicar a profusão de temas que existem neste estranho filme de Joseph L. Mankiewicz, People Will Talk (Falam as Más-Línguas, 1951). Falam as más-línguas e as boas, e muito (Mankiewicz é, afinal, um sacerdote da palavra), sobre ética médica e ciência, amor e casamento, aborto, suicídio, deduções fiscais, subsídios estaduais, animais de estimação, culpabilidade no domínio penal, fabrico de manteiga, contrabaixos e vacas. E o resultado de tudo isto é uma “comédia romântica” com um pano de fundo que insinua os interrogatórios do infame House Committee on Un-American Activities.
O argumento de People Will Talk adapta a peça de teatro do alemão Curt Goetz, que este adaptou ao cinema e co-realizou em 1950, com o título Frauenarzt Dr. Prätorius (1950). Joseph L. Mankiewicz não esperou muito tempo para fazer a sua própria versão, que estrearia logo no ano seguinte. Recordemos que Curt Goetz traz a melhor das cartas de recomendação, tendo representado o papel de Dr. Kersten no inesquecível Ich möchte kein Mann sein (1918) de Ernst Lubitsch. People Will Talk e Frauenarzt Dr. Prätorius são filmes muito próximos com algumas sintomáticas diferenças, como seja a de um cadáver feminino que deixa de estar de costas e passa a estar de barriga para baixo (uma posição estranha) de modo a não revelar demasiado.
O Dr. Noah Praetorius (Cary Grant), personagem principal do filme, não é um médico muito convencional, porque ele é exactamente aquilo que todos os médicos deveriam ser. Um médico que se faz passar por carniceiro, em lugar dos carniceiros que se fazem passar por médicos. Ele tem um genuíno interesse pelos seus pacientes, dedica-lhes tempo e atenção, e acredita no poder de uma boa conversa, mais do que nos efeitos meramente resultantes da acção de um medicamento, numa luta contra a morte e, por vezes, contra o próprio paciente. Ele pratica uma visão holística do paciente, acreditando que a ciência pouco ou nada pode se não for dada atenção ao estado de espírito e ao bem-estar do doente.
Mankiewicz diz-nos, em suma, que a inteligência, a criatividade, o humor e uma boa dose de benevolência humana são as armas dos mais fortes
Essa sua dedicação assume por vezes um carácter quase religioso, entre o poder milagroso das conversas com os pacientes (“sometimes just talk, like working a miracle”), o seu ascendente como anjo salvador ou a “ressurreição” de Shunderson (Finlay Currie), ele que foi executado e regressou à vida, mordendo o dedo do médico. E há ainda um pequeno momento, que quase passa despercebido, um pouco estranho na economia narrativa do filme, em que a enfermeira entra no consultório para anunciar a última consulta do dia, e em que encontramos o Dr. Praetorius de olhar perdido, fumando, em frente à janela, aparentando estar numa “conversa” com uma entidade invisível, quase rezando (algo que ele chama de “twilight sadness”).
Aqueles que interrogam os seus métodos são os não-crentes, motivados pela inveja do seu sucesso, mascarada de investigação sobre a idoneidade. O Professor Elwell (Hume Cronyn) é o tipo de médico que diz “maligno!” como quem diz “bingo!”, enquanto Noah é o tipo de médico que está sempre pronto a tirar um rebuçado do bolso (um cuidado que ele transmite à mulher, que se ocupa de encher as bomboneiras de rebuçados antes de um jantar de aniversário). O Dr. Praetorius rejubila no seu papel de curador pela palavra, assim como Cary Grant parece rejubilar no seu papel de Noah Praetorius. Há aqui um pendor muito sério no “não se levar muito a sério” que notoriamente cativa igualmente o actor.
Como é óbvio, toda esta popularidade granjeada pelo Dr. Noah Praetorius, junto de alunos e pacientes, seria atinente a rapidamente gerar alguns ódios ou, pelo menos, desconfiança. É o seu colega Prof. Elwell, um especialmente viscoso Hume Cronyn, quem dirige a investigação ao passado de Praetorius, remontando ao seu começo de carreira numa cidadezinha chamada Goose Greek. A troca de palavras de Elwell com uma certa Miss Sarah Pickett (Margaret Hamilton, não creditada), a antiga governanta do Dr. Praetorius, resulta num dos melhores diálogos do filme:
– If I come in does the door get closed?
– Naturally.
– Then I don’t come in.
– Why not?
– You know why not, you’re grown up.
– My dear Mrs. Pickett.
– Miss Pickett and don’t butter me up.
– I have conducted my affairs behind closed doors for 20 years.
– Not with me.
– You overestimate both of us.
Mas a montanha irá parir um rato. Todo o espalhafato do interrogatório final conduzido pelo comité da faculdade apenas resulta numa boa história, contada de forma um pouco desajeitada por Shunderson, mas cativando a atenção de todos (até o Prof. Elwell é mandado calar, por estar a interromper o decurso da narrativa). É a história de dois namorados, Noah e a filha de um carrasco, e do presente delicioso que ela lhe enviou, o sonho de qualquer estudante de medicina – um cadáver ao qual juntou um billet doux. Um cadáver só para ele, mas com uma contrariedade – não estava assim tão morto, e morde o dedo a Noah quando este começa a examiná-lo. A história contada por Shunderson pede descaradamente um flashback bem ao estilo de Mankiewicz [é um artifício presente em boa parte da filmografia do realizador, em filmes como A Letter to Three Wives (Carta a Três Mulheres, 1949), All About Eve (Eva, 1950), The Barefoot Contessa (A Condessa Descalça, 1954) ou Suddenly Last Summer (Bruscamente no Verão Passado, 1959)], mas a viagem ao passado é feita totalmente pela palavra. Todo este interrogatório apenas logra mostrar todo o ridículo da investigação de Elwell e acaba por resultar no triunfo final de Praetotius. Quem ri por último, ri melhor. Ou melhor, quem ri por último não tem alternativa senão rir, porque o cadáver, quando reduzido a um esqueleto, ri para toda a eternidade, refém de um riso permanente inamovível.
Este episódio permite confirmar aquilo que ia sendo possível apreender sobre o que une Shunderson a Noah: uma sensibilidade para o outro, uma aptidão para discernir o carácter – uma capacidade que, em Shunderson, abrange também a relação com o cão, em que ele rapidamente identifica infelicidade e medo, ao que Noah responde que o animal tem isso de comum com quase toda a humanidade. É novamente o lado depressivo do Dr. Praetorius a vir ao de cima, aquela negatividade que de quando em quando espreita no seu discurso, e que contrasta com o tom sempre efusivo que ele dispensa a cada paciente (um tom que se torna extático quando a palavra é feita de música, como nas cenas em que Noah dirige a orquestra).
Se a história de Shunderson é absurda, mais absurda é a história do casamento de Noah e Deborah (Jeanne Crain). No seu papel de médico com solução para todas as maleitas, Noah está determinado a fazer tudo o que seja necessário para impedir que Deborah tente novamente o suicídio. Percebendo que será impossível dar a Arthur (Sidney Blackmer), pai dela, a notícia de que ela está grávida, Noah deixa-se encurralar por Deborah. O pompous know-it-all é assediado, literalmente encostado à parede, entre conversas de vacas, de leite e de manteiga, o sedutor seduzido, obrigado a casar com aquela mulher. Toda a cena é filmada como um combate de esgrima, digno de uma dupla Errol Flynn – Basil Rathbone, com Deborah a passar ao ataque e a ganhar a dianteira. Touché!
Deborah é incapaz de revelar ao pai a sua gravidez porque ele a ama desmesuradamente, deposita nela todas as esperanças de um homem demasiado cansado das agruras da vida, mas que é também um pouco criança [há igualmente algo de esquivo na personagem de Arthur, o que talvez seja apenas o resultado de não conseguirmos afastar da memória que este é o Roman Castevet de Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968), o que é ainda corroborado pelo facto de o cão de Arthur se chamar Beelzebub]. Ele tem em comum com Noah o facto de ser este misto de velho e criança. Talvez o tal Ludwig seja o lado mais velho de Noah, o homem que se queixa da perda do cheiro das mercearias, da predominância dos enlatados e da manteiga que sabe a papel, da mãe natureza que está aí pronta a aniquilar a humanidade e que lança a advertência quanto às armadilhas no progresso, na pergunta lançada ao Prof. Barker (Walter Slezak) – “e o que fizeram vocês da energia atómica, a bem da humanidade”?
Mankiewicz diz-nos, em suma, que a inteligência, a criatividade, o humor e uma boa dose de benevolência humana são as armas dos mais fortes, contra os Elwells e todos os déspotas deste mundo. O verdadeiro problema de Elwell é astutamente identificado por Barker – ele nunca teve um cadáver só para ele, e muito menos um que lhe mordesse o dedo.