Beware; for I am fearless, and therefore powerful.
Frankenstein
Navegar pelas ficções alegóricas de Yorgos Lanthimos, particularmente desde que da Grécia saiu – com The Lobster (A Lagosta, 2015) -, é aceitar a frustração do excesso. De um trabalho que se baseia no decifrar dos seus muitos símbolos e sinais. Insuportável ou não, acerbo ou não, é um gosto adquirido. E diga-se o que se quiser, um cinema que existe para que sobre ele não saibamos escrever. Uma das caras da assim denominada Greek Weird Wave, movimento pós-moderno que assistiu ao aparecimento de obras cirúrgicas que se debatem sobre a intersecção entre mecanismos de poder e a autonomia corporal de um indivíduo, Yorgos Lanthimos e o seu campo de forças atravessam o coração primitivo da vida contemporânea através da lógica do absurdismo. As personagens de Lanthimos são mais vezes que não prisioneiras de mundos onde as regras e normas são bizarras, tão bizarras que fazem daqueles que as contornam pessoas de substância, radicais na sua sabedoria. Em Poor Things (Pobres Criaturas, 2023) existe Bella Baxter (Emma Stone), num filme mais livre que os restantes (para o bem e para o mal). E é fácil entender porquê. Olhando para o percurso do realizador grego – do cinema independente de micro-orçamento (Kinetta, 2005 e Alps, 2011) ao degrau subido para a universalidade do cinema falado em inglês, e agora à disneyficação dos seus talentos -, Lanthimos não foi para Hollywood. Hollywood pediu a mão de Lanthimos em casamento. Pediu-lhe a aspereza e a fealdade (ou será beleza?) e nomeou-a a 11 Óscares da Academia. Nada diz mais sobre os tempos em que vivemos que isto. Lanthimos conquistou Hollywood (para desconforto da crítica) porque o público assim o quis.
Desde Alps (2011) que não tenho conseguido ultrapassar o vazio de um destino completamente traçado para o espectador. Desde Alps que Lanthimos tem sido só alegoria em forma humana, sem o devido espaço para perguntas fazer ou respostas ter. Sob a tarefa de retratar os vários corredores do behaviorismo humano, é notável quanto tempo passa o autor a tentar obter o máximo de controlo sobre o que se desequilibra no ecrã. Parece ser aliás essa a chave do seu sucesso. Um simples olhar para Poor Things (2023) e algo se altera. Ainda que voltemos aos mesmos desnorteares, às mesmas temáticas e intenções, a diferença desta vez resume-se na forma como encaramos o filme. Ou melhor, como o podemos encarar. Dentro da sala, e de forma imediata, a sua linguagem existe na distorção. A pontuação não é clara. Os olhos oscilam com um apontar de vários ângulos diferentes para um mundo tão instável. A música colida em sons que não deveriam funcionar juntos. Voltamos ao situar da acção com lentes amplas, tão amplas quanto possível, e há ainda momentos fish-eye que afunilam esta personagem que estamos ali para conhecer: Bella, mulher-enferma ou mulher-criança (?) sentada a um piano.
O espectador abre-se à mesma magia de que o cinema é feito e esquenta-se de emoção. Tornamo-nos esponjas durante o acto de absorção de toda aquela corrente eléctrica audiovisual. As razões pelas quais me veria a condenar Poor Things são as mesmas razões que me continuam a atrair ao filme.
Os primeiros 10/15 min são de aclimatização. Não muito diferente dos sintomas físicos de uma primeira vez a fazer mergulho livre, como se tivéssemos ocupado um aquário em vez de uma sala de cinema. Depois disso, por incrível que seja dizer isto, não se observa a distância que seria de esperar. Quando a câmara se evidencia enquanto instrumento, especialmente por causa do recortar do fish-eye, há um intrusão, ao qual nós não somos convidados, mas marcamos presença. Somos coniventes desse voyeurismo que existe para falar de abuso e aliciamento infantil, e acompanhará uma história real de uma bela mulher de carne e osso num mundo que só a quer usar ou silenciar. Tirando esses momentos isolados, o corpo do espectador não só se habitua ao conjunto de ritmos – um muito rico jogo de palavras em diálogos desafinados – que apelam harmonicamente aos seus sentidos como quer continuar na sua influência. Lanthimos tem finalmente a dimensão e o contexto para explorar o crescimento de uma personagem de forma isolada, segundo o cânone do blockbuster.
Livremente adaptado do célebre livro do escocês Alasdair Gray, Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless M.D., Scottish Public Health Officer (1992), Poor Things conta-nos a história de como um cadáver de uma mulher grávida é ressuscitado por um mad scientist Dr Godwin Baxter (Willem Dafoe) – Godwin, nome de solteira da escritora de Frankenstein, Mary Shelley -, quando este último lhe retira o bebé do ventre e coloca o pequeno cérebro do humano por nascer dentro do corpo da mulher adulta. No desencontro entre a idade biológica e a mental, esta torna-se uma criança num corpo amadurecido e dá à luz uma criatura sem igual, uma princesa de Frankenstein: mãe e filha/o juntas/os. Ao invés do que acontece no livro, onde conhecemos Bella através dos mais variados olhares, mas especialmente através de um narrador em quem não podemos confiar completamente, o filme é todo ele o olhar de Bella durante o seu crescer de idade. Começamos no preto-e-branco da infância que evolui para o Technicolor da adolescência/jovem idade adulta durante a era vitoriana num universo esteticamente retro-futurista steampunk que começará em Londres e tocará em várias cidades ao longo do mundo enquanto Bella parte numa travessia fantástica de auto-descoberta (Lisboa, o seu “açúcar e violência” e os seus eléctricos a sobrevoarem os céus é só uma delas). Em suma, é um mundo mecânico onde são os impulsos eléctricos que comandam a re-activação da vida e da gradual abertura do olhar. Tal como Bella, este não foi concebido de raiz. É mecanismo manualmente fabricado, resultante de uma cacofonia de remendos e muita imaginação à mistura. O entendimento de Bella do mundo será assim também. Sexo, por exemplo, é ginástica que liberta a coisa quente e pulsante: “furious jumping”. E ceder a pele na parte interior das suas coxas para que um homem as teste e descubra em qual perna está a pele mais suave é perfeitamente lógico.
Tudo em Poor Things é matéria. E o mesmo pode ser dito do filme e da nossa interacção com ele. Onde as pessoas são desconstruídas como se fossem compostas por peças de legos ou modelos de plasticina, e os animais são invenções grotescas (há um porco com pernas de galinha), o filme é criado a partir de cenários artificiais que mais se parecem com dioramas de cartão da Hollywood de outrora. Tudo é perfeitamente imperfeito, fora de eixo, montado e desmontável, filmado em plateaus húngaros, numa tentativa de capturar não só a visão de Bella mas também como ela se estará a sentir. Poor Things é, antes de mais, um filme de actores e depois um filme de infinitas adjectivações. Sem cair em caricatura, o elenco de luxo Americano (Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Jerrod Carmichael, Christopher Abbott) encaixa na perfeição (até o sotaque britânico rocambolesco de Ruffalo!) e retira essa preocupação de cima do espectador. É raro estarmos focados neles, o foco move-se logo para a mundanidade que exala destas personagens burlescas e estapafúrdias. Também não temos que nos focar na plasticidade do mundo em redor. Tudo se torna real demasiado cedo. Enquanto o olhar de Bella se fixa na êxtase de todo aquele maravilhamento (que acompanha o expandir do seu cérebro infantil), o acto necessário da fuga para descobrir uma noção de casa potencia o olhar do espectador. Absorto em toda aquela surrealidade, olhos abertos para um lugar que se altera constantemente, o espectador abre-se à mesma magia de que o cinema é feito e esquenta-se de emoção. Tornamo-nos esponjas durante o acto de absorção de toda aquela corrente eléctrica audiovisual.
Enquanto nos perdemos neste recreio, a viagem que fazemos espiritualmente é a mesma viagem de Bella. Somos levados de volta a um terreno infantil, para que nele descubramos a mais febril das sabedorias. (…) o cinema mainstream ainda consegue ser acutilante.
As razões pelas quais me veria a condenar Poor Things são as mesmas razões que me continuam a atrair ao filme. Como o célebre crítico de teatro da New Yorker Hilton Als expressou na sua conta de instagram através de uma só foto, o acto de ver Poor Things numa sala de cinema é o acto de ver cinema: ilusão, fantasmagoria, luz e sombra. Uma vez que isso esteja bem assente no corpo do espectador, este testemunha não uma obra feminista, mas a verdadeira história de uma mulher no mundo. Como as suas inibições (nas palavras de Emma Stone, “a falta de uma história de vergonha ou auto-discernimento”) possibilitam a libertação sexual e acompanham a aquisição da sua autonomia enquanto ser. Segue-se a luta para se desemaranhar do patriarcado que a imprisiona para a possuir e consumir: a figura paterna de Godwin (Bella chama-o de God, sem qualquer ironia à mistura), que me levou de volta à feitiçaria de Titane (2021) – a mais perfeita double bill, o amante parasitário (Mark Ruffalo), o noivo que a ama (Ramy Youssef), o marido monstruoso (Christopher Abbott). A mulher-criança, tão feral como um gato verdadeiramente livre, que se torna mulher-objecto hedonístico, acabando por se fazer mulher de si mesma, livre das instituições do casamento ou da igreja, num ser inteligente que a partir do momento em que conhece empatia se torna completo. Comparações a Barbie (2023) podem parecer parvas, mas não fogem à lógica de Poor Things. Enquanto nos perdemos neste recreio, a viagem que fazemos espiritualmente é a mesma viagem de Bella. Somos levados de volta a um terreno infantil, para que nele descubramos a mais febril das sabedorias. Ao contrário do que tínhamos visto acontecer até então, Yorgos Lanthimos não introduz regras neste mundo. Bella descobre as normas da sociedade comum quando se apercebe que as deve rejeitar e porquê. Tal como acontece em Barbie, Bella é uma super-heroína que cai no mundo real e vai-se deparando com as primeiras vezes de absolutamente tudo: “sou um festim em metamorfose!”, explica.
Embora o filme seja definitivamente demasiado longo (a partir das duas horas começa a perder vapor), é filho do cinema-entretenimento que se deita sobre o olhar do desejo e o apetite por liberdade e experiência. Onde antes havia amargura no cinema do autor grego, encontra-se esperança no fazer nascer de uma mulher, alma e cérebros renovados, dentro de um corpo velho que não lhe pertence, com instintos e impulsos que esta não compreende. Mas ali está, a possibilidade de tentar outra vez. De respirar vida, agora do início, sem nada a manchar a experiência. A visão utópica da sua última sequência lava-se da tragédia inicial, e relembra exactamente como não devemos perder-nos de nós mesmos. O mote “It is only the way it is until we discover the new way it is.” ecoou nos intervalos dos meus dias seguintes. Bella é a melhor criação de Lanthimos até agora. E a mais completa também. Suspeito que se tornará figura cinemática de uma liberdade e ambição desiguais. O cinema mainstream ainda consegue ser acutilante. Depois de tantas desilusões com obras recentes, mas especialmente com o cinema de Lanthimos ao longo dos anos, não me esquecerei de que a reparação é sempre possível.
★★★☆☆