It’s dark as a dungeon and damp as the dew
Where the dangers are double and the pleasures are few
Where the rain never falls and the sun never shines
It’s dark as a dungeon way down in the mines.[1]
Merle Travis, Dark as a Dungeon
Desde os anos 1930, os super-heróis enfrentam adversários que ocupam castelos feudais. Os vingadores disfarçados da banda desenhada são aí aprisionados, acorrentados, maltratados, embora acabem sempre por conseguir fugir. Estes episódios celebram a vitória do futuro sobre um mundo já velho e ultrapassado.
Ao que parece, os super-heróis sempre existiram. Retratar seres dotados de poderes excepcionais é uma constante do género épico, desde a Epopeia de Gilgamesh aos grandes textos medievais, desde Homero ao autor desconhecido da lenda de Renaud de Montauban, passando por múltiplos avatares do Romance de Alexandre. Mais próximo de nós, Le Mariage de Roland de Victor Hugo, poema publicado em 1859, evoca a luta titânica entre Olivier e Roland, dois paladinos de Carlos Magno, muitas vezes encenado nas canções de gesta medievais. Este combate excessivo, que Hugo retrata com humor, parece anunciar o género super-heróico e os grandes duelos da banda desenhada, como o que opõe Coisa e Hulk na Fantastic Four n.º 25 (Abril 1964) ou o duelo entre os Vingadores e os X-Men na minissérie The X-Men vs. The Avengers (Abril-Julho 1987). O confronto entre os dois cavaleiros assume contornos que fazem justiça ao ilustrador Jack Kirby.
“Já sem espada nas mãos, nem elmo nas cabeças, / Continuam a lutar, surdos, apavorados, pasmados, / Com grandes golpes de tronco de árvore, imensos.” [2]
E, no entanto, este episódio não pode, a nosso ver, ser qualificado de super-heróico. Os dois paladinos, descendentes de antigas linhagens da nobreza, são vistos nos textos épicos medievais, que aqui imitam e parodiam Hugo, como os antepassados das grandes famílias aristocráticas. Estas últimas transpõem as suas façanhas a fim de justificar o seu domínio sobre uma grande percentagem da população condenada a servi-las.
Nada disso, ou quase nada, acontece com os super-heróis cujas aventuras narram muitas vezes a aquisição – por parte de um homem ou de uma mulher de meio modesto – de poderes que lhes permitem reestabelecer a justiça. Este impulso aparece certamente nos folhetins modernos difundidos na imprensa popular, no início do século XIX, em particular n’O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas (com a ajuda de Auguste Maquet), publicado em 1844 no Journal des débats. A acção do romance começa em 1815, quando o rei Louis XVIII, descendente dos Bourbon, acabado de ser restaurado ao trono de França, volta a ser ameaçado por Napoleão, que regressa do seu exílio na ilha de Elba. Edmond Dantès, um jovem marinheiro erradamente acusado de ser conspirador de Bonaparte, é preso no Castelo de If, ao largo de Marselha. Após um longo período em cativeiro, foge e, adoptando a identidade do conde de Monte Cristo, vinga-se dos notáveis que o tinham aprisionado. Este percurso constitui uma metáfora política: Dantès, ao fugir da fortaleza medieval, realiza um acto sobre-humano e liberta-se da sua condição[3]. A imagem do castelo, compreende-se, é central nesta proposta. É o obstáculo a ser enfrentado pelo herói em devir. O segundo nascimento de Dantès, que o vê transformar-se e assumir a máscara de Monte Cristo, remete para o nascimento da modernidade, em 14 de Julho de 1789 com a tomada da Bastilha, fortaleza medieval servindo de prisão e associada ao arbítrio da realeza. O Antigo Regime e a sua sociedade de ordens dão então lugar a uma nova era onde se afirma que o indivíduo livre, determinado não pelas suas origens mas somente pelos seus actos, prima sobre o grupo e sobre o Estado.
Nos Estados Unidos, país facilmente visto como símbolo de uma modernidade oposta à do resto do mundo, mergulhado nas trevas do Antigo Regime medieval, a imagem do castelo é também empregue de modo negativo. É associada às masmorras da literatura gótica e aos seus instrumentos de constrangimento dos corpos – nomeadamente, as correntes – e representa o obstáculo último que o herói deve transpor de modo a alcançar o estatuto sobre-humano de sujeito moderno emancipado. A fortaleza feudal é um lugar de tensão entre o passado medievalizado e o futuro assimilado à democracia, ao progresso e ao bem-estar. Encontramo-la na biografia de uma personagem-chave da cultura popular americana, Harry Houdini. Este último torna-se conhecido do grande público no início do século XX, aparecendo acorrentado em cena num décor de masmorra medieval, libertando-se num tempo recorde das correntes que o prendem. Com este número de escapologia, disciplina que contribui para popularizar, Houdini evoca a sua própria vida. Judeu austro-húngaro tendo fugido aos pogroms e a uma Europa ainda feudal, emancipou-se e enriqueceu no Mundo Novo. Esta vida “sobre-humana” que viu um ser partir do nada escapar à sua condição inspirou, sem dúvida, vários autores de banda desenhada, muitos deles também oriundos da imigração judia europeia. O escapologista forneceu, assim, a Jack Kirby, em 1971, o modelo do super-herói Mister Miracle (também conhecido como Scott Free, Scott “livre”), também ele sobrevivente de uma ditadura totalitária medievalizada – o mundo de Apokolips dirigido pelo tirano Darkseid – e dotado da capacidade sobre-humana de se libertar de quaisquer correntes [Imagem 1]. O escapologista é ainda citado no romance de Michael Chabon, Les Extraordinaires Aventures de Kavalier & Clay, publicado em 2000, onde autores fictícios de banda desenhada imaginam um super-herói (o Artista da evasão) que passa muitas das suas aventuras a fugir do schloss (“castelo”, em alemão) do abominável super-vilão nazi apelidado de “Manápula de ferro”.

Mas a ligação entre Harry Houdini e o mundo dos super-heróis é mais antiga e data da aparição do primeiro de entre eles, o Super-Homem. Este último é, com efeito, retratado nos certificados dos membros dos “Supermen of America” – o clube de fãs oficial do super-herói fundado em 1939 – a romper com as correntes que o prendem [Imagem 2]. Esta iconografia aparece regularmente num emblema nas capas da Action Comics, a partir do lançamento do número 12 em Maio de 1939. Ela é transposta, numa variante, para toda a capa do n.º 11 de Superman (Julho 1941). Desde então, os super-heróis são periodicamente retratados a romper com correntes em cenários que fazem lembrar uma masmorra ou um castelo.

A ideia já estava presente nos strips (tiras) de imprensa, como é o caso de Flash Gordon criado por Alex Raymond em 1934, onde o herói enfrenta o imperador Ming, um tirano que vive numa fortaleza inspirada nos castelos feudais. Esta personagem inquietante incarna dois imaginários negativos do mundo contemporâneo: o orientalismo, que retrata o Oriente como uma região onde a liberdade democrática não existe, por natureza, e o medievalismo, que associa os tempos medievais à barbárie e à anti-modernidade. Vários artistas combinam estes dois imaginários, como na Action Comics n.º 30 (Novembro 1940), em que o Super-Homem é capturado por beduínos seguindo as ordens do tirano Zolar, que se parece muito com Ming. O super-herói acaba por romper com as suas correntes e atacar a fortaleza medieval do seu adversário. Na imagem, o contraste é surpreendente. Tudo parece separar à esquerda o homem moderno, fisicamente pujante, capaz de voar, como se se tivesse libertado dos constrangimentos do peso da Terra e do Velho Mundo, e o déspota, débil, de pé sobre uma torre medieval, pesada e mineral, enviando os seus soldados para a morte, mas mantendo-se longe dos combates [Imagens 3 e 4].


O castelo não está só ali para evocar tiranos imaginários. Na capa do primeiro número de All Select Comics, publicada pela Timely – as futuras edições Marvel – no Outono de 1943, o ilustrador Alex Schomburg transforma o castelo moderno de Hitler (o “Berghof”) em Berchtesgaden, nos Alpes bávaros, num imenso castelo feudal que é atacado por três super-heróis, o Capitão América, o primeiro Tocha Humana e Namor [Imagem 5].

A ideia não é, na verdade, assim tão fantasista. Heinrich Himmler, o chefe das SS, gostava de imaginar os seus homens como os herdeiros da ordem medieval dos cavaleiros teutónicos e tinha instalado o seu quartel-general no castelo de Wewelsburg, onde tinha mandado construir uma imitação da Mesa redonda arturiana. Também os nazis são constantemente comparados a bárbaros medievais. No mesmo número da All Select Comics, Namor é capturado por um super-vilão de aparência monstruosa ao serviço do III Reich, Herr Baron. Fechado na “masmorra das torturas” da sua fortaleza situada no norte da Alemanha, o super-herói sofre tormentos que se arrastam ao longo de numerosas vinhetas antes de se libertar e de enterrar o seu adversário sob as ruínas do castelo. O desaparecimento do vilão – cujo corpo disforme não deixa de lembrar o corcunda de Notre-Dame – e da sua masmorra soa como a queda de uma nova Bastilha e o fim de uma tirania feudal [Imagem 6].

O motivo da fortaleza medieval conhece um grande sucesso. Vários filmes de guerra utilizam-no, como Where Eagles Dare (O Desafio das Águias, 1968) e The Dirty Dozen (Doze Indomáveis Patifes, 1967), duas longas metragens que retratam comandos americanos a atacar nazis refugiados nos castelos (o de Hohenwerfen no primeiro caso). Na banda desenhada, é reutilizado nas aventuras de um dos super-vilões mais populares da Marvel, o Doutor Destino (Doctor Doom). Desde a sua primeira aparição na Fantastic Four n.º 5 (Julho 1962), o seu refúgio assume esta forma, enquanto o seu reino, a Latvéria, situada nos “Alpes bávaros”, Fantastic Four Annual n.º 2 (1964), evoca a região onde Adolf Hitler mandou construir o seu chalé [Imagem 7].

A capa, a armadura pesada, a prática da magia, tudo parece remeter Destino para uma sombria Idade Média europeia, à qual se opõe a modernidade do seu principal adversário, Mister Fantastic, génio científico e empreendedor audacioso que vive na América. Ao mesmo tempo, os autores de banda desenhada têm prazer em retratar uma outra forma de totalitarismo – que, no entanto, não é habitualmente associada à Idade Média – empregando traços medievalizados para melhor a denegrir. Assim sendo, em 1954 a super-heroína Phantom Lady enfrenta agentes estalinistas num castelo (Phantom Lady nº 5[4]) [Imagem 8]. De forma semelhante, o super-herói Thor é “prisioneiro dos comunistas” numa masmorra medieval em Journey into Mystery n.º 87 (Dezembro 1962).

Um imaginário semelhante encontra-se hoje em dia em filmes como Avengers: Age of Ultron (Vingadores: A Era de Ultron, 2015), no qual a equipa dos Vingadores, dirigida pelo Capitão América, ataca uma base controlada por uma sociedade secreta (Hydra) afiliada ao regime nazi. Esta fortaleza, também ela situada numa região montanhosa da Europa, tem o aspecto de um castelo. Quando um dos super-heróis – Iron Man que, como veremos no capítulo XVI, tem muitas características do cavaleiro – destrói o campo de força que a protege, ele escreve: “A ponte levadiça baixou!” (The draw bridge is down!) [Imagem 9].

No filme Batman: The Dark Knight Rises (O Cavaleiro das Trevas Renasce, 2012), o super-herói homónimo é encarcerado por um grupo terrorista numa fossa imensa situada no Oriente, facilmente assimilável a uma masmorra. Quando acaba por conseguir sair, o plano em contre-plongée mostra-o a erguer-se (ver de seguida a importância polissémica desta postura) com um castelo[5] em segundo plano. Os inimigos de Batman fazem lembrar irresistivelmente jihadistas [Imagem 10]. Ora, estes últimos são regularmente associados a uma forma de “barbárie medieval”, e isto desde os anos 1970 em que o geopolitólogo Hedley Bull descreve os movimentos terroristas transnacionais como os sintomas de uma “nova Idade Média” (New Medievalism). O homem moderno – logo, ocidental e representando a sociedade liberal americana no espírito dos autores – já não tem de enfrentar o totalitarismo nazi ou soviético, mas deve libertar-se das forças centrífugas vindas do Oriente que, querendo destruir a democracia capitalista, procuram mergulhar o mundo nas masmorras de uma época neofeudal.

O super-herói é então aquele que se ergue para sair do cárcere, à semelhança de Monte Cristo, e que, ao fazê-lo, se opõe à injustiça do mundo antigo onde o poder vindo do Céu calha a uma pequena minoria hereditária. To rise em inglês significa a acção de se meter de pé, mas também a de subir nos escalões sociais, de adquirir poder político ou simplesmente de se revoltar (to rise up). Expressão suprema dessa faculdade emancipatória dos super-heróis, para o melhor ou para o pior, o Super-Homem é representado desde o início dos anos 1940 nos desenhos animados realizados pelos estúdios Fleischer a voar e a libertar-se das correntes de atracção terrena rumo aos céus, que os heróis da Antiguidade, como Ícaro, jamais tiveram o direito de alcançar[6].
© William Blanc
Tradução: Moira Difelice
Primeiro capítulo do livro Super-Héros: Une Histoire Politique, da editora Libertalia. Mais informações sobre esta edição aqui.
O À pala de Walsh agradece à editora e ao autor o facto de terem acedido ao nosso pedido de inclusão deste capítulo no nosso dossier It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis.
[1] “É escuro como uma masmorra e húmido como o orvalho / Onde os perigos são muitos e o prazer raro / Onde a chuva nunca cai e o sol nunca entra / É escuro como uma masmorra nas profundezas da mina.”
[2] “Já sem espada nas mãos, nem elmo nas cabeças, / Continuam a lutar, surdos, apavorados, pasmados, / Com grandes golpes de tronco de árvore, imensos.” HUGO Victor, La Légende des siècles, Michel Levy frères, 1859, p. 91.
[3] Durante o período entre as duas guerras, o pensador marxista Antonio Gramsci foi o primeiro a descrever Monte Cristo como sobre-humano. Aqui fica o que ele escreveu no quarto parágrafo do caderno 14 dos seus Cahiers de prison: “De qualquer modo, parece que se pode dizer que boa parte da dita sobre-humanidade nietzschiana encontra o seu modelo e a sua origem ‘doutrinal’ muito simplesmente n’O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas.” Cahiers de prison, Hetzel, 1990, p. 17 (tradução Françoise Bouillot e Gérard Granel). Para Gramsci, contudo, a sobre-humanidade de Monte Cristo é pejorativa.
[4] Note-se que esta imagem é uma cópia daquela publicada na Spitfire Comics nº 132 (Agosto 1944), onde se vislumbra um nazi no lugar do agente soviético.
[5] É o forte de Mehrangarh, construído no fim do século XV no Estado do Rajastão, na Índia, que serviu de décor para este plano.
[6] A partir dos anos 1970, o Super-Homem torna-se, aliás, uma espécie de anti-Ícaro. Enquanto o herói antigo caiu do céu porque se aproximou demasiado do Sol, os poderes do Super-Homem (e a sua capacidade de voar) aumentam à medida que se aproxima da nossa estrela.