Não seria de começar pelo óbvio? A banda desenhada (entendida enquanto sequência de vinhetas que contam uma história) e o cinema nasceram na mesma época, são ambas dependentes da técnica e da industrialização – seja do lado da produção, seja do da reprodutibilidade e distribuição –, e nos dois casos estamos perante formas de expressão primariamente visuais. Ao cinema é inerente o movimento e não tardou até que tivesse som; na BD, deles impossibilitada, recorre-se a todo um conjunto de convenções gráficas para representá-los. E se no cinema essa mesma inovação técnica do som permitiu que a dimensão verbal e dialógica deixasse de depender do recurso a intertítulos, na BD, que manteve as legendas no seu arsenal semiótico, sofisticaram-se as convenções para esse efeito, por exemplo através dos balões de fala e de pensamento. Quase não valeria a pena acrescentar, mas fazemo-lo por uma questão de completude, que ambos podem apresentar-se a cores ou apenas a preto e branco, sendo que também para ambos esta última modalidade deixou de depender de limitações técnicas para se tornar uma opção estilística ou mesmo estética.
Com tantos elementos em comum, estranho seria (e mais ainda tendo em conta a sua popularização de massa) se não existissem cruzamentos mútuos. “The Katzenjammer Kids”, personagens de tiras diárias de jornal criadas em 1897, tiveram uma versão em cinema logo no ano seguinte, talvez a mais antiga adaptação de banda desenhada para filme – e, note-se, em live action, antecedendo uma mais expectável série animada de curtas, que surgiria em 1916 e durou até 1918. Por sua vez, personagens como as de Chaplin (logo em 1915), Buster Keaton e outros foram adaptadas a comic strips, comprovando uma “spreadability” entre meios que bem poderia encaixar nas teorias de Henry Jenkins. Mas nem é preciso ir tão longe na fundamentação teórica. Basta considerar, como lembra Liam Burke em “The Golden Age of Comic Book Filmmaking”, as vantagens económicas que resultam de adaptar da BD para o cinema (ou, acrescentemos, do cinema para a BD) personagens e universos ficcionais previamente conhecidos do público.

Aplicando o filtro adicional dos géneros narrativos, deparamo-nos ainda com a apetência de ambos pelas histórias de ação e aventura, seja em modalidades mais próximas do realismo como é o caso do western ou do policial, seja pendendo para as mais informadas pelo fantástico, de que é exemplo o horror. Há que reconhecer, no entanto, no campo dos géneros afins à fantasia, uma barreira que durante muito tempo se colocou ao cinema live action mas inexistente no caso da BD ou do cinema animado: a daquilo a que optaremos por chamar – pela afinidade mas também para melhor se distinguir do termo “verosimilhança” – a plausibilidade da imagem. Tanto ou mais do que o horror, a ficção científica e esse género próximo mas ao mesmo tempo tão distante que são as histórias de super-heróis durante muito tempo padeceram das limitações técnicas (e em parte também financeiras) na criação de efeitos especiais. Obras-primas como 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) ou Solaris (1972) servem, pelo caráter de excecionalidade enquanto representantes da FC nas listas de referência, muito mais de confirmação do que de contraexemplo, num panorama em que tais géneros estavam praticamente confinados à “Série B”. Note-se o efeito de retroalimentação: os géneros que exigem mais recursos técnicos são também, apesar da sua potencial popularidade, os mais menosprezados pela intelligentsia, o que durante muito tempo levou a que fossem subfinanciados, o que conduziu a uma qualidade média bastante pobre, o que gerou ainda mais menosprezo pela crítica e por vezes também pelo público.
Não que isso tivesse impedido a produção de filmes de super-heróis – mesmo que por vezes seja necessário considerar também como tal o que na verdade são apenas “heróis mascarados” e com algum tipo de habilidade fora do comum. Capitão Marvel (aquele que não é da Marvel e hoje em dia é conhecido como Shazam)? 1941. Batman? 1943. Capitão América? 1944. Mas praticamente nada do que foi realizado antes do Superman (1978) figurará nos cânones do cinema. O motivo escreve-se com três letras apenas: CGI; ou melhor, a sua ausência.
Se tomarmos os anos 90 (com um prelúdio em 1989 com o primeiro Batman de Tim Burton) como um período de lenta ascensão do cinema de super-heróis – em boa verdade com pouco de relevante além das sequelas de Batman, com Blade (1998) como o injustamente esquecido representante da rival Marvel –, podemos então com alguma confiança definir as duas primeiras décadas do século XXI como a sua “época dourada”. E invertendo a primazia inicial da DC Comics, a entrada na velocidade de cruzeiro a que assistimos desde há algum tempo representou igualmente o triunfo da Marvel.
O resto da história é bem conhecido. Começa com a cedência de direitos de personagens isoladas a diversas companhias produtoras como a Fox (X-Men, Daredevil, Fantastic Four) ou a Sony/Columbia (Spider-Man), mas o sucesso destes filmes leva a Marvel a criar o seu próprio estúdio. E, em boa parte por assim manter o controlo sobre a sua propriedade intelectual, a finalmente arriscar transpor em grande escala aquela que era há muito uma das suas marcas definidoras no campo dos comics: um universo ficcional não só partilhado como densamente interconectado e interdependente (mesmo que pejado de inconsistências que vão sendo retconned quando necessário). A estratégia funcionara na perfeição como modelo económico para a banda desenhada: a relativa autonomia das personagens e a continuidade das narrativas em torno destas permitindo um mercado cativo de aquisição de números sucessivos, sem término à vista, de revistas com periodicidade fixa; o cruzamento dessas histórias e personagens em arcos narrativos maiores, por vezes culminando em álbuns especiais, conjugando leitores-compradores que de outra forma se limitariam às suas preferências de rotina; e ainda as ocasionais minisséries (mais ou menos) autocontidas que induzem uma perceção de raridade, inclusive trazendo para a ribalta personagens secundárias ou de outro modo menos vendáveis.

Ainda que tendo demorado até aperfeiçoar a adaptação do modelo do shared universe ao cinema, meio que não pode contar com a frequência acelerada de publicação da banda desenhada – e talvez com essa demora, perdida a oportunidade de fazê-lo no momento certo com algumas personagens de primeira linha como os X-Men – as homologias são fáceis de reconhecer. Temos filmes centrados em personagens (uma longa lista que começou com Iron Man e The Incredible Hulk), filmes coletivos (a tetralogia Avengers), mais recentemente as séries televisivas (que, apesar de equivalente próximo das minisséries da BD estão agora, depois da aquisição por parte da Disney, muito mais articuladas com a vertente cinematográfica do que no período Netflix), e ainda a relativa originalidade das cenas pré, durante e pós-créditos que mostram o entretecimento do universo diegético e servem de teaser para futuros installments.
A pergunta a fazer, no momento em que já foi ultrapassada a marca de três dezenas de filmes só do chamado Marvel Cinematic Universe (nem contemos os das personagens licenciadas a outras produtoras), é se a fórmula continua a fazer sentido, a ponto de a publicação académica Science Fiction Film and Television estar neste momento a organizar um número temático ironicamente intitulado “What Was the MCU?”. E, por arrasto, podemos inclusive perguntar se alguma vez fez sentido. A resposta a esta última pergunta é mais simples. Reduzir o Cinema – assim mesmo, com maiúscula – ao conjunto de obras que obedecem a um somatório mais ou menos determinado de critérios ou que, ainda debaixo do filtro desses critérios, ultrapassam uma certa fasquia de “qualidade” – aspas também propositadas – equivale a cair num esteticismo ou num academicismo que menospreza a sua significância cultural, ou que no limite só a redime quando arqueologizada por uma certa nostalgia retro, como os filmes de artes marciais depois de revisitações como Kill Bill. Sim, é necessário reconhecer que a lógica do MCU é a lógica comercial dos blockbusters – aliás, passou a ser o próprio paradigma daquilo que é um blockbuster contemporâneo –, mas nem o mais inane produto do cinema de entretenimento estará alheio a uma dimensão sociocultural. Menos ainda quando ocorre a esta escala.
Ora, dimensões socioculturais são coisa que nunca faltou nos filmes de super-heróis, tendo à cabeça a existência de um fandom, em parte herdado da BD (e, reconheçamos, também contaminado pela dimensão nostálgica, pelo menos no caso das gerações mais adultas), mas também constituído de raiz por aqueles que conheceram primeiro o universo através do cinema. Fosse por mero interesse estratégico ou por genuína convicção, a Marvel Comics do final da silver age (anos 60) e especialmente da bronze age (anos 70 e 80), sob a incontornável orientação de Stan Lee, procurou não se alhear desses fãs nem do contexto social da época. Durante esse período, os temas abordados nos comics tornaram-se mais adultos, ganharam maior densidade psicológica e sociológica, e procurou-se (mesmo que por vezes roçando a exploitation) incluir personagens negras, hispânicas e de outras minorias – não sendo a isso alheia a ubicação de boa parte das narrativas em cenários reais como Nova Iorque, ao contrário da Gotham e outras Metropolis da DC Comics.

A transposição dessa mesma representatividade para o universo cinematográfico, cobrindo não só a componente narrativa como também a da produção (com realizadoras como Chloé Zhao ou mais recentemente Nia DaCosta), poderia tão-só ser tomada como o natural prolongamento da abrangência “stanleeana”, não fosse o facto se dar em pleno Zeitgeist das chamadas “guerras culturais” e da ascensão de movimentos populistas e conservadores que têm, entre outros alvos, a “woke Disney” sob ataque cerrado. É certo que muitas das personagens mais emblemáticas do conglomerado (Capitão América, Homem de Ferro, quase todo o alinhamento mais canónico dos Vingadores…) foram “aposentadas” com o final da Fase III, i.e., com o termo da Infinity Saga, a isso se aliando um inevitável cansaço do público após – à data – nada menos do que 23 longas-metragens.
Segundo uma perspetiva talvez demasiado otimista, isso significa que os caminhos mais óbvios foram arrumados e há espaço para arriscar na forma e no conteúdo, e com efeito algumas séries televisivas, muito mais do que os filmes da Fase IV e os já estreados da Fase V, têm-no tentado. Mas quando essa potencial maior liberdade se vê confrontada com, no caso do mais recente The Marvels, uma descida de centenas para o mísero (alerta irónico!) recorde mínimo de cerca de 46 milhões de dólares de bilheteira nos EUA no primeiro fim de semana, outros bodes expiatórios assomam. Alguns plausíveis, como a greve dos atores e argumentistas que inviabilizou ações promocionais, ou o facto de ser cada vez mais difícil navegar na teia narrativa do “multiverso” das Fases IV e V, ao contrário das II e III onde se podia assumir que no final da sessão se estaria um pouco mais perto de completar o puzzle. Outros muito menos, como as alegações de negligência apontadas à realizadora e a uma das diretoras de efeitos especiais. E, cereja no topo para um filme com uma personagem negra, outra muçulmana e ainda outra que pode ser lida como bissexual, todo um exército de trolls que se mobiliza sempre que se sentem ameaçados pela diversidade em campos da cultura pop outrora considerados domínios brancos, masculinos e heterossexuais, como já acontecera com Black Panther, embora com muito menos repercussão porque o vigor do franchise era então muito maior e o movimento Black Lives Matter estava ainda no topo da agenda mediática.
Jorge Martins Rosa
Professor universitário