The Misfits (Os Inadaptados, 1961) tornar-se-ia o primeiro e único filme escrito para Marilyn por Arthur Miller (dramaturgo e marido da actriz), numa obra que conjugava, nas boas práticas publicitárias de Hollywood, talento e celebridade, pois para além da estrela juntou o cineasta John Huston e mais duas figuras maiores da paisagem dos media: Clark Gable e Montgomery Clift.
Na primeira sequência entregue a Clark Gable, ele está a despedir-se de uma mulher na estação de comboios; ela, chorosa, diz-lhe que não acredita que se voltem a encontrar e o espectador começa logo a convocar a carga de mais de 30 anos de Hollywood de personagens de Gable, aqui com cerca de 60 anos, a interpretar o tradicional mulherengo (mas sempre um cavalheiro), aqui um cowboy, que responde por Gaylord Langland. No primeiro encontro de Gable com Marilyn (Roslyn Tabor), ela fala-lhe de uma mãe ausente na infância e diz-lhe que não chegou a completar o secundário, mas que é uma mulher independente. Ao comentário dele – de que isso é uma boa notícia, Roslyn pergunta-lhe se ele não gosta de mulheres instruídas. O trabalho de composição de Marilyn, em paralelo com o guião do marido, convoca o seu percurso em Hollywood, feito das suas inseguranças, olhada pelo público e pela indústria como uma playmate, a quem poucos atribuíam talento e motivação para representar, em algo que a estrela passou grande parte do tempo a tentar contrariar. Os outros personagens também participam dessa arquitectura de Hollywood, como quando Isabelle Steers, a senhoria (interpretada por Thelma Ritter, uma das grandes secundárias da indústria dos sonhos), diz a Roslyn que ela é uma ingénua, pois os cowboys intitulam-se os últimos homens na Terra, mas não são confiáveis.
Gaylord, também divorciado e com dois filhos, oferece a sua amizade a Roslyn, mas acabarão a dormir juntos, seduzidos pelos passados de cada um, Gable com idade para ser pai dela (Marilyn tinha 35 anos), numa ligação, então, elástica, entre uma relação paternal e a estabelecida entre dois amantes adultos; decerto Marilyn, com o auxílio de Miller, trouxe para o filme o que fora relatado por Norman Mailer em Marilyn (1973), a biografia romanceada, de que a adolescente Norma Jean, gerada fora do casamento, fantasiava que Clark Gable era o seu pai, algo que confidenciava às colegas do orfanato enquanto mostrava as fotografias do astro que trazia na carteira. Essas suspeitas serão confirmadas durante o desenrolar da narrativa numa disputa conjugal expressa nas palavras de Gable: “Só fiquei um pouco zangado. O seu pai nunca lhe deu uma palmada, para logo a seguir a pegar no colo e a beijar?”.
Gaylord e Roslyn restauram a casa de Guido (Eli Wallach, mais um extraordinário secundário), que a abandonara depois da morte prematura e traumática da jovem mulher, então no final da gravidez. Nas conversas com Marilyn, Gable enaltece a ruralidade, como depois elogiará o instinto em contraste com a racionalidade, como um lugar onde se pode realmente permanecer. Os dois estão a tentar construir uma relação e um lugar para viver, mas, pouco a pouco, e tal como os restantes personagens, assumirão que são criaturas perdidas nas suas histórias, como os puzzles que não encaixam, que o espectador vira no genérico do filme. Gaylord confessa a Roslyn que ela é a mulher mais infeliz que ele conhecera. Marilyn responde que os homens lhe costumam dizer justamente o contrário, ao que Gable remata que isso é porque ela faz os homens sentirem-se felizes, o que nos relembra a crença do espectador dos anos 1950, sentado numa sala de cinema, que fantasiava que Marilyn poderia saltar do ecrã e sentar-se ao seu lado. Pouco depois, Ritter e Wallach visitam o casal e num percurso pela casa acedem a um armário que junta várias imagens de Marilyn, retiradas do seu percurso de vedeta da indústria, o que confirma a permanente ameaça de Hollywood invadir o filme.
As primeiras sequências nas ruas de Reno (no Nevada) encontram também Perce Howland, interpretado por Montgomery Clift, vedeta da mesma geração de Marilyn, outro dos problemáticos de Hollywood, um desajustado, que morreria quatro anos depois, devido a problemas de saúde associados ao consumo do álcool. Nesse primeiro encontro de Marilyn com Clift, o cowboy (especialista em rodeos, em montar cavalos e touros) está numa cabine telefónica a falar com a mãe, sendo que mais tarde revela-se refém da morte do pai, ainda jovem, a intensificar um filme conceptual: uma antologia de desajustados.
Roslyn concentrará as atenções em todos os lugares – nas ruas, nos bares e no rodeo, como se quem estivesse ali fosse Marilyn Monroe e não a sua personagem, como se estivessem todos dentro de um grande ecrã de cinema, em vez de um set. Ela é cobiçada por todos, pela beleza, pela graciosidade, pela franqueza, por uma certa ingenuidade, por se importar: Roslyn chora e aflige-se, quando Clift cai no rodeo. Norman Mailer diz-nos que The Misfits é o corolário para Marilyn de “uma existência visual” que a distancia dos outros intérpretes, pois “não é tanto uma mulher quanto uma presença, não uma actriz, mas uma essência”. Mas em todos estes lugares, o interesse de Huston pelo mundano, por rostos, objectos e acções de figurantes e transeuntes oferece um curioso contraste com a presença de todas estas estrelas de Hollywood. Ainda na cidade vemos Gable embriagado, a convidar Marilyn para conhecer os filhos. Mas quando chegam ao bar, os filhos tinham escapado. Gable sai, então, para a rua, e em desespero grita os nomes dos filhos. Se até aí parecera o personagem mais equilibrado, a sequência revela-o tão inadaptado quanto os outros, alguém que vive noutro tempo, enjaulado na sua galeria de personagens.
Estranhamente, John Huston não conhecia o historial de atrasos de Marilyn e a consequente perturbação nas rodagens. A estrela atrasou-se logo no primeiro dia e a rodagem passou a ajustar-se a um padrão: filmavam com Marilyn quando ela estava disponível e sem ela quando não estava. Na fase final da rodagem, Marilyn estava no centro de uma guerrilha que envolvia o realizador, os actores e o guionista, o que provocou atrasos e um custo acrescido da produção. Também o guião de Arthur Miller está sempre em aberto, disponível para a reescrita em torno do personagem de Roslyn, da indefinição do tipo de relação dela com cada um dos homens. Mailer exemplifica com o encontro de Marilyn com Montgomery Clift, não menosprezando a biografia na falha de identidade dela: “Quando segura a cabeça de Monty Clift no seu colo depois de ele ter sido ferido num rodeo, não sabemos se está a ser maternal, ou se está atraída, ou ambos – e tampouco deve saber o que sente. Na vida, como saberia?”. É mais uma presença luminosa do que uma interpretação, o resultado de um estado “sensorial” que não define um contorno exacto na tela: “Não é tanto uma mulher, mas um estado de espírito, uma nuvem de sentidos à deriva na forma de Marilyn Monroe”.
No terceiro acto, Marilyn ficará com o encargo de os consolar a todos, a Gable, a Clift e a Wallach (este marcado pela guerra, pela destruição provocada pelas suas acções, como piloto de aviões), com a narrativa a instalar-se na montanha, numa caçada de cavalos selvagens. Na primeira noite, no acampamento e numa fogueira que aclara o diálogo entre Marilyn e os três homens, instala-se um lugar que remete para um tempo que escapa aos ponteiros do relógio. Todos olham o céu e Wallach fala-lhes das estrelas, que uma delas pode já não existir, pois são acontecimentos do passado, que só agora se tornaram visíveis para eles. A sequência evidência, então, que The Misfits quer falar de um conceito de tempo, de um tempo que já se esgotou (o dos cowboys no embate com a máquina e a cidade), mas também de um tempo primordial, depois do golpe desferido pela racionalidade sobre o instinto, atributo desconsiderado pela modernidade. Entretanto, o cão sobressalta-se e Marilyn fica preocupada, ela é como um radar que se mantém ligada a todos. Segundo Wallach aquele cão também já foi selvagem, ele sabe que há animais selvagens por ali, o instinto dele, que ele guarda há muito tempo, fornece-lhe essa informação. O cão recorda-se de vidas passadas, de outro tempo que o instinto agora lhe devolve.
Os tempos mudaram. Os cavalos selvagens que aqueles três homens vão caçar acabarão no prato de alguém, porque as pessoas são agora transportadas por automóveis. Marilyn revolta-se com Gable, não aceita que sendo um homem gentil, ele mate. Mas Gable responde que nada pode viver, se algo não morrer, que aqueles cavalos são “misfits”, desajustados, estão ali para serem apanhados pelos caçadores. São como estes personagens, caçados por Hollywood, pensa o espectador. Enquanto os homens imobilizam e derrubam o garanhão de um grupo de seis cavalos, Marilyn chora desesperada e refugia-se no interior do carro. Depois de estimado o peso dos cavalos e o valor que cada um receberá, Marilyn acusa-os de serem uns talhantes. Durante estas interpelações, ao espectador são fornecidos indícios de que os três homens têm a pretensão de saber o que aquela mulher precisa, mas nós compreendemos que são eles quem necessitam de Marilyn. Clift, que fora o mais relutante no objectivo daquela caçada, começa a libertar os cavalos. Clarke Gable reage e agarra a corda que segura o garanhão. Desse confronto, o filme oferece-nos a derradeira metáfora da luta contra a passagem do tempo, contra as mudanças impostas pela tecnologia, de alguém que respeita o instinto animal, mesmo que não o racionalize e discuta. Gable debate-se, tal como o cavalo, até estar exausto, mas acaba por derrubar o animal, para depois o libertar.
O epílogo de The Misfits encontra o casal protagonista no carro. Marilyn diz a Gable que partirá na manhã seguinte. Mas o enquadramento dos dois, a câmara de Huston, desmente-a, ao colocar os dois no mesmo plano e progressivamente mais próximos: eles terão a possibilidade de continuar a construir um futuro em conjunto.
Em Marilyn, Mailer dedica grande parte do capítulo de The Misfits ao dentro e fora da vida da protagonista e da sua relação com Arthur Miller. O escritor diz que Miller procurava refinar o guião durante as noites com o conceito estético de que a “adorável e vulnerável” Roslyn seria uma projecção de Marilyn, como quem edifica um “templo”. Essa “mentira” era dificultada por um quotidiano espalhado por três quartos de hotel em Reno: um escritor exausto, que tentava cuidar da esposa, das suas insónias, além dos rumores da infidelidade com Ives Montand, com quem Marilyn se encontrara numa das fugas da rodagem. O filme tinha sido um projecto de três anos do casal, que tinha como objectivo dotar Marilyn de uma “identidade pública”, de modificar a essência da estrela, a “rainha do sexo seria encarnada numa mulher” que se transformaria, então, no “anjo do sexo”. A rodagem de The Misfits terminaria a 5 de Novembro de 1960. Dias depois, Marilyn voltou para um apartamento vazio em New York. Uma semana depois, a estrela anunciaria a separação de Arthur Miller, depois de cinco anos de casamento. Em paralelo, Clark Gable teve um ataque cardíaco logo após a rodagem e morreu onze dias depois. Se como nos diz Mailer, o filme fica como um testamento, em que “cada cena em que (Gable) aparece é capaz de trazer á memória metade da história de Hollywood”, o pathos das horas que antecederam a morte e o desfecho do destino do seu pai/amante substituto, colocam Marilyn a “viver mais perto da morte”. A estreia do filme traduziu-se num falhanço comercial, obteve críticas divididas, mas com o passar do tempo tornou-se, para uma boa parte dos historiadores do cinema, uma das mais importantes obras do crepúsculo da Hollywood clássica e um dos principais elementos para a canonização de Marilyn.