Michael Winner realizou a sequela de Death Wish (O Justiceiro da Noite, 1974) porque sonhou ser sodomizado por bandidos? É o objecto de debate, no plateau da emissão britânica New Faces, numa certa noite de 1982. Winner é confrontado com o fogo cerrado da crítica: teria sido boa ideia, perguntava ela, fazer regressar Paul Kersey para punir de novo os escroques do bairro? Seria ainda necessário filmar mais uma vez a violação de sua filha Carol e sua morte trágica? Esta implacabilidade não seria um sinal do cinismo mercantil ou, pior, de uma complacência própria de um pornógrafo? O realizador ouve os protestos, abrigando-se por detrás do fumo do seu cigarro: “A violação é um tema tristemente antigo e está actualmente na mente do público. Não vejo porque é que um tema, qualquer que seja, deva ser excluído da ficção.” À questão de saber o porquê de reanimar uma história sombria que parecia completa, se não para fazer chover as receitas, o cineasta responde simplesmente que “a sociedade mudou no espaço de oito anos que nos separam do primeiro Death Wish, a criminalidade explodiu espectacularmente para lá das nossas previsões. Havia, pois, a necessidade de contar uma nova história pertinente. E o público, como vêem, parece pensar como eu.” Pese embora o sucesso desta sequela, a cronista feminista Anna Raeburn reforça que a maneira como ele prolonga uma violação dupla com sodomia é a indicação não apenas de um cinismo indecente, mas também de um desejo inconsciente, de infligir um mesmo assalto. “A ideia de sodomizar habita visivelmente a cabeça do Senhor Winner e eu só desejo que tal lhe aconteça em breve”, conclui ela.

Menos desafiador do que a crítica, o público aclama Death Wish II (O Vingador da Noite, 1982), o que promete a Winner a realização de um terceiro episódio, Death Wish 3 (O Justiceiro de Nova Iorque, 1985), que será ele próprio seguido de Death Wish 4: The Crackdown (O Exterminador da Noite, 1987) e Death Wish V: The Face of Death (A Sombra do Justiceiro, 1994), realizados respectivamente por Jack Lee Thompson e Allan A. Goldstein. Paul Kersey tornou-se um herói dos anos 80. Ele agora patrulha ao longo das artérias soalheiras de Los Angeles, onde as colinas são filmadas desde o céu durante um genérico em forma de carta postal em movimento. Compra gelados de baunilha enquanto se passeia pelos cais com a sua nova companheira (como sempre, Bronson impôs a sua, Jill Ireland) e a sua filha Carol – mas o quadro familiar será em breve destruído. O lobisomem dostoiévskiano de Manhattan converteu-se em máquina de guerra reaganiana, um autêntico soldado civil que organiza a sua vida dupla (marido ideal/homem de acção vestido de negro), como os heróis da banda desenhada. O grande público está pronto para esta transição. O argumento de Winner é, contudo, válido – de facto, as multidões ainda não saciaram a sua sede quanto a medidas draconianas de combate ao flagelo do crime -, mas o do seu oponente contém a verdade. No início dos anos 80, Winner encontra-se, de facto, face à necessidade de pagar dívidas e roda o segundo Death Wish com um orçamento modesto, contratando o vizinho Jimmy Page para compor a banda sonora quase gratuitamente e selando o franchise com a Cannon Group [de regresso ao campo dos vigilantes, 12 anos após Joe (1970)]. Este segundo filme é um produto bem “calibrado”, de tal modo que podemos pensar que visa, desde logo, restaurar as finanças de Winner, mas está, no entanto, destinado a concretizar os seus desejos voyeuristas, sádicos ou sodomitas? Deixando a responsabilidade da interpretação a Anna Raeburn, é preciso reconhecer que as sequelas de Death Wish têm coisas próprias da pornografia. Reconfigurando, sob uma forma espúria, a representação do vigilantismo no campo do mainstream, as versões reaganianas de Kersey e de Harry Callahan vão acabar por cansar não só a imprensa como o público, a ponto de encerrar o arquétipo no porão dos anos 80 – de onde ele não escapará até encontrar um nicho, aqui e ali, que possa gostar dele.
Esta qualquer coisa pornográfica, por seu lado, não se encontra unicamente na maneira de filmar as violações. É o gesto repressivo em si mesmo que se torna obsceno, porque é sistematizado. Onde o predecessor formulava um death wish em relação ao qual sopesava a parte nociva e ganhava distância sobre Kersey, Death Wish II estabelece as bases do que será, daqui em diante, o acto punitivo da saga: um espectáculo programado, prometido à plateia como se promete uma performance sexual ao cliente de um peep-show. Como já dissemos, o próprio Kersey planifica, daí em diante, as suas expedições sem ser o brinquedo doentio eivado de uma melancolia de lobisomem, como era o caso no primeiro tomo. O arquitecto segue sempre o seu plano, mas com a frieza táctica de um militar ou missionário de Deus: “Crês em Jesus Cristo? Porque vais vê-lo de perto”, diz a um street punk antes de o atirar para o meio dos ratos. Em contra-picado, ele mata a sua vítima, dizendo-lhe “goodbye” (e não “farewell”: talvez se voltarão a encontra no inferno?). Encontra-se isto em Death Wish 3, quando Kersey pega em armas de guerra e metralha os inimigos no ponto alto com uma Browning M1919, adoptando uma posição de sniper totalitário, qual Scorpio [vilão de Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971)]. Se este episódio remete para o western por enclausurar Bronson numa rua de East New York caído nas mãos de gangsters, Winner faz disso um filme de guerra onde nos podemos surpreender por Paul Kersey manejar tão bem armas pesadas (e não simplesmente revólveres) e se vestir mais de super-soldado do que de cowboy, ele que foi objector de consciência durante o seu serviço na Coreia – incoerência gritante: Kersey tornou-se a traição de si mesmo.

Os contra-picados que o mostram a “regar” os gangs não têm nada que ver com aqueles que adoptou Winner para significar o sadismo de Burt Lancaster em Lawman (O Homem da Lei, 1971): os canhões foram, desta vez, ampliados, pesados, como “as extensões do nosso pénis”, evocadas por Jainchill, o anjo da guarda redneck de Kersey. Pornografia, como sempre: estes prolongamentos da série não se importam de tomar as suas distâncias éticas e de reproduzirem o movimento de recuo literal que descrevia Don Siegel para se dessolidarizar com as práticas torturadoras do inspector Callahan no Kezar Stadium. Através da sua promessa de campanha (“Let’s make America great again”), Reagan bem que desejou regressar aos abençoados fifties, época vingativa que ele engendra ou, pelo menos, torna possível – as sequelas de Death Wish fazem parte dela. Olhemos mais longe ainda: elas reenviam-nos ao início dos anos 30, quando, com The Beast of the City (A Fera da Cidade, 1932) e Herbert Hoover, haviam reabilitado as grandes massas punitivas que foram as lynch mobs enviando Walter Huston crucificar os malfeitores no ecrã.
O próprio Callahan não está imune a estas hipertrofias totalmente pornográficas. O “make my day” de Sudden Impact (Impacto Súbito, 1983) é a oportunidade de exibir a .44 Magnum como extensão de si mesmo: “Não te vamos deixar partir assim”, anuncia ele aos ladrões. “Quem é esse ‘nós’, cabrão?” – “Smith, Wesson… e eu.” A ironia do primeiro filme também desapareceu: não mais Scorpio compara o seu revólver a um pénis; trata-se antes de restaurar a soberba e séria artilharia eastwoodiana. O actor, que realiza esse quarto tomo, filma-se ele próprio face a um grupo de violadores (a violação tornou-se a obsessão do vigilante movie de uma nova maneira) revelando a sua silhueta parada na sombra, à entrada de um parque de diversões onde ele surge com a mesma aparência de um anjo da morte. Este expressionismo barato é ainda mais surpreendente da parte de Eastwood em Pale Rider (Justiceiro Solitário, 1985), que filma de seguida. Unforgiven (Imperdoável, 1992) vai empregar com ainda mais finura essa figura do anjo da morte, designando-a como artifício lendário e assim relembrando, à maneira de John Ford, que a justiça americana não é mais do que uma teatralização, um happening interpretado na praça pública da cidade. William Munny, o desperado de Unforgiven, trará a paz à comunidade de Big Whiskey onde se mutilam prostitutas. Ele fará isso vindo a semear a lenda, o storytelling da sua crueldade. “Better not cut up nor otherwise harm no whores, or I’ll come back and kill every one of you sons of bitches”, ameaça ele sob as “Stars and Stripes” agitadas pela tempestade – entre o golpe de bluff e um golpe dos céus, o aviso é, antes de mais, uma mise en scène. Mas em Sudden Impact, o hieratismo do anjo exterminador exprime-se em primeiro grau. É necessário interpretar este hieratismo, e o de Bronson nas suas declinações de Death Wish, como uma maneira de conformar às que Susan Jeffords, na sua obra Hard Bodies (Rutgers University Press, 1994) nomeia de “corpo duro” reaganiano. Como o John Rambo de George Pan Cosmatos ou o Conan de John Milius, os vigilantes dos anos 70 são como “corpos duros” cuja robustez exprime aquela que a América se esforça por redescobrir nos anos 80; corpos carregando os valores dos nossos dias: patriotismo sereno, virilidade saudável, confiança na sustentabilidade do poder nacional e da família nuclear. Novamente, não é a menor das traições: nos filmes originais de Siegel e de Winner, os vingadores se muralhavam num quase mutismo e num jogo marmóreo para marcar uma ruptura com a ordem social, dar um corpo à sua insularidade existencial. Dez anos mais tarde, eles contentam-se em se colar aos standards em voga entre os hard bodies e aceitam ser estatuados. Por outras palavras, o laconismo de Eastwood e de Bronson, no início dos anos 60, anuncia a paralisia psíquica de Travis Bickle; nos anos 80, ele contenta-se em macaquear a paleta emocional de Chuck Norris.
Se as encarnações primeiras de Kersey e de Callahan respondiam às preocupações de Nixon e da maioria silenciosa, eram assim sem fugir a uma natureza patológica e mesmo, ousamos dizer, rebelde. Estes homens foram enredados na abissal solidão que já descrevemos, a do westerner original, equivocado, em retraimento extremo e em egoísmo “virulento” (para parafrasear Ayn Rand) na sua versão doente. Isto fazia deles marginais inaptos batendo-se sob as cores da instituição: este foi o sentido principal do epílogo do distintivo do inspector Harry. Por outro lado, os seus homólogos anos 80 obedeciam directamente às injunções da New Right activa na Casa Branca. O inimigo é o violador, mas é também o traficante: Susan Jeffords sublinha que a estratégia anti-cartéis destes anos banalizou a figura do narcotraficante no cinema de acção, isto é, não mais o dealer hippie dos tempos de Joe, mas o mafioso actuando através de redes supranacionais que sufocavam a bela América [os polícias de Lethal Weapon (Arma Mortífera, 1987) são, tipicamente, confrontados com o tráfico de heroína]. Kersey, por sua vez, vai devir a muralha contra este flagelo em Death Wish 4, só que de uma maneira bem precisa: trata-se de exterminar os envenenadores da juventude americana e sobretudo de trazer de volta esta última para um caminho de ordem familiar e tradicional. O Bronson das sequelas de Death Wish é a quintessência do pater familias, o guardião de valores familiares. O desafio do quarto episódio consiste em defender o seu modelo: a filha adolescente da sua nova companheira (mais uma) morre de uma overdose seguida da ingestão de um produto desconhecido. Por sugestão de um empresário enlutado após uma tragédia semelhante, Kersey faz-se financiar para erradicar os cartéis, transformando-se numa espécie de representante de todos os pais impotentes. Enquanto descobrimos a sua nova vida como marido e padrasto, o justiceiro detém-se no vestíbulo e olha pela porta de vidro a jovem Erica a afastar-se na viatura do seu namorado. Ele surpreende-a consumindo marijuana, enquanto uma corruptora música hard rock passa no rádio do carro. A janela separa o mundo exterior, viciado em sex, drugs and rock’n’roll e a home sweet home supostamente defendida pelo pai de família, aqui vigiando pela varanda. Bronson adopta o papel de sentinela paternal por causa da sua aparência: já tendo passado dos cinquenta por altura do primeiro Death Wish, ele deixa-se embarcar numa senescência doce, o seu corpo fica um pouco mais grisalho a cada regresso, a cirurgia deixa o seu rosto curiosamente abonecado e deslavado. Mas é justamente esta autoridade envelhecida de pai-da-justiça (até mesmo de avô) que parece desencadear os aplausos das multidões – até que o seu “rosto da morte” (The Face of Death, título original do quinto e último filme) marca um ponto de não-retorno em 1994 para o septuagenário. A questão do vigilantismo cai numa série lodosa de cartoonescos gunfights, em proveito de uma intriga ligada ao crime internacional. O público decreta efectivamente a morte da personagem: The Face of Death é exibido em cinemas vazios, o franchise anula o seu sexto episódio e a falência de Paul Kercey precipita a da 21st Century Film Corporation.
Também ladeado de famílias ou de esposas de substituição, Callahan acerta contas, nos dois últimos episódios de Dirty Harry, com um papel de patriarca ambíguo e com o seu “Where’s the girl?”, que é a eterna questão dos filmes de vigilante. É ele o parceiro, o salvador ou o inimigo das mulheres? Depois de The Enforcer (Harry – O Implacável, 1976), de James Fargo, que o encontra acompanhado, contra a sua vontade, de um novato – maneira, sempre, de regressar ao primeiro tomo e de responder a Pauline Kael, desta vez respondendo rudemente que Harry estava certo ao reservar o campo de batalha: a agente da polícia acabava por morrer com uma bala perdida -, Sudden Impact põe em cena Sondra Locke, a mulher de Eastwood, como interesse amoroso e como vingadora decidida a eliminar, um por um, os homens que a violaram, a si e à sua irmã. Como é evidente, trata-se outra vez de clarificar a moral do inspector e de limpar os excessos linchadores: ele intervém e desmascara a assassina vingativa em relação à qual estava na iminência de se apaixonar, restaurando o poder policial contra a justiça bárbara. Mas, ao proceder assim, ele confisca a vingança de Sondra Locke, actuando como um bom soldado ao serviço do novo legalismo republicano: é melhor ver os vermes abatidos por um polícia masculino do que por uma justiceira histérica. Apesar das qualidades em matéria de mise en scène épica, o episódio acaba por suavizar Harry por fazer dele o arauto de um direito reconciliador. Albert Popwell, intérprete do ladrão que ele poupou no filme de Siegel, torna-se maliciosamente o parceiro do inspector (interpreta um papel diferente em cada episódio precedente) – uma maneira de fazer troça do racismo invocado o tempo todo e de remeter a crítica para os seus próprios julgamentos apressados. O quinto e último episódio, The Dead Pool (Na Lista do Assassino, 1988), de Buddy Van Horn, faz o mesmo malhando no poder mediático, mas com uma retórica ainda menos rugosa. Colocado sob a luz de todos os holofotes, Callahan pega na câmara de um repórter e atira-a ao chão, antes de se aproximar de um jornalista para o inquirir, determinado a celebrar um novo casamento, em suma, a produzir uma nova reconciliação artificial: tudo é perdoado. Todavia, nada é feito, Dirty Harry não é mais um populista rabugento e envelhecido que dá lições aos media ao destruir os seus brinquedos.

Assim transmutado em hard body, em figura modelada pela ideologia reaganiana, o vigilante vai encalhar-se num último paradoxo. Ele que vem das camadas mais primitivas de um individualismo terreno, ele que herda o orgulho do homem convencido que “o governo melhor é aquele que governa menos”, como pode ele se subjugar a um modelo de grandeza definido pelo poder em vigor? Que as personagens de Eastwood e de Bronson estejam inclinadas a fazer prova de patriotismo não tem nada de surpreendente; mas este patriotismo, codificado, “franchisado”, sistematizado, é o altar liberal no qual os justiceiros sacrificam a sua ancestral insubordinação. Este paradoxo exprime-se mais cabalmente ainda nos traços de uma outra estátua erigida pela Hollywood da New Right. Sylvester Stallone, em Cobra (Cobra – O Braço Forte da Lei, 1986), de George P. Cosmatos (outra produção da Cannon), interpreta um avatar robotizado de Harry Callahan que vai unir a independência do seu “eu” e a sua vocação de dócil soldado do establishement. Esta forma de lifting, de revisão completa (como revemos um motor) do “inspector Harry” lembra Andy Robinson (Scorpio), no papel de um inspector processual superior Cobretti, dito “O Cobra”, e Reni Santoni (Chico Gonzalez, o companheiro infeliz de Callahan), no papel de parceiro experiente – sempre nomeado “sargento Gonzalez”. Mas a neurose antiga de Harry, a do pioneiro inconsolável que não tem mais território para civilizar, essa desapareceu: o Cobra não tem nada a instaurar sobre o perímetro de Los Angeles; ele não faz mais do que o vigiar, assegura-se do bom traço do policiamento, certifica-se que o Mal não sai dos limites. “You’re the disease, and I’m the cure”: como o anuncia ao inimigo, ecoando o cartaz do filme (“Cobra: The strong arm of the law”), Stallone é, aqui, um puro braço forte da lei, um antídoto, uma alavanca humana. A sua mecanicidade não tem nada de patológica, como é o caso de certos heróis bronsonianos. O actor oferece-se como uma máquina operacional, impassível, por detrás dos seus Ray-Ban que antecipam a viseira biónica de RoboCop (RoboCop – O Polícia do Futuro, 1987). Surgindo num centro comercial para curto-circuitar um ataque armado, Stallone jura lealdade a Eastwood e afirma a sua autonomia cavalheiresca entre gigantescas fontes de Pepsi e cereais em promoção. Product placement? Sim: o produto é Cobra. Ele, no entanto, tem um cérebro e traçará o rasto de uma mafia oculta – nova encarnação medieval do crime, com machados, rituais e quartéis-generais subterrâneos – apenas pelo seu faro de farejador. Durante o ataque no supermercado, não é mais o polícia que acompanhamos na eliminação dos ladrões, como em Siegel; são os ladrões que seguimos no seu crime e o polícia que se atravessa no seu caminho, literalmente deus ex machina: ele é omnipotente. E se a rede de assassinos que ele persegue opera em submarinos, é porque Los Angeles é agora uma prisão com mil postos de vigia, onde nada escapa ao olhar policial tal como os anos 80 idealizaram, a saber, um olhar à la Cobretti. É menos o de um vigilante do que o de um guarda aprimorado.
Amor devoto à autonomia anti-Estado, culto beato ao controlo: esta aberração encarnada por Cobra evoca o paradoxo do panóptico foucauldiano enunciado em Surveiller et punir: “O Panóptico pode mesmo constituir um aparelho de controlo sobre os seus próprios mecanismos. Na sua torre central, o director pode espiar todos os empregados que tem às suas ordens: enfermeiros, médicos, capatazes, professores, jardineiros; ele pode julgá-los continuamente, modificar a sua conduta, impor-lhes as condutas que julgam ser as melhores; e ele próprio pode ser facilmente observado. […] O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças aos seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e capacidade de penetração no comportamento dos homens.” (Surveiller et punir : naissance de la prison, Gallimard, 1975)

Apanhado pela sua própria armadilha liberal-securitária, o indivíduo justiceiro robotizado pela era Reagan observa-se observando e observa-se observando-se. O dispositivo do panóptico tal como teorizado por Jeremy Bentham – defensor da doutrina utilitarista querendo que “o interesse geral não seja mais do que a soma dos interesses particulares” – definiu o seu funcionamento filosófico de cabeça para baixo. Este obscurantismo marca um ponto de ruptura para o arquétipo, pelo menos na forma assumida dos anos 70, no melhor da sua loucura. Depois dos seus excessos escabrosos, do seu transbordamento de energia, do seu “eu” descarrilado, os vingadores do western e da sua longa decantação nixiana ainda estavam a perseguir um ideal de selvajaria terrífica, fascinante, por vezes mesmo admirável; mas os seus sucessores não são mais do que soldados às ordens. O Cobra pavimenta o caminho a um outro herói do vigilantismo, que chega em 1989. Não por acaso, é um rejeitado dos comics. Tem os traços de um adversário de Stallone, Dolph Lundgren [Ivan Drago em Rocky IV (1985)]: o capataz – Mark Goldblatt faz dele um outro “corpo duro”, um outro punidor, tal como o seu nome artístico o designa – The Punisher (Fúria Silenciosa, 1989). É, todavia, um super-herói ou mais um super-anti-herói, que a indústria empresta do estábulo Marvel. No mesmo ano, a DC Comics arremessa também o seu super-herói principal, Batman, retratado por Tim Burton. É o prelúdio de uma outro pornografia, de um outro combate, de uma guerra justiceira de um género novo. No box-office, Batman ganha por K. -O.: amador de meditação nos esgotos, Punisher cai no esquecimento durante alguns anos. O público ainda não amadureceu suficientemente para sonhar com duas criaturas de comics em simultâneo. Mas o verme já entrou na fruta: voltaremos a ver Punisher e Batman, veremos todos os seus semelhantes.

Só uma mascote destinada ao público adolescente, dotada de super-gadgets ou de poderes mágicos (porque ela é um grande gadget, por isso, uma fórmula de mágico industrial) pode tornar credível uma aberração consistente em vias de acontecer: “o braço armado da lei”, enquanto se afirma um anarquista. “A lei é louca”, dizia Harry Callahan; o seu comportamento tinha a polidez de se ajustar a esta conclusão. Os super-heróis irão respeitar a lei em nome da bandeira, sem derramar sangue, de mãos dadas com o poder e, desse modo, evitarão a classificação “Rated R”. Apontando as suas armas para o vazio, como crianças cheias de imaginação, Paul Kersey e Travis Bickle tinham anunciado isso: no cinema, na América, no mundo, o indivíduo fez crescer tanto o “eu” que inchou, inchou como a carcaça de um super-homem, convencido de poder voar pelos céus. Ao desaparecer dos ecrãs, a sua violência vingativa recupera os seus direitos em qualquer outro lugar. Agora é a hora das crianças grandes e do apocalipse.
© Yal Sadat
Tradução: Luís Mendonça
Penúltimo capítulo do livro Vigilante : La justice sauvage à Hollywood, edição por Façonnage.
O À pala de Walsh agradece à editora e ao autor o facto de terem acedido ao nosso pedido de inclusão deste capítulo no nosso dossier It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis.