Lembro-me, quando vi Man of Steel (Homem de Aço, 2013) de Zack Snyder em 3D (no sistema IMAX), de ter ficado sobretudo impressionado com as cenas do “quotidiano” (por exemplo, com o Super-Homem, enquanto Clark Kent, num café portuário) em que a imagem (e não só pormenores) ganhava uma forte densidade de presença: era isso o 3D, não tanto o “virtual” das super-acções e efeitos especiais mas o que poderia ter a ver com a possibilidade de um cinema de câmara (digital) pessoal, quase doméstico, que cumprisse o programa de “real” de André Bazin, Robert Bresson ou Marcel Hanoun.
É essa a via, penso, que Zack Snyder continua a perseguir no início de Justice League (Liga da Justiça, 2021) em que os Super-Heróis, em vez de serem dados nos seus outfits especiais, surgem (Batman, Aquaman) num registo “naturalista”, quase trivial.
O tom inicial do filme é “elegíaco”, de “luto” pela “morte” de Super-Homem (o genérico remete para o final de Batman vs Super Man: Dawn of Justice [Batman v Super-Homem: O Despertar da Justiça, 2016]) mas também, claro, pelo fim da “saga” (aura) dos Super-Heróis (a “Era dos Heróis”, como é dito por Martha Kent), assim como da DC Comics e do cinema de “efeitos” (especiais), ou “atracções”, que lhes é habitualmente associado. O contraste da imagem na versão a preto-e-branco do filme (2022) acentua, aliás, o caráter granuloso, de cinza, não só da imagem como do “real” (mundo): no preto-e-branco tudo fica mais crepuscular e agónico enquanto imagem/narrativa do fim do mundo (“The world is hurted, broken”, ouve-se, já no fim, na gravação que o dr. Stone deixa ao filho, Victor). Na verdade, o preto-e-branco corporiza o “grão de real” das cenas contemporâneas iniciais tanto na Islândia (Iceland) com Batman e Aquaman como nas que põem em cena Lois Lane e Martha Clark (a mãe terrestre do Super-Homem).
Luto pelo real, pela História – e logo pela “modernidade” (veja-se o episódio com os “retro-terroristas”, “reaccionários”, cuja palavra de ordem é “Down with the Modern World/Back to the Dark Ages”) –, o que tem a sua contrapartida no “tenebrismo” (caravagesco e à maneira de Zurbarán) de conotação nietzschiana da atmosfera que aqui domina (algo sempre muito visado pela crítica culta e cinéfila devido à sua suposta inadequação em relação ao registo baixo e popular deste tipo de filmes).

Esse fundo escuro da imagem, com o seu claro-escuro agressivo, reforça o relevo dos corpos – o que é ainda sublinhado pelo frequente efeito de slow motion nas imagens. Os Super-Heróis, assim, saem do negro, da massa indiferenciada das imagens, seja da estrutura arquitectónica da “forma” (plano) – caso da Wonder Woman, com a sua espada, sobre uma estátua da Justiça ou de Batman sobre a gárgula no topo de um edifício –, seja do seu redemoinho matricial/originário (caso de Aquaman).
O que está de acordo, afinal, com as transformações na representação da Cidade e do Corpo (dos Super-Heróis) tanto na banda-desenhada (BD) como no cinema.
A Cidade, desde a BD dos anos 30 (do século passado), é a cidade moderna (de uma arquitectura na vertical de aço e vidro de que o modelo é New York), passando-se progressivamente, na sua figuração, da “horizontalidade” flat do plano urbano, ou da découpage geométrica e uso de cores quase puras (o primeiro Super Man é de 1938), a uma verticalidade cada vez mais agressiva que abre tanto ao “espaço” como ao “imaginário” (fora de campo, desconhecido).
Compreende-se assim – sendo a Ficção Científica (FC), nos termos de Scott Bukatman (Terminal Identity –The Virtual Subject in Post-Modern Science Fiction), não só um género “americano” como “espacial” (Duke University Press, 1993 [80]) – porque voam os Super-Heróis (Super-Homem, Spider-Man ou Batman, entre outros).
Por um lado, afastam-se do chão (da “lei da gravidade” do real), por outro, podem adquirir desse modo um ponto de vista superior (panóptico, crítico) sobre a cidade (Bukatman, agora em Matters of Gravity, compara o Super-Homem com um “arranha céus” [2003: 197]) que acompanha a sua capacidade de viajar nesse espaço intermediário, cruzando-o de uma ponta a outra, com a inventividade de uma nova geometria (modular e não euclidiana).
É neste quadro que as representações do Corpo dos Super-Heróis – para Scott Bukatman, “vehicles of urban representations” que “embody perceptual paradigms”, ao mesmo tempo que constituem “means of support for an ilusionist position” (2003: 222, 86) – reflectem, nas suas transformações metabólicas, as mutações (tecnológicas, imaginárias e simbólicas) do real e das transformações da cidade que evoluem progressivamente num sentido “distópico” que nos faz passar da Metrópolis do Super-Homem para a Gotham de Batman (ao fim e ao cabo variantes, a “clara” e a “escura”, de uma única cidade, New York [205]).
Trata-se contudo, no caso deles, que tendem a ter na sua origem um “trauma” fundador (ou metabólico), de um corpo em crise e traumatizado que, na sua cisão (psicótica, paranóide) e proliferação de personalidades, se apresenta à interpretação como um hieróglifo (Bukatman, 2003: 51 (54)).
Passamos assim, nessas representações, do corpo flat, 2D, sem história (relação com a História) – caso da BD dos anos 30, dos serials e séries-TV (Batman, Super-Homem) dos anos 50/60 e mesmo, no cinema, talvez ainda os Superman de Richard Lester (1980, 1983) – a um corpo plástico (casos do Spider-Man ou Flash), mais conforme à imagem de cinema (analógica e sobretudo digital) e mais de acordo com a ideia do sujeito (personagem) como máscara (todos eles possuem a sua – o próprio corpo é uma – indissociável da sua identidade) sempre dado no desfile de “máscaras” em que a personagem tende a perder ou ver esbater-se a sua identidade (Scott Bukatman aproxima mesmo essa situação do “Homem da multidão” de Poe e Baudelaire [2003: 211]).
Se a “máscara” corresponde a um estado estético (sensacionalismo plástico, sensorial) da sua metamorfose (mutação) de formas (a certa altura Wonder Woman diz a Cyborg “We all should get dressed”) – sendo essas transfigurações dadas num interface entre substância, mutação e simulacro que afirma a imanência destas formas a uma matéria única mutável (assim, à afirmação de Wonder Woman, Cyborg responde “I’m always dressed”) [1] -, por outro lado ela viabiliza também a passagem ao plano do “simbólico” (“symbolic birth” ou “rebirth into the symbolic”, como comenta Bukatman [2003: 55]).
É de acordo com essa lógica de divisão/desdobramento/multiplicação das figuras como simulacros (de que são um bom exemplo os vários clones de si que o Super-Homem tem à sua disposição e guarda num armário) que se pode compreender o aparecimento nos anos 40 (com a entrada dos Estados Unidos na II Grande Guerra) de “colectivos” (teams) de Super-Heróis (assim, a Justice League of America, em 1960, substitui a Justice Society of America que aparecera em 1941), “unidades de combate” de uma espécie de “Popular Front Movement” de Super-Heróis (Bukatman, 2003: 56-57): em si, esses “colectivos”, enquanto “alternative societies” [73], corporizam (dão corpo), e por vezes “reificam” (pelos seus atributos), a schize do personagem (a fragmentada “projection of a contradictory subjectivity” [233]).
Sobre a base (princípio) da plasticidade (figural, formal) dos Super-Heróis dá-se então uma dupla deriva: por um lado, a que vai do “plástico” (flou [Spider-Man, Flash]) ao sólido = 3D (duro), seja num registo monumental (escultórico – bem patente na vertente arqueológica/mítica dos semi-deuses primitivos [Amazonas, Atlantes] – ou arquitectónico – Wonder Woman e Super Man que surgem integrados na estrutura arquitectónica do plano como seus apêndices), seja num registo maquínico (o caso de Cyborg, “armoured body”, “couraça”, que se impõe como escudo defensivo tanto à sua crise pessoal [morte da mãe, ódio ao pai] como ao caos do real [Bukatman, 2003: 56]); por outro lado, a deriva que tem a ver com a internalização desse princípio metamórfico = plástico na figura do mutante (caso por excelência dos X-Men) com os seus minoritários “alternative”/“eruptive bodies” por onde passa tendencialmente um princípio de “feminização”, já de si ligado ao uso da máscara [68, 73].
A tendência geral, contudo, desde os anos 70 e 80 (do século passado), é a da passagem da linha clara (2D) da “figuração” a um progressivo enegrecimento dos ambientes (Gotham topus distópico, meio em crise, subterrâneo ou em ruínas nos filmes de Tim Burton [1989, 1992] e de Christopher Nolan [2005, 2008]) e das figuras (Batman e Joker, a figura em que melhor se reifica, na fixidez do seu riso, a farândola multipolar da máscara).
Uma dinâmica de “escurecimento” que se encontra ligada, pensamos, tanto à resistência do corpo (no duplo) como ao retorno do real (da massa, grão da imagem) que o 3D explorará (em particular o uso “neo” ou “hiper”-realista que Snyder dele faz).
É em função dessa lógica de “enegrecimento” que entendemos a massificação e opacificação da imagem nestes filmes (no caso de Zack Snyder desde Man of Steel [Homem de Aço, 2013]).
Esse tipo de imagem é particularmente elaborado nas várias sequências em que intervém o maligno Steppenwolf e o seu séquito infernal de para-demónios: assim, no primeiro assalto dos Super-Heróis ao covil de Steppenwolf (Stryker’s Island) desenvolve-se o lado pesado, metálico (heavy metal mesmo na banda-sonora) tanto dos corpos como das placas (plásticas) do décor de fundo: assim, temos corpos pesados que voam (levitam) e se fundem (em ignição). Lado negro, compacto (de metal hurlant, fundido) do filme, construído no choque de volumes com explosão e cintilação de luzes/cores (vermelhos) que, por um lado, constitui o fundo (subterrâneo) do real e, por outro, se estende por ele e o contamina no aspecto arruinado (“lézardé”) das ruas (atmosfera com que contrasta o cenário high tech da bat cave onde oficia o corpo aristocrático, e decadente, de Jeremy Irons [Alfred]). Já na versão a preto-e-branco – em particular na sequência do ataque dos Super-Heróis ao covil de Steppenwolf para entrar na “motherbox” –, o claro-escuro muito contrastado da imagem aproxima-se do registo da gravura (pense-se nas ilustrações de Gustave Doré para o “Inferno” de Dante ou do trabalho de Frank Miller que Snyder reconhece ser uma das suas maiores influências), ou seja, de uma imagem inscrição, mais “lavrada” do que “pictórica” (pense-se agora na “imagem-gravura” de Das Cabinet des Dr. Caligari de Robert Wiene [O Gabinete do Doutor Caligari, 1920]).
Aproximamo-nos, assim, da noção de imagem-duração (tempo) de Deleuze, ainda acentuada pelo uso do slow motion por parte de Snyder. Com efeito, Deleuze, em L’Image-temps (PUF, 1985), refere-se a essas camadas plásticas de matéria-tempo na arquitectura (profunda) dos planos em Orson Welles (Citizen Kane [O Cidadão Kane, 1941], The Magnificent Ambersons [O Quarto Mandamento, 1942]) – o que ele designava pelo “neo-expressionismo” ou “barroco” de uma arte de massas. E escrevia: “Nesta libertação da profundidade que subordinava a si todas as outras dimensões, deve-se ver não apenas a conquista de um contínuo mas também o carácter temporal desse contínuo: trata-se de uma continuidade da duração que faz com que a profundidade desprendida seja tempo e já não espaço” (PUF, 1985 [141-142]) (traduzimos). Também Steppenwolf – o minotauro metálico vindo do universo das trevas – se apresenta como a figura desse princípio de indeterminação, de uma unidade substancial profunda e latente das formas – melhor, da vertigem do “in-forme” ou da “não-forma” nelas – que procura anular a própria hipótese (articulada e discriminada, episódica) da acção. O que está de acordo, aliás, com a passagem também de um registo “aristotélico” (o de uma física mais tradicional) ao de uma “física quântica” com o seu princípio de indeterminação das ordens da cronologia e da causalidade – no campo da FC isso traduz-se, por exemplo, na passagem de um registo sobretudo “descritivo” que toma por objecto, por exemplo, a “estranheza” da nave espacial (2001: A Space Odyssey [2001: Odisseia no Espaço, 1968] de Stanley Kubrick) à obsessão com o “buraco negro” onde tudo se indistingue e anula (e isto de Silent Running [O Cosmonauta Perdido, 1972], de Douglas Trumbull, a High Life [2018], de Claire Denis).
No quadro plástico desta imagem-metálica (duração), a partir do motivo da caixa alienígena de que todos se procuram apoderar, desenvolve-se no filme uma ideia (teoria) de cinema: a “caixa” entendida como dispositivo de metamorfose, changing machine. Como explica Cyborg, a “motherbox” é uma “changing machine” que “rearranjes matter [at the will of their masters]”, possuindo a capacidade de a “regenerar” e de “reinstalar” relações anteriores entre as partículas (afinal um pouco como a “memória”). Assim, se a matéria, no seu todo, não pode ser criada ou destruída, ela pode ser mudada, indo-se, na nova física pluridimensional, da casa a arder às cinzas e destas de novo à casa, como comenta Flash.
Scott Bukatman (Matters of Gravity – Special Effects and Supermen in the 20th Century, Duke University Press, 2003) – para quem o cinema é não só uma “segunda pele” (projecto ainda para-mimético e antropomórfico) mas um segundo céu (horizonte) (daí relacioná-lo com o género do Western, abrindo-o a uma nova “fronteira”, a do “imaginário” e a do “espaço” [127, 244]) – caracteriza o cinema da FC (sobretudo na época do [pós]cyberpunk) como “a presentional mode” num “technological environment” [105], constituído, por um lado, por uma dimensão “maquínica”/ “cyborg” (o seu apparatus tecnológico com “introjecção” pela câmara de um “technological space” [27]) mas que, por outro lado – e isto no caso muito em particular do cinema de efeitos (atracções) que é o da FC de Super-Heróis” (e “multiversos”) contemporânea –, devido ao próprio sublime tecnológico produzido por esses “efeitos especiais” que perturbam e desestabilizam, “descentram” o espectador, fazendo-o perder as coordenadas de percepção e orientação no tempo e no espaço (Kant) (108-109) –, também cria uma situação de “dramatic vision”/ “dynamic contemplation” (94) em que a “duração” do efeito (vd. uso do slow motion nos momentos de bullet time com Wonder Woman) introduz uma dimensão metapoética de ”reflexividade” (vd. The Matrix [1999]) que acentua a co-participação performativa do espectador no processo (“dynamic contemplation […] puts the spectator in motion as perception is now supplemented by bodily experience”, escreve Bukatman [109]).
Não só nessa experiência o “sensacionalismo” das imagens “reescreve” (reconfigura) o sujeito como exponencia a concepção do cinema (ver = imagem) como performance = acontecimento no contexto da experiência (partilha) de um “ecstasy of comunication” (Bukatman, 1993: 172): o sublime tecnológico (ainda que “domesticado” [tamed]), a que atrás nos referimos.
Trata-se, no entanto, de um tipo de cinema em que a centração do processo no “olhar” (visão), segmentando corpo e sentidos, tende a recalcar o “tacto” (pense-se na cena entre Bruce Wayne/Batman [Bens Affleck] e Diana Prince/ Wonder Woman [Gal Gadot] em que a possibilidade de “contacto” das mãos perturba as duas personagens). Daí o carácter difícil e problemático (também traumático) deste tipo de cinema, já que, como observa ainda Bukatman, e pensamos que com razão, não é tanto o “vazio” da imagem que assusta como a sua weird fullness [2003: 113]).
É na sequência de “reanimação” do Super-Homem (que é também a sua imagem = símbolo) que se evidencia a problemática do tipo de imagem que pode corresponder a esta ideia de cinema: uma questão que não é resolvida e que se coloca como um impasse mas que, na própria medida em que o filme (a forma) é trabalhado(a) por essa dificuldade, acaba por indicar (talvez abrir) uma “via” (dinâmica formal) que o desloca de muitos “lugares comuns” e trilhos batidos deste tipo de cinema.
Chegamos assim ao confronto entre dois modelos de “forma”, e imagem cinematográfica, configurados nos personagens de Cyborg e Flash.

Cyborg (Victor Stone [Ray Fischer]) é caracterizado no filme como sendo constituído por “organic and biomechatronic body parts”. Ser compósito, arrumando-se e reconstituindo-se como um Lego [2], em que essa componente mecânica “aprofunda” e abre novas perspectivas no seu corpo e entidade.
Logo depois das palavras da Wonder Woman, vemos num plano, por detrás da janela, o rosto difuso, pouco perceptível (a cena é nocturna), de Victor com um olho luminoso (noutra cena passa-se do olho aceso de Victor para uma sequência de fluxos prismáticos de cores). No entanto, para lá da sua dimensão mecânica (a sua “armadura”), Cyborg possui poderes electrónicos (o que faz dele também uma figura do campo da cultura/imaginário cyberpunk) que lhe permitem entrar em todos os dispositivos (“networks”). Apesar da sua estrutura metálica, sólida, Cyborg procede a uma digitalização electrónica da matéria (mundo) (talvez por isso Donna Haeaway subtiliza o corpo duro do cyborg numa “5ª essência”, “quimera” = ”espírito”: “os cyborgs são éter, 5ª essência”, escreve [O Manifesto Ciborgue / O Manifesto das Espécies de Companhia, Orfeu Negro, 2022: 34]).
Ao modelo do Cyborg corresponde uma imagem-dura, óptico-maquínica, própria de um tipo de cinema prótese electrónico de circuitos fechados, mas que procura abrir-se a (conectar com) um real ele próprio programado como “a consensual hallucination” (“the scanning program [Matrix?] we accept as reality”, a saber, “a graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in the world” transposta em “lines of light ranged in the non space of the mind”, como escreve William Gibson em Neuromancer [1984]) (apud Bukatman 1993: 76, 150-151) – um cinema, afinal, que vem desde o Modernismo dos anos 20 e 30 (André Deed, L’Uomo Meccanico [1921], Fernand Léger, Ballet Mécanique [1924], Fritz Lang, Metropolis [1927]) e se prolonga nos anos 80 e 90 do século XX com filmes como Tron (1982)de Steven Lisberger ou o RoboCop (RoboCop – O Polícia do Futuro, 1987) de Paul Verhoeven.
Ao lado mais “euclidiano” (em certa medida também “futurista” [vd. o corpo assemblage amolgado de Dinamismo de um Jogador de Futebol de Umberto Boccioni [1913]) de Cyborg contrapõe-se Flash (Barry Allen [Ezra Miller]) com um corpo ligeiro (até “espirituoso”) e fluxional a que corresponde agora outro tipo de imagem (e cinema): com efeito, de um a outro passa-se de uma “física de sólidos” (o vidro que Flash tem de “penetrar” na primeira manifestação dos seus poderes, o acidente com o carro) a uma “física de fluidos”, com a liquefacção plasmática da imagem (como sucede com os ”espelhos moles” de Le Sang d’un poète (O Sangue de Um Poeta, 1932) de Jean Cocteau ou em Prince of Darkness [O Príncipe das Trevas, 1987] de John Carpenter).
Os momentos de corrida super-sónica de Flash – e lembremo-nos que é graças à energia produzida nessa corrida que Cyborg consegue quebrar as defesas da “motherbox” – são, no filme, os que talvez melhor conceptualizam e exprimem o carácter “líquido” (quântico) da noção de imagem enquanto suspensão aberta e optativa da “forma”: o seu ralenti (na banda sonora ouve-se uma versão, muito marcada pela canção dos Mortal Coil, de Song to the Sirene de Tim Buckley) cria um intervalo “vazio” (semelhante ao “vazio cheio” da filosofia chinesa) que é o lugar de uma pluralidade de situações/formas: assim, o tempo suspenso da imagem, como já afirmara Jean Epstein, constitui o seu lugar mais prenhe, cheio, enquanto ocasião de uma teoria de casos de figuras (ou seja, de “casos de figuras possíveis de um fluxo electrónico inteiramente controlável e manipulável em cada um dos seus parâmetros”, nos termos de Alain Renaud-Alain) [3]. Um tipo de imagem que encontramos também no universo sub-aquático dos Atlantes (Aquaman [Jason Mamoa]) em que essa “liquefacção” da imagem se dá sob formas mais massivas: o contraste (dinâmico) situa-se aí entre a horizontalidade estática da água e a verticalidade da energia (luz) que a convulsiona em momentos de turbilhão e (con)fusão da(s) forma(s).
A esse tipo de imagem liquefeita (fluida, fluxo) corresponde ainda, por contraste com o “enegrecimento” (dramático) das formas, um sublime branco, de luz (sobretudo patente na versão a preto-e-branco do filme), mais “energético” (i-material) do que o “tecnológico” de Cyborg (e por isso mais perto de Kant do que de Burke).
É do confronto entre estes dois modelos de “forma” (= imagem), que estão lá mas não resolvem no plano estético (formal) o filme, que surge a figura de “compromisso” do que designamos por uma imagem ícone.
Este tipo de imagem – embora surja pela primeira vez na sequência da conversa entre os Super-Heróis sobre os poderes regeneradores da “motherbox” (quando Flash se recusa a aludir à possibilidade da sua aplicação ao Super-Homem, a sua imagem – espectral, translúcida – aparece no plano) – desenvolve-se e ganha corpo icónico a partir do processo de “ressurreição” (reanimação?) do Super-Homem (Clark Kent [Henry Cavill]).

Assim, depois da explosão da “mother box”, surge a figura do Super-Homem no ar, como uma “aparição”, “imagem santa” ou ícone (essa dimensão “crística” da sua figura está bem presente no primeiro filme da trilogia, Man of Steel, em que o Super-Homem tem 33 anos, como Cristo). Esta sequência, aliás, tem eco naquela em que o Super-Homem atravessa a sala da nave de Krypton onde lhe aparece a imagem fantasma do pai, Jor El, e de que sai “confirmado” com o maillot elástico que lhe molda o corpo).
A sua imagem, assim, num primeiro momento, situa-se entre uma imagem mais transparente, da ordem do “simulacro”, e uma tendência para o seu devir “escultórico”, enquanto corpo colossal, da ordem do Mito: é assim que desce, com o tronco (atlético) nu, sobre os escombros do seu memorial. Temos aqui um efeito de “refrigeração” (empedernimento) que pode ter a ver com o efeito de Medusa, nele, da “morte” (o aparecimenro de Super-Homem no memorial encarado como uma visita ao túmulo do seu “duplo”, fantasma, morto-vivo: o próprio Cyborg não só visita a dupla campa dele e da mãe como, depois de entrar na caixa, destrói os avatares enganadores que se apresentam como a sua família). Daí a ambivalência (inicial) da sua figura que é acentuada na versão a preto-e- branco quando a visão raio X do Super-Homem nos dá uma imagem scanarizada dos outros super-heróis agora reduzidos aos seus esqueletos visíveis sob/com os seus corpos.
Outra manifestação dessa tendência para a “reificação” da imagem é a do seu confinamento a um emblema, em boa verdade mais um signo do que um símbolo: a letra S que designa e representa o Super-Homem. Num mundo em luto (“the whole world is mourning, grieving for a symbol”), “everywhere I look I see that S”, afirma Martha Kent (Diane Lane) a Lois Lane (Amy Adams). Um símbolo que é também um hieróglifo pelas significações (valências) que condensa enigmaticamente em si e que volta a surgir, no fim, quando o Super-Homem, agora como Clark Kent, abre a camisa para o dar a ver estampado no seu peito.
Há assim uma quebra (atenuação) do sublime tecnológico – e da sua logica (virtual) de “i-materialização” das imagens – que podemos relacionar com o atrito produzido pela resistência do “real” que, num registo de “luto” (melancólico), dá aos corpos e imagens o estatuto das “ruinas” (enquanto alegorias) no pensamento de Walter Benjamin. Daí uma tendência, na parte final, para o enquadramento do ícone, fazendo-o passar de figura no espaço para um pormenor de uma imagem quadro (dito de outro modo, do plano do símbolo para o do signo) [4]: a janela por onde, numa atmosfera crepuscular/ dourada (o tom melancólico, aurático, desse luto), se vê ao fundo, à direita, a (dupla) figura de Super-Homem e de Lois Lane no ar. Vai-se assim da imagem aparição (símbolo = ícone) à imagem enquadrada (quase uma vinheta) no plano (real). Da electrónica, se quisermos, à pintura (que tem muito a ver com o “enegrecimento” caravagesco, barroco, dos fundos).
Processado o “reconhecimento” que lhe dá “unidade” (antes, na altura do aparecimento do Super-Homem, novo corpo triunfante, sobre o memorial, Wonder Woman afirmara: “he’s confuse, he doesn’t know who he is”), pode então ter lugar, via Lois Lane, o regresso a “casa” (home), isto é, ao real (a quinta dos pais terrenos onde Clark Kent passou a infância).
No nosso entender, o fil rouge do filme, que o percorre do início ao fim e se estende – de uma forma mais enigmática – pelo Epílogo (de novo um “sonho” de Batman), é aquele que une as cenas com Lois Lane e Martha Kent (vemos as duas, em momentos diferentes, junto ao memorial, Lois em casa ou a tomar café, as duas a conversar) e as do regresso à quinta (onde, para lá das duas, está também presente Super-Homem).

Com o “enegrecimento” da imagem deixa de haver dois registos: o “engrandecido” (monumental) dos feitos dos Super-Heróis (o lado “épico” do filme) e o “banal” (prosaico) do seu quotidiano (sobretudo no caso de Super-Homem); por outro lado, o “real” (esse grão sujo, de granulação da imagem) contamina o primeiro, reduzindo-o na sua ênfase.
Que Lois Lane é a peça central deste “puzzle” (e operação estética: formal) confirma-o, aliás, o Epílogo, anunciando uma sequela do filme em torno do que parece ser (é dito em off) a sua “morte”.
É nela que se sela (encripta), se dá à significação (como um “enigma”) o “segredo” do filme (trilogia?, saga?): já antes, num sonho que Batman conta, ecoa a frase enigmática “Lois Lane is the key”, uma premonição que o segundo “sonho” (este figurado) do Epilogo (com a hipótese da sua “morte”) confirma, envolvendo tudo, como antes também tinha sido dito, em something darker.
Daí também que a versão a preto-e-branco de Justice League disponibilizada pelo realizador, não nos pareça de todo ocasional já que nela se dá bem a ver a lógica profunda da redução do que poderia haver de sublime tecnológico, de efeitos (especiais) da versão 3D a cores: temos aqui, dissemo-lo, uma espécie de “redução fenomenológica” que conduz a uma essencialização que aproxima o filme, o universo (estética) dos Super-Heróis, do realismo empobrecido mas aumentado (3D) daquela que é afinal a sua linha mais comum (doméstica) e menor (no sentido que Deleuze dá a esse termo): aquela de que Lois Lane constitui a fórmula (changing machine) temática e formal [5].
Fernando Guerreiro
[1] Já António Ferro, em A Idade do Jazz-Band (1924), alude a uma “humanidade de vestidos e tintas” [45] em que “tudo, pensando bem, é só vestido” [47], e isto no quadro do que ele designava por um “bolchevismo de formas” [75] que caracterizava, para ele, a realidade (verdade) cinematográfica da Idade Moderna em que o “corpo”, acrescentava, pode já ser um “preconceito” (Portugália, 2ª ed., 1924 [77]).
[2] Com efeito, para Donna Haraway (Um Manifesto Ciborgue [1985]), são características do ciborgue (e, em certa medida, do sujeito como ciborgue), 1) ser uma “construção” dada entre “ficção” (imaginário) e “real” (o “novo real tecnológico” a que nos temos referido), 2) configurar-se como um “ser de fronteira” (interface) que dá a pensar e baliza os limites e devir do “humano”, 3) podendo, desse modo, ser abrangido na categoria de “monstro” enquanto combinatória de partes/ peças – o que ela designa curiosamente por quimeras (2022: 25-27), aproximando-se, deste modo, da definição de “monstro” de Charles Grivel (Fantastique fiction) quando o descreve como uma “mistura [combinação] instável”, um “heteróclito”: a “monstruosidade do monstro não se aguenta”, ela é uma “incompatibilidade que só um fraco elo contém” (PUF, 1992 [153-154]) (traduzimos).
[3] Alain Renaud-Alain, num importante artigo (“La nouvelle architecture de l’image”) publicado no n.º 562 dos Cahiers du Cinéma (outubro de 2003), refere-se, no novo quadro tecnológico e conceptual da pós-modernidade, à tripla passagem: 1) de uma “mecânica de sólidos” (em que se pode enquadrar a concepção clássica [aristotélica] de “forma”) a uma de “fluidos” (em que é privilegiado o “processo da formação” das imagens em relação ao seu “produto”) [70b]; 2) de uma concepção de “estrutura” (construção) como Lego (uma arquitectura de découpage e “reunião de blocos”) à da matriz (assente em “relações abertas e fluidas das matérias e das formas”); e por fim, 3) de um modelo de imagem-rasto (trace)(“impressão luminosa”) à imagem-modulação com a “forma” entendida como “a paragem de um fluxo [electrónico] sobre um caso de figura mais ou menos robusto” [71a/b], mais próxima da “imagem-tempo” de Deleuze [72b] (traduzimos).
[4] Referindo-se a esse “triunfo” do Signo sobre o Símbolo – a “reificação” do Ícone que perde (vê reduzida) progressivamente a sua “transcendência” em proveito da sua laicização/ funcionalização -, Gilbert Durand (A Imaginação Simbólica) observa: “o Símbolo (…) dilui-se pouco a pouco na pura semiologia, evapora-se, por assim dizer, metodicamente em signo” [26]; deste modo, no processo, “acentua[-se] a tal ponto o significante [o S, letra capital a que Martha Kent se refere] que este passa de ícone a imagem naturalista”, “perdendo o seu sentido sagrado [<simbólico] e tornando-se realista, simples <objecto artístico>” (mais ou menos kitsch, acrescentamos) [34] – ou mesmo uma “alegoria” (Arcádia, 1979 [41]).
[5] Sendo “processados” por essa redução, os Super-Heróis – mas também os “novos humanos” (Lois, Martha) – aproximam-se do estatuto do que Donna Haraway designa por ciborgues da vida real (2002: 84-85): “monstros promissores” (ainda que “perigosos” porque constituem “experiências íntimas de fronteiras” [92]) mas também hipóteses práticas/possíveis de sobrevivência. Como observa a autora, “trata-se de “abraçar a minuciosa tarefa de reconstruir os limites da vida quotidiana em relação parcial com outr[o]s e em comunicação com todas as nossas partes”. E conclui: “Há um sistema de mitos à espera de se tornar uma linguagem política capaz de fundamentar um modo de olhar a ciência e a tecnologia”, “este sonho não é um sonho de uma língua [origem] comum, mas de uma poderosa e infiel heteroglossia” (92-93) (sublinhamos).