Um pouco por todo o lado, quer fosse essa a intenção ou não, o centro de energia do cinema a ser mostrado este ano na Berlinale prendia-se em dar um lugar de fala ao animal, ferido e maltratado às mãos da supremacia humana. Do hipopótamo do zoo privado de Pablo Escobar Pepe (2024), que substituiu o urso alemão enquanto ícone do festival, aos gatos do Gokogu Shrine no Japão (2024), à família pé-grande Americana em Sasquatch Sunset (2024), passando pela utopia de The Human Hibernation (2024) e a violência humana impossível de reabilitar em Vogter (2024), a relação entre humanos, e humanos e animais, ou se fica pela re-afirmação da lei do mais forte, ou se abre ao humano enquanto bicho que é, ou então discursa sobre uma possível harmonia entre humano e animal através de um imperfeito esforço comunitário. A costela ardente de um festival que não tem nada que não ser político evidenciava-se nas entrelinhas das linhas de história encontradas, nas fendas que salientavam a universalidade do diálogo que, já antes de ser alvo da curadoria do festival de Berlim, flutuava por tantas obras de tantos países diferentes.
Seis anos desde o seu último filme, Mar (2018), Margarida Gil adapta livremente o conhecido conto de Henry James The Turn of the Screw (1898) em Mãos no Fogo (2024), filme seleccionado para a secção Encounters da Berlinale deste ano, e junta-se à conversa. Mas os animais no filme da realizadora portuguesa nem sobrevivem nem lhes é dada qualquer opção de fuga, nem que seja a de contarem a sua história após a morte. Até nisso são dizimados. As coisas são como são, parece dizer. Quantos aos bichos, tudo muda de figura. Esses, Gil deixa que sejam mastigados primeiro. Ou assim se virá a aperceber a estudante Maria do Mar (Carolina Campanela), nome emblemático de uma certa nostalgia (tal como é o da cozinheira, Céu), e bússola num filme aninhado pela barriga paradisíaca e suspendida do Douro, sem noção exacta de tempo para lá da presença de um Renault 4L, do equipamento analógico que Maria traz consigo (a câmara, o tripé, o projector manual), menções de que já não há casas como aquela onde a recebem para filmar um documentário que servirá enquanto tese sobre o real, ou de uma banda a tocar uma versão de “O Anzol”, música dos Rádio Macau de 1988. Porque se trata de uma história originalmente de fantasmas sobre o corromper da inocência e a influência do mal, tão gótica e psicossexual quanto todo o cinema que se fez português aos olhos internacionais, nada poderia ser mais apto. Não existe tempo da mesma forma que não existe espaço. Só há lugar. Tudo é constante, imóvel e, no entanto, impossível de discernir. Cabe ao filme andar à volta do que é real e/ou verdade, daquilo que pode ser tocado a partir do momento em que é ou se torna visível, tenha figuração física ou espiritual, para poder ser eternizado pela câmara.
Não há tanto um acalorar da história de Henry James como um ‘estar presente’ para o estado de espírito temeroso que se irá liquidificar num filme extremamente competente, e por vezes até mesmo delicioso, sobre um lugar num tempo que poderá nem vir marcado no mapa.
Maria do Mar não só quer filmar como precisa. É menos evidente se Margarida Gil necessitava mesmo de adaptar uma das histórias mais contadas e replicadas no cinema, teatro e ópera, mas o seu empenho é tão potente que carrega o filme aos ombros, até mesmo quando este treme o suficiente na sua conclusão que dele lhe perdemos o rasto. Eis estas mulheres que seguram nas suas câmaras de filmar em corredores e divisões cobertas de madeira escura envernizada, criando composições graves e lustrosas que fazem lembrar Vermeer ou Rembrandt, iluminadas pela luz que emana das lareiras acesas por perto, e, quero eu acreditar, alimentadas pelos segredos por decifrar. São imagens tão belas as de Acácio de Almeida que parece quase criminoso nelas fixar o olhar. Mal Maria do Mar diz à cozinheira (Adelaide Teixeira), esta que anda atrás de um peru que não se deixa apanhar, que “nunca conseguiria comer um animal que acabei de conhecer”, saberemos que o fará eventualmente, seja lá como for.
Mãos no Fogo aparece ao espectador enquanto um crescer de idade, um processo de libertação do corpo e da mente até ao reino das coisas tão visíveis que se tornam imperceptíveis. Não é corrupção, pelo menos não de imediato; é abertura ao olhar. Da chegada da jovem Maria do Mar àquele solar rústico nortenho, governado por previsíveis forças do mal conduzidas pela própria casa, o seu soalho rangente e quartos secretos, e todos aqueles que esta aguenta dentro dela, não há tanto um acalorar da história de Henry James como um estar presente para o estado de espírito temeroso, sólido e edificador, que se irá liquidificar num filme extremamente competente, e por vezes até mesmo delicioso, sobre um lugar num tempo que poderá nem vir marcado no mapa, de tão raro e contemporâneo – “uma estação no inferno”, onde nunca iremos parar sem propósito, e onde se olha com o intuito de reconhecer aquilo que é mais interno, mais feral, mais animal dentro de cada um.
Através de palavras ora ditas ora declamadas por corpos inseguros e afectados, que nem sempre obedecem ou chegam a pertencer àqueles aos quais continuam agarrados, Mãos no Fogo é um olho de um animal que vê tudo a acontecer e nada faz para parar a sedução. Ao ritmo que Maria do Mar se vai libertando das suas amarras – deixando aos poucos para trás a repulsa com que olha para os habitantes da casa -, a casa torna-se um monstro aglutinante onde o silêncio é difícil de pesar. Como uma ideia virulenta, Maria não tem como dela sair assim que nela entra. E Margarida Gil filma esse furacão interior com muito requinte. Daí em diante, a partir do comandar das coordenadas, tudo é simples, até previsível, mas nunca directo. Há mais símbolos e sinais. Também há diálogos adoráveis de tão foleiros que são, pertencentes ao reino de um cinema ainda mais quadrado e clássico, especialmente quando um deles surge dentro de um carro, acompanhado por um plano de um espelho retrovisor:
“Para a eternidade.
Isso fica onde?
Fica perto. Eu guio-a.”
Há tantas dimensões no filme de Margarida Gil, tantas abordagens para descascar, que não há como não ficar desiludido pelo poço onde este acaba, cansado de tanta imagem que não tem onde desaguar. Num festival então, é difícil recordar aquilo que não permanece na cabeça do espectador por falta de união entre os pontos da linha de montagem. Ouve-se, a certa altura, que não se pode abrir a pessoa amada e ficar nela, que se fica sempre de fora no que a isso diz respeito. O sentimento em relação ao filme é semelhante. Gil filma a cifra dos bichos, através do olhar de uma forasteira, que tudo quer apanhar com a sua câmara. Há intrusos, mas Maria do Mar não é uma delas. Uma vez naquela casa, todas as almas são testadas e radiografadas, expostas aos cantos humanos mais obscuros, presentes mas raramente reconhecidos até por aqueles que os comandam. Nas suas câmaras de filmar, que é o mesmo que dizer nos seus corpos, as duas mulheres, a criação e a criadora, exercem produção sobre aquilo que perscrutam. O desconhecido vs. o reconhecido. O real só pode ser aquilo que dele o fazem.
Mãos no Fogo é uma tentativa refrescante, ainda que fina e talvez demasiado abstracta também, com origens tendencialmente marcadas por uma qualquer superfície achatada pelos mesmos arquétipos que o conto de Henry James, em tocar nos conceitos da vida e do cinema, na carga eléctrica da fantasmagoria do cinema na vida. Através de situações que examinam como as pessoas se comportam dentro e fora da câmara – os prazeres consumados e negados e como são escondidos e acabam reflectidos -, o filme pergunta o que é que isso diz de nós, espectadores, com nada mais ao nosso alcance a não ser a tarefa de espreitar laboriosamente os bichos.