Tudo começa com um assalto. Um alguém que aparece na vida de uma outra pessoa como se dela sempre tivesse feito parte. Há logo manifestação de muita intimidade para pensarmos nesta pessoa enquanto intruso, mas este assim nos surpreende, tal é a liberdade que sente em não ter que se apresentar, em obliterar re-inícios ou a small talk que vem com eles; sem ter que estar completamente ciente ou em controlo das suas acções. Com ela, pode só aparecer e estar. Mara (Deragh Campbell) é professora de escrita criativa e está prestes a dar uma aula. E de, repente, ali está Matt (Matt Johnson), a anunciar a sua chegada a Toronto. Num misto de confusão e nervosismo, Mara responde-lhe que falarão por e-mail, depois. Agora tem uma aula para dar. Matt, claro está, não se vai embora. Porque Matt nunca dali tinha saído, para começar. Não realmente.

Matt and Mara (2024) marca o regressar da voz de Kazik Radwanski, o pulso do cinema novo canadiano que mede o ritmo da vida tal como ela é. Se todos os projectos em que a ultra-talentosa Deragh Campbell faz são imperdíveis – há quem a chame de Gena Rowlands canadiana –, então tudo o que sai da cabeça de Radwanski, co-fundador da MDFF, é tão intelectualmente carregado que canaliza a verdade do decorrer das coisas reais, através de um mapear exímio de tom e ritmo, especialmente na maneira observacional como define para o ecrã aquele pular desajeitado que fala pelas pessoas que pensam demasiado primeiro naquilo que eventualmente dizem. Ou seja, não é literatura no ecrã. Mas é a sua análise.
É o mesmo microcosmo do realismo cassavetiano, mas com a devida liberdade para sentirmos o vento do mundo passar por nós. Dos resquícios de Matt and Mara é feita uma agridoce colcha de retalhos que sugere o que consideramos ser a natureza da intimidade das nossas relações humanas.
Depois do estudo de personagem de uma educadora de infância em Anne at 13,000 Ft. (2019), também com Campbell e Johnson a conduzir a trama – é recorrente isto acontecer no cinema que nos chega de Toronto: no mundo de Sofia Bohdanowicz, por exemplo, do qual Deragh Campbell faz parte, Audrey Benac, uma ficcionalização das duas artistas escrita por ambas mulheres, passa pelos vários e diferentes filmes da realizadora, como se a sua obra se tratasse de um só grande prédio e cada pequena janela fosse um outro filme-investigação dentro do seu desenvolvimento enquanto pessoa e artista –, Matt and Mara apresenta-se enquanto versão mais sólida do filme anterior de Radwanski, que continua a ser coração-na-garganta que ferve em lume brando, mas desta vez com um propósito mais claro e delineado ao longo das suas várias transições. Também mantém o que mais me atrai a este cinema cru e destemido de baixo-orçamento. Em nenhum momento quer o filme saber do que nós queremos saber dele ou daqueles que dentro dele habitam. É-nos dada a oportunidade de fazer parte da vida destas pessoas, mas o filme existe apenas para que aqueles que o habitem possam compreender como o fazer. É o mesmo microcosmo do realismo cassavetiano, mas com a devida liberdade para sentirmos o vento do mundo passar por nós.
Assim que Matt aterra na vida de Mara, tudo muda dentro de Mara. Uma professora que já não é publicada há algum tempo, é questionada pelo amigo escritor de longa data radicado em Nova Iorque, estas duas pessoas que nas palavras dela “eram conhecidos por serem amigos”, quem é que ela é agora. Nos olhos dele, vê como o tempo do mundo passou por ela, agora casada com um músico e com uma filha ainda bebé, e seja nos seus momentos de reencontro ou restabelecimento de um na vida do outro (ou por ocasião da doença do pai de Matt que está internado ou porque Mara precisa de alguém que conduza para a levar a uma conferência), estas duas pessoas são magneticamente atraídas para a vida um do outro em ramos de sequências que vão de encontro à garantia de que a sua aliança é tão duradoura e intrínseca que se torna umbilical, quer um se encontre geograficamente perto do outro, ou não.

Numa linha de sequências hand-held, estáveis na forma como nunca se afastam muito da cara dos seus actores, e dos planos estáticos de respiração e calibração que as entrecalam, é feita uma exposição da intimidade amorosa do amor ora escolhido ora “oferecido” pelo universo, num misto entre o realismo do afecto a acontecer em tempo real e aquilo que nem o melhor actor consegue esconder das linhas faciais. Pelo meio, há comentários sobre como encontrar uma voz literária, o que junta ou separa o artista da pessoa, e como a nossa identidade é definida ou não pelos tecidos daqueles que nos amam. Entre todas as variantes que possibilitam a realização da relação amorosa e aquelas que a interrompem, Matt and Mara carrega em todas as suas palavras, olhares e acções um segredo que só diz respeito aos próprios e que até estes escondem deles mesmos. Outra vez, a decisão entre o amor escolhido e o amor “oferecido”, este último mais orgânico mas sem estrutura. Porque Matt e Mara não são dois indivíduos e o tempo não passa só por eles. São almas gémeas, sem atribuição física desse estado.
Se no final, o segredo que une os dois protagonistas, marcado pelo tempo passado juntos naquelas semanas, acaba guardado entre as páginas de um livro, o mesmo sentimento aplica-se ao filme. Eis uma gaveta para abrir e fechar dentro de nós quando nos apetecer. Não há maior elogio possível de ser feito no reino da crítica de cinema que este.
Depois de repetir o filme no festival tal era o desejo de mais tempo nele passar, apercebi-me que a base exploratória da improvisação planeada do filme, especialmente tendo em conta a sua leveza em deixar entrar o espectador, esconde ainda mais a poesia da história de amor que pressionava os meus pensamentos. Caso o receptor assim queira, dos resquícios de Matt and Mara é feita uma colcha de retalhos agridoce que sugere o que consideramos que seja a natureza da intimidade nas nossas relações humanas. De onde vem o amor? E que formas de expressão dele é que existem? Temos que ter algo em comum com o nosso parceiro ou temos apenas que apoiá-lo? Por causa disto mesmo, Campbell volta a afirmar-se uma das melhores actrizes da sua geração, livre e sempre tão profundamente despida na sua personagem. E o cinema empático de Radwanski, um dos vislumbrares mais luminosos da Berlinale deste ano, ano marcado por uma escassez de obras borbulhantes e suficientemente contrapontistas, é o correcto dispositivo para estas perguntas serem respondidas.
Ainda assim, a maior arma do filme continua a ser como mede o som do discurso irregular da vida real no decorrer do seu tempo. Leio agora o que escrevi no meu bloco de notas e confirma-se: “sinto que pode ter sido feito só para mim e para o timbre dos meus ouvidos.” O realizador exactifica o balançar entre as palavras proferidas, o que fica retido no silêncio e o que transparece da linguagem corporal dos actores para que o filme não só ecoe na memória de quem o vê como faz também desejar àqueles que o viram que este permaneça segredo, egoisticamente limitado ao número mais pequeno de espectadores possível. Se no final, o segredo que une os dois protagonistas, marcado pelo tempo passado juntos naquelas semanas, acaba guardado entre as páginas de um livro, o mesmo sentimento aplica-se ao filme. Eis uma gaveta para abrir e fechar dentro de nós quando nos apetecer. Não há maior elogio possível de ser feito no reino da crítica de cinema que este.
Matt and Mara teve a sua estreia mundial na última edição do Festival de Cinema de Berlim, na secção Encounters.