Parafraseando uma popular canção pimba do final do século passado, alguns reclamam que o cinema português precisa de mais heróis, de criar mais empatia com o público através de estórias inspiradoras e superadoras. Outro retorquem que no cinema português já há heróis a mais, contabilizando todos os profissionais do nosso meio que, ao longo das décadas, foram sistematicamente fazendo omeletas sem ovos.
Mas o exercício aqui é outro: fazer uma viagem panorâmica pela história do cinema português em busca de heróis, dos mais óbvios aos mais inusitados. A lista que aqui se apresenta é deficitária (como qualquer lista), deixando de fora uma variedade de heróis, como a Vitalina Varela ou Bruno Aleixo, Fernão Mendes Pinto ou Sérgio [o James Bond de Sete Balas para Selma (1967)], Repórter X, João de Deus ou Diamantino, mas alguém tinha de ficar de fora…

Sílvia/Silvestre
Realizado por João César Monteiro e escrito por Maria Velho da Costa, Silvestre (1981) inspira-se em contos medievais (A Donzela Que Vai à Guerra e A Mão do Finado) em que a jovem donzela Sílvia tem de ultrapassar por diversas peripécias, desde intrigas palacianas e místicas, acabando por ter de se “transformar” em Silvestre, um jovem soldado que se bate valerosamente em batalha. Sílvia contraria todos os códigos medievais ao assumir o papel de heroína em tempo de guerra, como Joana D’Arc, outra donzela guerreira.

Inês de Castro
Rainha depois de morta, Inês de Castro é o arquétipo da heroína mártir. Galega de origem, provocou grande escândalo na Corte portuguesa ao envolver-se com o príncipe herdeiro D. Pedro, tendo levado o rei D. Afonso IV a expulsá-la do reino e, mais tarde, a ordenar a sua morte por degolação. Esta história foi imortalizada pela literatura e adaptada ao cinema em várias ocasiões: Rainha depois de morte (1910, Carlos Santos), Inês de Castro (1945, Leitão de Barros), Inês de Portugal (1997, José Carlos Oliveira), Inês de Castro (2002, Grandela) e Pedro e Inês (2018, António Ferreira).

Camões
Celebrado sucessivamente pelos românticos (comemorações de 1880), positivistas (que o consideraram “santo laico”) e republicanos (que definiram o 10 de junho como Dia de Portugal), mas foram os fascistas que consagraram Luís Vaz de Camões como o herói épico nacional, símbolo da gesta imperial. Escrito (com António Lopes Ribeiro) e realizado por Leitão de Barros, com António Vilar a dar corpo ao poeta-herói da Pátria, Camões (1946) é indiscutivelmente o maior filme épico do cinema português.

Gracinda
Imortalizada por Beatriz Costa, Gracinda é a protagonista de Aldeia da Roupa Velha (1939, Chianca de Garcia), a comédia ruralista de inspiração soviética que tentava conciliar as velhas tradições com a necessidade de progresso. Discreta, mas extremamente eficaz, a jovem lavadeira é uma autêntica heroína do quotidiano, sem qualquer superpoder, a não ser a sua subtil argúcia estratégica, que consegue restabelecer a ordem social e, como bónus, a sua própria vida amorosa.

Zé do Telhado
Alcunha de José Teixeira da Silva, Zé do Telhado foi um militar e famoso bandoleiro português do séc. XIX que ficou conhecido como o Robin dos Bosques português, tendo sido condenado ao degredo perpétuo em Angola. A sua história foi levada várias vezes ao teatro e ao cinema: Rino Lupo foi o primeiro (José do Telhado, 1929), ainda no tempo do mudo, e Armando de Miranda, aproveitando o sucesso da opereta Zé do Telhado (1944), emprestou-lhe o corpo de Virgílio Teixeira em José do Telhado (1945) e na sequela A volta do José do Telhado (1949).

Belarmino
Belarmino Fragoso, o herói que o poderia ter sido, mas nunca o foi. Sobretudo através da ambiguidade da montagem (da responsabilidade de Manuel Ruas), o filme realizado por Fernando Lopes vai criando um autêntico anti-herói. Apesar da mentira, cobardia, manipulação, gabarolice, misoginia e inutilidade, consegue criar empatia com o espectador, muito provavelmente porque Belarmino não se representa só a si, mas antes uma certa forma “portuguesa” de estar.

Capitão Falcão
Super-herói fascista português ao serviço do Estado Novo, focado na luta contra os “comuninjas” e na segurança de Salazar, com a ajuda do seu ajudante Puto Perdiz, Capitão Falcão (2015) é um caso raro no cinema português. Através da paródia e da sátira, o filme constrói um herói politicamente incorreto, defensor da moral e dos “bons costumes” salazaristas e perseguidor dos democratas, que nos oferece uma visão distorcida (mas divertida) de um período histórico recente que não tem piada.

Farrusco
Décadas antes do popular Inspector Max (2004-2006), o cinema português também conheceu um herói de quatro patas, o cão Puss, pertencente ao Centro de Instrução da GNR, que interpretou o cão Farrusco em duas longas-metragens de ficção: em 9 Rapazes e 1 Cão (1963, Constantino Esteves), Farrusco é o fiel companheiro que protege um grupo de 9 rapazes enquanto eles se divertem; em Um Cão e Dois Destinos (1965, Alain Bornet), Farrusco é um fiel guarda de uma grande casa agrícola que ajuda a adolescente Maria Rita a reencontrar o seu amigo Pedro, que fugira para não enveredar pela marginalidade.

Bastien
Protagonista da curta Bastien (2016) e da minissérie Vã Alma (2018), e narrador de Arriaga (2019) – todos realizados por Welket Bungué –, Bastien é um jovem de 24 anos que cresceu numa Instituição e vive agora num bairro periférico de Lisboa, sonhando poder viver das artes plásticas. Primeiro herói negro do cinema português, Bastien encaixa no arquétipo do herói trágico, que procura sobreviver e proteger a sua família através de pequenos esquemas marginais, mas que não terá um futuro.

Sérgio, O Fantasma
O anti-herói inesperado de O Fantasma (2000) é Sérgio, um jovem que trabalha na recolha de lixo durante a noite, e não em sentido figurado como tantos heróis de Hollywood. Com reminiscências do cinema mudo (Irma Vep, líder do gangue Les Vampires criada por Louis Feuillade) ou de Tom of Finland, o herói-fantasma é um corpo desejante em busca obsessiva de outros corpos para deles obter prazer. Sérgio sabe que é um ser diferente segundo a regra social (um herói, portanto), tentando por isso reprimir os seus instintos primários e primitivos, sem sucesso.