The reason for fighting / I never did get / But I learned to accept it […]
For you don’t count the dead / When God’s on your side.
– Bob Dylan
Conta-se que a expressão francesa “Pourquoi faire simple quand on peut faire compliqué?” era uma das expressões favoritas de Jacques Rivette. Sem dúvida que Damon Lindelof, showrunner das séries míticas Lost (ABC, 2004-2010) e The Leftovers (HBO, 2014-2017), partilharia a paixão de Rivette caso fosse ou falasse francês, dada a forma como as suas criações televisivas se caracterizam por uma extrema complexidade narrativa e formal. Com a mini-série Watchmen, estreada em 2019 na HBO e composta por nove episódios, Lindelof leva esse apetite pelo complexo à sua expressão máxima, ao procurar acrescentar complexidade a uma matéria já em si muitíssimo complicada.
Como anunciado no título, a série inspira-se no universo ficcional e alternativo do famosíssimo comic book de Alan Moore e Dave Gibbons, adaptado para o cinema por Zack Snyder em 2009. Baseia-se nesse mundo ucrónico de Watchmen em que os Estados Unidos ganharam a Guerra do Vietname graças ao Doctor Manhattan, ser omnipotente nascido de um acidente nuclear e único ser no planeta a dispor de super-poderes, mundo em que Nixon não teve que se demitir, mantendo-se presidente e prolongando a Guerra Fria até aos anos oitenta, e mundo no qual existem grupos de justiceiros mascarados que lutam (oficialmente) contra o crime mas cuja legitimidade é sempre posta em causa por causa da violência dos seus métodos.
Fiel à banda-desenhada que seguia quase à letra, o filme de Snyder estruturava várias camadas temporais que dialogavam constantemente (o presente em que os masked crusaders são considerados fora-da-lei; o passado que fazia descobrir as actividades dos Watchmen, o grupo de justiceiros central ao qual pertenceu o Dr. Manhattan; o passado mais remoto em que se constituiu um primeiro grupo de vigilantes mascarados, os Minutemen, que serviu de inspiração à formação dos Watchmen, etc.) e procurava perturbar voluntariamente a compreensão do espectador, tal como acontece nos melhores filmes noir.
Na relação que estabelece com o comic book, a série escrita por Lindelof toma caminhos radicalmente diferentes dos de Snyder, não para esclarecer seja o que fôr mas, pelo contrário, para baralhar ainda mais o espectador, seja ele principiante ou especialista em “Watchmen-ologia”. A criação televisiva muda de território, ao situar-se maioritariamente em Tulsa, Oklahoma, e não na Nova Iorque tradicional dos livros e filmes de super-heróis que servia de cenário principal à obra de Moore e Gibbons, e a série tem a audácia de se apresentar ao mesmo tempo como sequel e prequel. A acção decorre em 2019, cerca de trinta anos após os eventos que concluem a banda desenhada, num presente fabulado – resultado de uma fabulação a partir da ucronia da matéria-fonte – em que Robert Redford é presidente (democrata, claro!), em que as chuvas de lulas vindas de outra dimensão são frequentes (piada relativa ao desfecho do livro de Moore e Gibbons) e no qual os polícias de Tulsa foram obrigados por decreto de lei a esconder as suas identidades por detrás de máscaras para se protegerem de represálias de um grupo de white supremacists que os ameaça. Vários episódios mergulham em paralelo num passado anterior àquele que é contado no comic book, nomeadamente no passado de uma das suas figuras mais misteriosas, Hooded Justice, que virá a pertencer aos Minutemen e que fora o primeiro a tomar a decisão de se mascarar, no seu caso vestindo um fato de carrasco, para combater os criminosos.
A revelação quanto à verdadeira identidade de Hooded Justice, pura invenção de Lindelof e dos seus guionistas que vem conectar a personagem à figura principal da série, Angela Abar, uma tenente da polícia afro-americana que quando exerce a sua profissão encarna uma persona mascarada a quem chamam Sister Night, assim como a impressionante sequência de abertura do primeiro episódio fazem perceber que o objetivo principal da criação televisiva consiste em interrogar a questão super-heróica na sua ligação, ou na ausência de ligação que sempre teve tendência a manifestar, com a questão afro-americana. Procura fazê-lo de forma complexa escapando aos simplismos redutores de um filme Marvel como Black Panther (2018), que transformava a Wakanda fictícia em centro do mundo super-heróico e apostava assim unicamente numa lógica paternalista de inversão dos papéis.
A abertura da obra de Lindelof tem ares de apocalipse e reconstitui um dos momentos mais sombrios da História do Oklahoma, o Massacre de Tulsa decorrido entre 31 de maio e 1 de junho de 1921, durante o qual uma multidão de brancos, muitos deles vestidos à Klu Klux Klan na reconstituição da série, matou centenas de afro-americanos, homens, mulheres e crianças que compunham na altura uma burguesia próspera. Se o Dr. Manhattan lembra num dos episódios que se chamava “Jon” antes do seu acidente, especificando que o seu nome se escrevia sem “h”, ou seja sem a letra que permite escrever a palavra “História”, a mini-série faz questão de inscrever ou de reinscrever a História afro-americana dentro do universo criado por Alan Moore e Dave Gibbons e através dele dentro desse vasto mundo cultural, literário e cinematográfico que compõe as bandas desenhadas e os filmes de super-heróis, onde o culto do individualismo serve muitas vezes a fazer esquecer a História coletiva das minorias.
Não se trata tanto por parte de Lindelof, que sempre confessou a sua paixão pelo comic book Watchmen, de acusar Moore e Gibbons de não tomarem em conta a comunidade afro-americana que de prolongar e amplificar o gesto político da banda desenhada, em que as figuras super-heróicas eram profundamente desmistificadas. Tratados como produtos de um imaginário fascizante tipicamente estadounidense, a maioria dos masked crusaders e o Dr. Manhattan aparecem no livro como os melhores aliados da tirania : o Dr. Manhattan trabalha para Nixon; o sinistro Comedian especializa-se em operações secretas que o levam a cometer inúmeros assassinatos políticos; Ozymandias, filantropo autoproclamado, fomenta planos genocidas; Rorschach passa os seus dias a torturar e executar criminosos em nome de uma ideia muito pessoal da Justiça.
A aposta arrojada por parte de Lindelof e dos seus guionistas consiste em utilizar o humor, a ironia e o escárnio para levarem a cabo o seu projecto de desmistificação dos justiceiros mascarados.
Actualizando o universo fictício de Moore e Gibbons através de um presente aparentemente mais pacífico e pacificado do que aquele da banda desenhada, em que Nixon foi substituído no cargo de presidente por Robert Redford e em que o governo democrata tenta controlar a circulação de armas de fogo, a mini-série leva o vento anarquista que soprava nas páginas do comic book à sua intensidade máxima, pois ataca diretamente e ferozmente a hipocrisia de um sistema americano que, à semelhança do chefe da polícia de Tulsa, consegue perfeitamente esconder terríveis compromissos por trás de sorrisos progressistas.
Uma das dinâmicas mais interessantes da banda desenhada consistia neste aspecto em alterar a perspectiva tradicional das histórias super-heróicas para dar a entender que os inimigos principais não vêm do exterior, como em diversos Marvel em que a ameaça chega de outra galáxia e como o tenta fazer acreditar o hoax que conclui o livro, mas pelo contrário de dentro do sistema e do país, o que provocava o desespero das únicas figuras a tentarem lutar contra a Injustiça.
Na série, as duas personagens afro-americanas que combatem a anos de distância o crime, dissimulando a sua identidade graças a um fato e uma persona de masked crime-fighter, descobrem uma vasta conspiração interna aos EUA e à sua História, elaborada por uma sociedade secreta de white supremacists que mudou de nome ao longo do tempo e planeia manipular os Negros para obrigá-los a matarem-se entre eles. O desespero é ainda maior do que aquele das figuras da banda desenhada porque à consciência de não poderem mudar grande coisa ao sistema em si acrescenta-se para as figuras da série uma sensação trágica e pungente de terem traído os seus. O trajecto das duas personagens leva-os a se dar conta que ao aceitarem trabalhar para a polícia norte-americana, mas sobretudo ao acreditarem que estavam a combater pela Justiça quando vestiam o seu fato, empenhavam-se na realidade a servir os interesses dos Brancos e a aumentar a opressão racial. E não haverá, claro, tomada de consciência mais dolorosa para personagens afro-americanas que descobrirem que o papel que interpretaram durante anos era no fundo o papel do Tom do romance Uncle Tom’s cabin, de Harriet Beecher Stowe, ou seja o papel daquele que se converteu no símbolo do escravo negro que defende os seus opressores.
“Now you know everything… My origin story.” diz a Angela ao avô dela, Will, sublinhando a obsessão da série (e da ficção super-heróica) pela questão da origem. Nos livros e filmes de super-heróis, trata-se sempre de forma ou de outra de procurar a origem de uma vocação de vigilante, identificando na maioria dos casos a explicação num trauma pessoal vagamente freudiano como a morte dos pais de Bruce Wayne/Batman.
Na criação televisiva de Lindelof, as duas figuras afro-americanas confessam terem sentido toda a sua vida uma raiva e uma violência extremamente perigosas, muitas vezes incontroláveis, que tentaram canalizar combatendo o crime e que explicam evocando traumas pessoais e colectivos. Lançam-se assim num debate sobre o que veio primeiro, a sua violência pessoal ou a violência da sociedade, como quem pergunta quem veio primeiro, a galinha ou do ovo. Ora o debate tende a uma aporia fundamental porque ao centrar-se na origem leva a fazer esquecer a lógica de cópia e de simulacro que domina o mundo dos super-heróis, em que os vigilantes se copiam uns aos outros (várias das figuras que cruzamos na série são cópias imperfeitas e ridículas de Batman) e não constituem senão simulacros de justiceiros mais interessados em deixar falar as suas pulsões violentas do que em restabelecer uma forma de equilíbrio social.
Uma das sequências do quinto episódio decorre num laboratório especializado na clonagem e tende assim a assemelhar a ficção super-heróica a uma máquina que produz e reproduz clones/cópias, ideia à qual remete essa máscara de Rorschach, que pertencia inicialmente a umas das personagens da banda desenhada, reproduzida em série pelos white supremacists que a vestem quando cometem as suas acções, ou esses inúmeros clones humanóides criados pelo Dr. Manhattan a partir de um mesmo modelo, um casal que conheceu no passado, com os quais procura povoar o Éden que quer instalar num dos satélites de Júpiter. A importância visual dada, durante a sequência do Massacre de Tulsa na abertura, aos medonhos vestidos do Klu Klux Klan de vários dos participantes vem salientar logo à partida o que Angela e o seu avô levarão bastante tempo a perceber. Se é quase impossível identificar com certeza a origem da prática que leva um cidadão a tornar-se um masked vigilante, uma das suas ocorrências históricas mais conhecidas e arquetipais é a sua prática pelos membros do KKK, que escondiam a identidade para cometer terríveis exacções em nome do que apresentavam como uma forma de Justiça transcendente. Apesar de todos os seus esforços, Will e Angela nunca conseguem mudar profundamente as relações de forças políticas, sociais e raciais quando tentam fazê-lo encarnando as suas personae justiceiras, não por falta de vontade ou por incompetência, mas porque há na óptica de Watchmen qualquer coisa de extremamente problemático na figura do vigilante mascarado que a liga irremediavelmente a uma História profundamente branca e a uma aterradora rede de opressores em série. Daí a necessidade quase que vital para as duas personagens de se libertarem dessa forma de actividade porque, como o explica Will, “You can’t heal under a mask. Wounds need air”.
A aposta arrojada por parte de Lindelof e dos seus guionistas consiste em utilizar o humor, a ironia e o escárnio para levarem a cabo o seu projecto de desmistificação dos justiceiros mascarados, dinâmica que se reflecte nos títulos de certos episódios : “It’s Summer and We’re Running Out of Ice” (ep. 1), “She Was Killed by Space Junk” (ep. 3), “If You Don’t Like My Story, Write Your Own” (ep. 4), “A God walks into Abar” (ep. 8). Num espírito eminentemente carnavalesco, que aceita todos os efeitos do grotesco e da caricatura, a máscara tradicional dos vigilantes, assim como os seus acessórios e atributos, servem muitas vezes a apimentar jogos sexuais, numa associação humorística de grande parte do super-heroísmo a uma espécie de perversão sexual tipicamente (e quase que exclusivamente) americana. De certa forma, a associação é literalizada numa cena em que aparece uma figura mascarada misteriosa e anónima, que ficou conhecida sob a alcunha de Lube Man e que cobre o corpo com litros de vaselina para poder escapar pelas bocas dos esgotos.
Laurie procura arrancar as máscaras e as ilusões de heroísmo para mostrar ao mundo estadounidense a realidade que se esconde por detrás dos seus gloriosos mitos de comic books.
Uma das personagens destaca-se neste aspecto pela sua ironia e pela sua vontade permanente de ridicularizar todos os “Batman-wannabes”, a personagem da agente do FBI Laurie Blake, caça-vigilantes acerca da qual descobrimos que fora no passado um dos membros dos Watchmen, ou seja personagem cuja lucidez em relação à dimensão problemática do super-heroísmo na sua vertente mascarada apareceu quando tomou a decisão de cortar as pontes com ela, como o terão que fazer Will e Angela. Máquina a produzir punchlines e piadas assassinas (“You know how you can tell the difference between a masked cop and a vigilante?… Me neither!”), Laurie procura arrancar as máscaras e as ilusões de heroísmo para mostrar ao mundo estadounidense a realidade que se esconde por detrás dos seus gloriosos mitos de comic books. Como para bem clarificar o fundo do seu pensamento e o fundo do pensamento da mini-série em relação aos masked crusaders, a alguém que tenta defender o vigilante mascarado que ela acabou de prender dizendo-lhe que “He’s a hero!”, a agente do FBI responde : “He’s not a hero… He’s a fucking joke!”. E não esqueçamos, pois a escrita de Lindelof tem essa capacidade de produzir fórmulas com duplos sentidos, que vários historiadores afirmam que o Klu Klux Klan começou com uma partida de muito mau gosto, uma terrível sick joke, por parte de um grupo de Brancos racistas que se mascararam de fantasma para assustar um grupo de Afro-americanos.
Se a ironia e o humor não eram as tonalidades dominantes da banda desenhada de Moore e Gibbons – apesar de não ser impossível de considerar o facto de um acidente nuclear levar à criação de um ser omnipotente de nacionalidade americana capaz de dominar o planeta como uma espécie de paródia de sonho nacionalista e imperialista estadounidense –, são as armas privilegiadas da série. Além da figura do justiceiro mascarado, os episódios ridiculizam o mito do self made man americano e uma parte do western cinematográfico, que muito fizeram para celebrar o culto do indivíduo de pele branca do qual nasce o super-herói. São sobretudo diversas sequências que decorrem num planeta longínquo onde está instalado Adrian Veidt, personagem fulcral do comic book e do seu desfecho trágico, que são encarregadas de desenvolver essa crítica feroz e radical. Adrian Veidt, aquele que sempre se pensou como um semi-deus ou um super-homem nietzscheano pela sua inteligência e astúcia com as quais conseguiu construir um autêntico império financeiro, aquele que lutou enquanto Ozymandias ao lado dos Watchmen, é retratado como uma criança egocêntrica e ordinária, à semelhança de certos heróis do imaginário westerniano das piores exacções físicas e morais sobre os habitantes do mundo que o acolhe em nome de um suposto requinte civilizacional, o que o leva por exemplo a matar um dos actores da peça que põe em cena para atingir uma forma superior de realismo. Figura de criador, que além dessa peça de teatro cria falsas incursões de seres alígenas nos céus do planeta Terra para manipular a opinião pública, Veidt ilustra todos os defeitos de certa máquina ficcional estadounidense, seja ela cinematográfica ou literária, sejam os seus heróis cowboys ou superheroes, que desde a criação dos EUA tem alimentado o povo americano em ficções tristes e imperialistas.
Isto não quer dizer, of course, que Lindelof queira acabar com todo o tipo de ficção (westerniana, super-heróica, etc.). Não se deve esquecer que existe no universo de Watchmen outro criador, ainda mais potente que Veidt porque pode criar tudo o que quer, o Dr. Manhattan, que conhece um trajecto singular na série. Enquanto a personagem na banda desenhada se caracterizava por uma profunda inumanidade que o fazia servir Nixon e ser o instrumento de acção de uma nação e de uma História convencidas que tinham graças a ele “God on their side”, o Dr. Manhattan vive na criação televisiva uma comovente história de amor através da qual conhece um poderoso processo de devir deleuziano, encarnando-se no corpo de um homem afro-americano, corpo que o conecta ou reconecta com a história de tantas minorias oprimidas, acabando por se sacrificar e tentar dar os seus poderes à sua companheira, como se se quisesse metamorfosear em mulher.
Para poder tentar transmitir as suas capacidades, é obrigado (mais uma facécia dos guionistas!) a transformar-se em ovo, um ovo que lembra esse “ovo cósmico” teorizado por Deleuze, feito de pura intensidade e capaz de produzir o recomeço da história humana.
Fonte de lendas e mitos, raíz de fábulas que fazem dialogar passado, presente e futuro, abolindo as fronteiras entre temporalidades e realidades tal como o fazem a visão extra-humana do Dr. Manhattan e a arte da montagem rizomática em flashback, flashforward e flashsideways de Damon Lindelof, o ovo cósmico que conclui a série representa a promessa de histórias super-heróicas por vir que escapem às paixões tristes e que consigam transformar a realidade social e económica, ao porem-se ao serviço, como o faz a mini-série, desse “peuple qui manque” de que falava Deleuze citando Paul Klee.
Guillaume Bourgois
Professor de Estudos Fílmicos na Universidade de Grenoble-Alpes.