Para quem filmar? A quem se destinam as imagens que tiramos ao real – e a quem as atiramos? Não poderíamos começar esta indagação sem convocar Bresson: “O tiro de pistola dos olhos do pintor desloca o real. Em seguida, o pintor recompõe-no e organiza-o nesses mesmos olhos, de acordo com o seu gosto, os seus métodos, e o seu ideal de Belo.”
Diria que o “tiro” de que Bresson fala é o gesto inaugural do cinema: um olhar (uma extracção, uma escavação, enfim, um buraco) que se inflige no real. Esse olhar, quando visto/ tirado pela câmara de filmar, faz-se sentir como um corte, um rasgão, infligidos por uma máquina perfuradora. À semelhança das máquinas pesadas, capazes de, por vezes, amputar trabalhadores que as manuseiam e que se deixam alienar pela repetição, também o cinema tem o poder de deixar marcas profundas em corpos reais – daí a relação que já antes procurei estabelecer entre ritmo e poder.
Mas o que distingue o “tiro” subjacente ao olhar do pintor do tiro do cinematógrafo? Sem nunca o mencionar, Bresson sabe bem que o que caracteriza o cinematógrafo – a sua essência enquanto meio, a sua medialidade – não reside no tiro, mas no diferimento entre o tiro e uma retirada (um re-tiro), um avanço e um recuo. Por outras palavras, o “cinematógrafo” não inventa imagens, mas sim intervalos entre as imagens. “A tua criação ou invenção fica-se pelos laços que apertas entre os diversos fragmentos de real capturados”, diz Bresson noutro momento, relembrando que o acto de criação ou invenção, no que ao cinema diz respeito, tal como na música ou na literatura, é da ordem da intangibilidade. O “tiro” do pintor, então, realçaria o estado preparatório de todo o acto artístico: uma disposição musical apriorística, uma “anterioridade rítmica”, para citar Tomás Maia, que é “anterior às palavras, justamente porque é o que põe em movimento as palavras” – e as imagens, acrescentaríamos nós. Mas o “tiro” do cinematógrafo, seguindo o aforismo de Bresson, apenas se concretiza no movimento seguinte, na sua “recomposição”, de acordo com um outro gosto, método ou ideal.
Aquele aforismo, talvez um dos mais belos porque subtis de todas as Notas sobre o Cinematógrafo, é sobre como a arte materializa a impossibilidade de estarmos alguma vez – nem mesmo no cinema – face a um presente puro e imediato (não mediado). Entre cada imagem, entre cada olhar, entre cada ser, há sempre um meio, um intervalo, um diferimento mínimo a que só os “laços” da montagem, essa especificidade cinematográfica, é capaz de dar uma forma coerente.
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Se “o tiro de pistola dos olhos do pintor desloca o real” no momento em que vê (leia-se, em que se filma) algo, convenhamos que esse já não é o mesmo “pintor” que, depois, irá recompor e organizar o real, ainda que seja a mesma pessoa a operar os dois gestos técnicos de criação (filmagem e montagem, poderíamos dizer). Por outras palavras, lembrando o famoso preceito heraclitiano: nenhum homem “tira” a mesma imagem duas vezes.
O cinema é a materialização do intervalo que existe entre as imagens. Por consequência, é a materialização de uma condição: a condição de impossibilidade do mesmo, que é como dizer a impossibilidade de coincidência do sujeito (aquele que vê) consigo próprio.
Para quem filmar? Em primeiro lugar, portanto, sempre para o outro de nós próprios. No momento do “tiro”, filmamos para aquele que terá a possibilidade de ver como não vemos, mas que verá algo para aquém ou além daquilo que a máquina que dispara (que fizemos disparar) viu em certo momento.
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Por volta de 2017, encontrei nas salas de aula de cursos profissionais onde leccionava um improvável complemento da minha necessidade de filmar. Enquanto ia camerando aqui e acolá – encomendas institucionais, videoclipes rejeitados, vídeos promocionais ou filmes que viriam a ser seleccionados e exibidos (outros nem tanto) –, fui encontrando, turma a turma, experiência a experiência, uma efervescente relação entre o acto de mostrar (projectar) e o de pensar (receber, reenquadrar, perspectivar) em conjunto. À velocidade do acto de “tirar” (o acto de filmar) em directo, parecia aliar-se uma outra tipologia de tempo com as imagens: uma relação necessariamente dialogante, sempre “a quente”, baseada no intervalo entre a vontade de mostrar para produzir “choques emocionais” e a necessidade de os pensar. A sala de aula como suspensão radical do “princípio sacrossanto da realidade” é a mais bela definição do que uma sala de aula (de cinema) pode (deve) ser. E se há uma vantagem comum à sala de projecção e à de aula, é a de que ambas podem acontecer em qualquer lado. A única regra é a do perímetro inventado (real ou imaginário) que simula a separação de uma noite artificial que nos suspende de tudo o resto.
Por ordem do acaso, anos mais tarde, depois de começar a dar aulas na Faculdade, calhou que um filme meu estivesse em exibição comercial. Alguns alunos apareceram, sem aviso, para uma “sessão especial”. No final da mesma, a conversa aberta ao público em que também participaram foi em tudo análoga às conversas que tínhamos durante as aulas em torno de filmes seleccionados. Foi nesse momento que me pareceu evidente que filmar e projectar são o mesmo gesto criativo: se aquilo que filmamos é o que desejamos mostrar (ainda que impensadamente), aquilo que mostramos é o que desejamos (ou desejaríamos) filmar.
Filmar (projectar) não para espectadores, mas para passadores – eis o programa estético-político de O Homem da Câmara de Filmar em toda a sua plenitude.
(Há algo de autofágico no processo de falarmos sobre os nossos próprios filmes, mas a tarefa de ensinar tem-me mostrado que é indiferente de que filmes se fala, porque todos os filmes de que escolhemos falar são, de algum modo, o nosso filme. A maneira como falamos de um filme traduz as nossas preocupações mais íntimas. Logo, falar de um filme nosso só torna mais evidente essas preocupações, expondo-nos.)
Filmar e projectar talvez não mantenham somente uma relação consubstancial, mas também ontológica: o acto de mostrar, tal como o de filmar, baseia-se num “tiro” que projecta, que impregna, no corpo de quem o recebe uma cadeia de reacções.
Quando mostramos imagens filmadas por outros, elas serão sempre nossas; quando filmamos imagens, elas serão sempre de um outro (o outro de nós próprios também é um outro) que as irá mostrar. Esta relação veio a tornar-se tão evidente para mim que, hoje, encaro como uma segunda câmara de filmar (uma câmara reflexiva) o projector pessoal que passou a acompanhar-me para as aulas mais recônditas ou em condições mais precárias. Porque quando projecto sei que é sempre um “tiro” em potência que está em causa, uma certa vontade de mostrar aos outros que é possível “desloca[r] o real”. No melhor dos casos, um bom filme (às vezes, basta um plano) atira sobre nós, desviando o curso do nosso movimento. Lucrécio diria: uma curva na natureza das coisas.
Pensar na sala de aula como uma sala de projecção (poder-se-ia dizer uma sala de projécteis) oferece (e tem-me oferecido) a melhor resposta à pergunta “Para quem filmar?”, porque mostrando imagens somos capazes de convocar os outros para um certo tipo de deslocação entre margens. E, na sala de aula como no cinema, projectam-se passagens (entre imagens) que só certos passadores poderão atravessar como se de uma aventura em alto mar se tratasse.
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Se filmar e projectar prefiguram um mesmo gesto de (re)iniciação no mundo, é porque, num e noutro caso, se está a deslocar o real em função da sua putativa “recomposição e reorganização”, da sua re-montagem. É desta consubstancialidade entre filmagem e projecção que nos falam as primeiras imagens do primeiro capítulo de Chelovek s kino-apparatom (O Homem da Câmara de Filmar, 1929), de Dziga Vertov, muito antes de chegarmos às cenas em que as operações técnicas de filmagem, montagem e projecção serão sobrepostas como forma de literalizar a relação “especular e dialéctica” (cito o Francisco Madureira) entre gestos de criação cinematográfica.
No prelúdio desse filme, um pequeno homem sobe ao topo de uma gigante câmara de filmar para tirar algumas imagens que representam a serena passagem do tempo sobre a cidade, após o que desce do alto dessa câmara para ‘mergulhar’ no interior de duas cortinas gigantes fechadas (para penetrar os nossos olhos fechados?), numa sala de espectáculos, onde, segundos depois, entra uma multidão para assistir a um filme desconhecido. À preparação dos elementos da orquestra que acompanhará tal filme, sucede-se um furo (outro tiro?) provocado pela máquina de projecção – uma ferida nas pálpebras adormecidas da sala de espectáculo, poderíamos dizer –, a partir do qual uma corrente de luz emerge, seguida da exaltação musical do maestro. Um novo ritmo nasce e, em consonância com os gestos dispersos e plurais dos vários instrumentos de corda e sopro, vemos correr uma película (da câmara de projecção? da câmara de filmar? – de ambas, diríamos).
Atente-se no pormenor de que o primeiro capítulo de O Homem da Câmara de Filmar se inicia num movimento de câmara, um travelling à frente, que nos aproxima lentamente de uma janela semi-velada. Por um lado, este travelling revela a continuação do movimento musical da orquestra, que invade uma realidade quotidiana inerte e paralisada; por outro, a janela semi-velada lembra o pequeno “olho” furado numa superfície de papel, segundos antes. É precisamente na sequência dessa forma (a janela semi-velada enquanto reflexo do olho da câmara de filmar) que o filme procede com uma alternância entre imagens do mundo exterior, repleto de espaços vazios e sonâmbulos, objectos que se confundem com manequins de seres vivos ou animais empalhados, e as imagens (fragmentos) do corpo de uma mulher que, no interior da casa-janela, da qual a câmara-travelling se havia aproximado, jaz adormecida.
Do meio das máquinas paradas, um primeiro carro é visto em movimento. De seguida, a silhueta de um homem que carrega um tripé e uma câmara de filmar (o mesmo do início do filme) entra nesse carro e atravessa a cidade deserta, em direcção a uma linha férrea, onde se abaixará para filmar a chegada de um comboio. Sem nunca se suspender a alternância entre as partes do corpo da mulher que dorme e as imagens do comboio que se aproxima, a aceleração da montagem nos momentos da aproximação do veículo sugere uma penetração da mulher pelo homem da câmara – e com ela um despertar. O homem abandona o local de filmagem e o buraco na terra onde (se) escondeu (com) a câmara para filmar o plano do comboio, numa espécie de indício de uma inseminação artificial (e vital, como veremos) do corpo da mulher.
Após essa sequência de impregnação indirecta e diferida, uma série de gestos (da mulher e da rotina do mundo exterior) impulsiona um novo mundo em movimento. Sem me deter no significado desses gestos, chego de imediato onde pretendia: a certa altura, a mulher, após secar com uma toalha a cara lavada, abre e fecha os olhos. A esta acção justapõe-se o abrir e fechar das persianas da casa (dela? nossa?); em paralelo, a lente de uma câmara de filmar abre e fecha, enquanto no contra-campo a imagem de um conjunto de flores é desfocada e focada. Ora, este breve segmento metaforiza um novo olhar capaz de ver a realidade de forma parcelar, fragmentada, sem que esse facto moderno o paralise, justamente de forma inversa aos olhos esbugalhados dos manequins que, alguns planos antes, encabeçavam corpos inertes, prostrados e sobre-expostos à luz artificial das lojas para consumo burguês.
De certo modo, Vertov diz-nos que a singela capacidade de abrir e fechar os olhos, ainda que humana, indicia a potência do olhar cinematográfico que a câmara de filmar (e a montagem enquanto operação técnica) será capaz de concretizar: a possibilidade de perceber o real de forma intervalar e descontínua. Invadindo o sono profundo que mantinha a realidade adormecida (em regime diurno, note-se), o cinema parece, então, instituir a fase do sono em que se dá o intenso movimento ocular – a fase R.E.M (rapid eye movement). Nesta fase do sono, como é sabido, a atividade cerebral é tão intensa que é comparável àquela em que se está acordado. É durante essa fase que o nosso cérebro está ativado e que começamos a sonhar – a sonhar com um novo mundo, diz-nos Vertov através desta sequência inicial.
Recapitulando, no início do filme, nada se mexe num mundo urbano despovoado e inerte. Começar a ver a partir de uma sala de cinema é sinónimo de abrir um (novo) olho no meio da escuridão, por via de uma espécie de ferida infligida pela câmara de projectar. Minutos depois, após a entrada num espaço íntimo, em alternância com imagens do espaço público, a vinda de um comboio (gesto inaugural do cinema – dar a ver uma máquina veloz em direcção à realidade) insemina (engravida) o corpo de uma mulher adormecida, sendo este o primeiro de novos movimentos sociais esfuziantes. Depois da sequência inicial, veremos não só o que esse corpo vê, mas como vê. Como no famoso primeiro travelling de Alexandre Promio, já não é só o mundo que se move diante da câmara, mas a câmara que vê em movimento. Mais do que ampliar as possibilidades técnicas da “fotografia em movimento”, Promio inventou a mobilização do olhar, ou, por outras palavras, a montagem propriamente dita, ainda que interna ao plano. O travelling (um deslocamento contínuo da câmara no espaço, durante um determinado tempo) é o primeiro gesto de montagem tout court, porque dá a ver (e a pensar) a relação (a passagem) entre duas ou mais margens.
Mais do que representar (visibilizar) a continuidade (a travessia) de um ponto A para um ponto B, o travelling representa uma das especificidades da montagem (e do cinema): a deslocação no/ do real. Ele é a materialização do movimento entre dois pontos (fragmentos) distantes no espaço e no tempo, que é o mesmo que dizer que o travelling é a materialização mais básica do intervalo cinematográfico (o “laço”, chamar-lhe-ia Bresson) que separa-liga os seres e as coisas; é a ilusão de continuidade que dá a ver a descontinuidade constitutiva do olhar cinematográfico.
Travelling, repetimos, mas agora voltando ao filme de Vertov, é o primeiro gesto de materialização do olhar móvel de uma câmara tornada corpo de filmar. Após um plano da abertura total da íris da câmara de filmar, um travelling contra-picado atravessa um conjunto de árvores que desvelam um edifício imóvel; e a esse travelling sucede, não casualmente, uma imagem do movimento ascendente e diagonal da silhueta do homem da câmara de filmar. Daí que, após aquela sequência inicial, não se possa dizer que ‘vemos’ um filme, tanto quanto se deva dizer que atravessamos filmicamente o mundo – justamente aquilo que os primeiros projeccionistas da história do cinema fizeram: os “operadores Lumière” e os seus travelogues, primeiro, mais tarde Porter, re-montador dos filmes que projectava, ou ainda Flaherty e Rouch, projeccionistas do que filmavam.
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Filmando, propomos o mesmo que quando projectamos imagens (e não necessariamente filmes): que se veja o mundo de maneira diferente. Filmar (projectar) não para espectadores, mas para passadores – eis o programa estético-político de O Homem da Câmara de Filmar em toda a sua plenitude.
Em suma, a projecção e a filmagem criam, de forma concertada e (quase) indiscernível, um outro corpo, um corpo-câmara. Só esse corpo pode ver o uno na sua multiplicidade. Só esse corpo (não por acaso um corpo feminino) pode gerar uma nova realidade. Ele é forma da passagem – um passador diviso e múltiplo, na medida em que é uma dobra. Dessa dobra, surge a possibilidade de um intervalo, uma fenda ou passagem de onde outros corpos (humanos e não-humanos) poderão brotar como água que jorra de uma mesma fonte.
Filmar e projectar, diz-nos Vertov, são a mesma coisa, porque permitem imaginar um novo mundo do outro lado do “buraco”. Projectar e filmar como forma de um mesmo gesto criativo, um mesmo tiro sobre o real: a abertura de uma fenda, uma passagem no seio (no ventre) da realidade para uma comunidade imaginária desconhecida. Filmar (projectar) para libertar, mas não de qualquer modo: mostrar, para lembrar que a liberdade implica um movimento criativo (criador, inventor) no mundo. Se a essência do cinema é mostrar, é porque alguém do “outro lado”, no segundo movimento de relação com o “tiro”, pode criar a partir da ferida (do desvio) que se abriu.
Uma passagem para o quê? Eisenstein diria: para aquilo que o mundo pode ser. Vertov diria: para aquilo que o mundo já é, mas que, sem o cinema, não conseguimos ver. Estou com Vertov (e, como deixei claro, com Bresson).
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O barco que serve de passagem para os trafarianos chegarem ao resto do mundo é expressão máxima do que pode ser uma sala de projecção (leia-se, sala de cinema).
Foi preciso mostrar muitos filmes em sala aula para perceber que filmar (projectar) é o primeiro impulso rítmico do acto de criação (de escrita) cinematográfica. Quando se projecta, imagina-se o efeito que a revelação irá ter, correndo o risco de sobre-expor e deixar uma queimadura no olhar de quem vê. Quando se filma, tira-se qualquer coisa do mundo. Essa coisa tirada, se depois ‘atirada’, é como uma semente a partir da qual se gera nova vida. A imagem é como um pedaço extraído do negrume, a partir do qual se produz luminosidade – nocturna, uma flor que só abre de noite.
Os melhores cineastas, diz-nos ainda Vertov, são sobretudo os que sabem fechar os olhos para ver melhor. E os melhores espectadores, montadores em potência, são, por isso mesmo, os que, por vezes, adormecem: eles estão a montar outro filme de olhos fechados, sonhando com os fragmentos daquele que lhes chegou ou vai chegando. Como já tive oportunidade de tentar aprofundar, os melhores espectadores são invisuais que imaginam, que tacteiam as imagens. Como definir cinema senão como um diálogo profícuo entre um cego-vidente e um conjunto de seres e coisas dispostas (dispersas) no ecrã? Quando vamos ao cinema, todos voltamos a ser cegos por definição, como quando viemos ao mundo. As luzes da sala que se apagam antes de a sessão começar lembram a necessidade da cegueira que separa/ intervala as imagens diurnas que nos envolvem. Como diria Mizoguchi, é preciso lavar os olhos entre cada olhar – eis o primeiro gesto na arte de mostrar: apagar a luz.
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Filmamos porque filmar nos permite imaginar que somos projectores de um mundo melhor. Quem filma (projecta) não faz outra coisa senão semear o improvável. Na Trafaria, temos procurado filmar não aquilo que o mundo poderia ser, mas aquilo que parece corresponder ao nosso ideal de belo. Por exemplo, na Trafaria, é impossível não filmar (não ver) algo tão belo e aterrador como o mar. Mas o que vemos quando filmamos o mar? Uma via de entrada ou uma impossibilidade de fuga? Uma passagem ou uma muralha? Ambas, diríamos. Daí a sua natureza paradoxal e liminar.
Eis porque foi essencial, no final da nossa passagem (do nosso travelogue) pela Trafaria, representar (re-apresentar) o Ferry como “território” terminal. O barco que serve de passagem para os trafarianos chegarem ao resto do mundo é expressão máxima do que pode ser uma sala de projecção (leia-se, sala de cinema). Salas como campo de treino, onde gestos mecânicos se ensaiam continuamente, mas também onde as janelas sobre o horizonte existem em função de uma putativa rota de fuga, sentindo-se a liberdade para sair e, se assim se desejar, para voltar.
Uma “porta giratória”, tal como o Tomás Robalo a inventou através da montagem, encontrámo-la no Ferry da Trafaria que só inventámos porque já lá estava. Como dizia Bresson sobre os modelos, “Invento-vos como sois”. Uma “porta giratória” para os alunos saírem e entrarem à sua vontade, tal como encontrei nas melhores salas de aula por onde passei.
Depois da projecção, fugir ou ficar é uma resposta que cada um terá pelas suas próprias e singulares razões. Mas construir essa passagem, ter a possibilidade de através do cinema a dar a ver, é fundamental para a (co)existência humana se concretizar em plenitude.
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Filmar: como quem mostra o mundo em movimento. Mostrar: como quem filma a possibilidade de uma passagem secreta nesse mundo. Filmar (projectar) linhas de fuga para quem deixou de reconhecer o direito à liberdade. Projectar (filmar), não para libertar aqueles para quem filmamos, mas para lhes dar a ver as linhas de fuga que, apesar de invisíveis a olho nu, abundam na realidade.
(à minha Mãe, projeccionista da minha vida, e ao João Leiria, pelos corajosos “tiros” nas salas de aula da Trafaria)