Tie shan gongzhu (Princess Iron Fan, 1941) tem um estatuto assinalável, embora permaneça pouco conhecida na Europa: foi a primeira longa de animação produzida na Ásia. Estreado em Xangai sob ocupação japonesa em plena Segunda Guerra Mundial, foi um sucesso de bilheteira e crítica, e uma influência marcante para o cinema de animação da região, não só na China, como também no Japão, país hoje muito associado à excelência na animação.
O filme adapta um episódio do clássico literário chinês da dinastia Ming Xiyou ji (“Journey to the West”) que relata as aventuras do monge budista Xuanzang (também referido como Tang Sanzang e Tripitaka) na sua jornada para “Ocidente” (a Índia, berço do Budismo), acompanhado dos seus discípulos Sun Wukong (Monkey / Rei Macaco), Zhu Bajie (Pigsy) e Sha Wujing (Sandy). Encontramo-los em Tie shan gongzhu a tentar atravessar umas perigosas montanhas repletas de labaredas, tarefa para a qual necessitam de um leque especial, capaz de apagar chamas, que pertence à princesa que dá título ao filme.
A princesa tem um casamento atribulado com Niu Mowang (o Rei-Demónio Touro). Ela recusa-se a emprestar o leque aos peregrinos e tenta enganá-los com um falso, mas o grupo de viajantes, graças a uma boa dose de inteligência, magia e trabalho de equipa, consegue vencer a princesa e o seu tenebroso marido e seguir viagem. No contexto em que o filme foi produzido e exibido, estes peregrinos marginais emergem como heróis, os seus trabalhos funcionando, simultaneamente, como uma fantasia escapista e como um apelo velado à mobilização da resistência.
Tie shan gongzhu foi pensado como resposta chinesa a Snow White and the Seven Dwarfs (Branca de Neve e os Sete Anões, 1937). O filme de Walt Disney teve um enorme impacto mundial, e a China não foi excepção. Ali inspirou várias campanhas publicitárias e um remake de ação real, Baixue gongzhu (Chinese Snow White, 1940) do importante realizador Wu Yonggang.
É um filme cujo resultado é pautado por algumas contradições também presentes noutras obras feitas durante a guerra na China, que são, simultaneamente, fontes para a história cultural da ocupação e para a história cultural da resistência.
A concepção de Tie shan gongzhu sofreu várias vicissitudes relacionadas com as circunstâncias do conflito entre o Japão e a China. Da autoria da dupla “Irmãos Wan” – Wan Guchan e Wan Laiming – realizadores que já tinham experiências em animação, o filme começou a ser planeado no final dos anos 1930, já com a invasão japonesa da China a decorrer com toda a violência. Os irmãos Wan queriam que o seu filme não fosse uma cópia de Branca de Neve, mas que “contasse uma história chinesa para um público chinês”, ainda que empregando algumas técnicas usadas no filme da Disney como a rotoscopia – filmagens de cenas com actores para captar os seus movimentos, que eram depois recriados em desenho pela equipa de ilustradores.
Após uma tentativa inicial de relocalização para zonas da China não ocupadas, onde trabalharam em filmes de animação pró-resistência, os irmãos Wan decidiram regressar a Xangai onde as concessões estrangeiras, ainda teoricamente “neutrais”, ofereciam alguma liberdade de trabalho com menos interferência das autoridades de ocupação e colaboracionistas.
Produzido pela Xinhua Film Company, Tie shan gongzhu demorou vários anos a ser produzido e contou com uma equipa de centenas de ilustradores e técnicos e com trabalho desenvolvido em estúdios de Xangai e Suzhou. O filme estreou nos grandes cinemas Metropol e Astor, em Xangai, em Novembro de 1941, pouco antes da ocupação japonesa das concessões estrangeiras da cidade no seguimento do ataque a Pearl Harbor e territórios sob domínio colonial europeu na Ásia de Leste e Sudeste. Uma mensagem explícita a exortar à união dos chineses para a vitória contra a invasão japonesa terá sido cortada da versão final, mas permanece um subtil tom de resistência que é extraordinário tendo em conta condições de produção, sob os constrangimentos da invasão.
É um filme cujo resultado é pautado por algumas contradições também presentes noutras obras feitas durante a guerra na China, que são, simultaneamente, fontes para a história cultural da ocupação e para a história cultural da resistência. Trata-se de uma obra original, de qualidade técnica sem precedentes, popular entre audiências e com uma mensagem subversiva (no contexto da ocupação) bastante corajosa e inteligente, que seria entendível pelos públicos que tão bem a receberam.
O filme foi um sucesso e não apenas na China, sendo também exibido noutras partes da Ásia do Leste e do Sudeste. Os anúncios abaixo registam a sua passagem por Hong Kong ocupada e pela vizinha Macau, que se manteve neutral durante todo o conflito. No Japão, o filme foi dobrado em japonês e estreou em várias localidades. É creditado como tendo tido uma influência determinante no desenvolvimento da animação japonesa, sendo admirado por figuras posteriores como Hayao Miyazaki. Em tempos de conflito e ocupação marcados por graus extremos de violência, Tie shan gongzhu ofereceu uma ponte de diálogo pela arte entre cineastas e apreciadores de animação em campos opostos.
Desde o início do filme que Tie shan gongzhu evoca tradições iconográficas chinesas, abrindo com imagens de um mosteiro nas montanhas, onde o espectador “entra” guiado pelas imagens. Há também uma mensagem política, com um intertítulo inicial fazendo referência aos objectivos pedagógicos do filme e rejeitando ideias de superstição, o que o alinha com campanhas nacionalistas que precederam a guerra e que, no contexto do cinema, passaram pela censura de elementos sobrenaturais em alguns filmes. Aqui, o que é explicitamente enfatizado é a necessidade de união e manter a fé num propósito comum para fazer face às dificuldades da vida: num país a braços com uma invasão devastadora – à época estas meias-palavras eram bastante claras.
Sun Wukong (Rei Macaco) emerge como o mais próximo que temos de um super-herói no filme, já que será ele a usar o leque para vencer o fogo que bloqueia a passagem após voar até à paisagem de chamas devastadoras. Segundo Hongmei Sun, Tie shan gongzhu é considerado um marco no processo de transformação da personagem numa figura heróica e progressista que passaria a ser mais comum do que até então na produção cultural chinesa.
Vemos, depois, o grupo de peregrinos seguindo pelas montanhas. As imagens paisagísticas são, aliás, importantes e, a espaços, quase parecem anunciar algumas cenas de filmes bem posteriores como Xia nü [A Touch of Zen, 1971] de King Hu). A composição de elementos como fogo, fumo ou chuva contribuem, em combinação com o trabalho de som, para construir uma atmosfera dinâmica no filme, em que o natural e o sobrenatural funcionam em harmonia. Além de influências de pintura, há também inspiração de elementos de ópera chinesa, incluindo na indumentária da princesa e do marido. É, em suma, um filme que transmite orgulho e confiança na qualidade artística da China num tempo em que a sobrevivência do país como tal era vista por muitos como profundamente ameaçada.
Algumas das cenas mais conseguidas passam pela mudança de forma corporal das personagens centrais, uma característica comum a vários filmes de super-heróis. Por exemplo, vemos Sun Wukong transformar-se numa carocha que, literalmente, entra para o interior da princesa, e Pigsy transforma-se num sapo, ambos para a convencerem a emprestar o leque. Já a princesa, vêmo-la brevemente num espelho transformar-se em raposa. No longo e espectacular confronto final, o seu marido transforma-se em touro – que será vencido pelo esforço colectivo dos heróis juntamente com os homens e mulheres da vila. Sun Wukong em particular, emerge como o mais próximo que temos de um super-herói no filme, já que será ele a usar o leque para vencer o fogo que bloqueia a passagem após voar até à paisagem de chamas devastadoras. Segundo Hongmei Sun, Tie shan gongzhu é considerado um marco no processo de transformação da personagem Sun Wukong (muitas vezes referido como Rei Macaco) numa figura heróica e progressista que passaria a ser mais comum do que até então na produção cultural chinesa.
Produzida no período da Segunda Guerra na China, Tie shan gongzhu é uma obra interessantíssima em termos visuais. As sequências em que vemos Sun Wukong tentar ultrapassar as chamas sobre as montanhas ou o grupo de peregrinos a caminho do desconhecido, e, sobretudo, as cenas extraordinárias em que as silhuetas dos locais unem esforços numa floresta para prenderem o Rei-Demónio Touro podem ser vistas como profundamente ligadas ao conflito, evocando imagens da destruição causada por bombardeamentos aéreos, os milhões de refugiados em fuga e a união dos que resistiam, incluindo em guerrilhas a operar em zonas rurais, contra a opressão da ocupação. Muitas destas cenas baseiam-se nas experiências que os Irmãos Wan terão testemunhado na sua fuga de Xangai nos anos 1930, antes de começarem a trabalhar neste filme. As cenas finais de Tie shan gongzhu mostram-nos o grupo a seguir viagem, com um coro notando que conseguiram ultrapassar as dificuldades, suportando o sofrimento na busca de uma luz alcançável e da felicidade para todas as pessoas. Podemos facilmente ver e ouvir isto como palavras de esperança e perseverança num tempo sombrio.
Embora os irmãos Wan tenham começado a planear subsequentes filmes de animação pró-resistência, a mudança de circunstâncias em Xangai e, depois, a guerra civil chinesa, afectaram esses planos. A sua obra mais icónica permanece Tie shan gongzhu. No entanto, será interessante investigar legados mais dispersos deste filme pioneiro e tentar traçar uma genealogia entre algumas das suas imagens e narrativa e outras adaptações de Xiyou ji, bem como ecos em outros super-heróis chineses mais recentes.