Muitos anos antes dos filmes de super-heróis serem semanalmente comparados a “videojogos” na secção cultural do Diário de Notícias, havia uma genuína e audaciosa vontade de experimentar o que se podia fazer com o então incipiente género. O Hulk (2003) de Ang Lee? Um Dr. Jekyll e Mr. Hyde refeito sob a forma de psicodrama edipiano. O The Punisher (Punisher – O Vingador, 2004) de Jonathan Hensleigh? Um violento filme de vingança de série B que, não raras vezes, ia procurar a sua inspiração estilística aos westerns spaghetti de Sergio Leone. Fossem bons ou maus, melhores ou piores, os resultados finais da época continham uma qualidade inegável: não sabiam a formato. Depois, a Disney comprou a Marvel e deixámos de ter filmes para obter a série mais cara e com os episódios mais longos do mundo: o Marvel Cinematic Universe. Tudo isto para dizer que, também graças a essa formatação e ausência de estilo próprio que se veio a esperar do género, certos filmes de então amadureceram para hoje se revelarem artefactos fílmicos singulares. Spider-Man (Homem-Aranha, 2002) é um deles.
Antes de prosseguir, um aparte pessoal. Era Serge Daney quem dizia: “Os filmes não se limitam a envelhecer. Eles também nos vêem envelhecer.” E a trilogia de Sam Raimi acompanha-me desde os tempos em que me lembro de sentar na grande sala escura. Vi-a no cinema, na televisão e no computador. E ela viu-me na infância, na adolescência e na idade adulta. Lembro-me bem do fenómeno infanto-juvenil, junto da minha geração, aquando da estreia do primeiro tomo: os debates sobre as teias orgânicas do filme vs. as sintéticas dos comics, as reencenações das pancadarias nos intervalos da primária, e aquele beijo invertido à chuva que tornou Kirsten Dunst em sedutores preparos humedecidos na nossa primeira erótica fantasia (antes de sabermos sequer o conceito de erotismo). Todos os rapazes da minha idade queriam ser o Homem-Aranha nos recreios da escola. Até que crescemos e compreendemos que já era bastante heróico tentar ser Peter Parker.
Como as bandas-desenhadas, o filme de Raimi fala, não sobre um semi-deus de origens extraordinárias em combates mastodônticos, mas sim sobre um ser humano inteiro de raízes modestas que atravessa as suas batalhas internas. Debaixo da musculatura de blockbuster, bate um coração de filme indie.
“Peter Parker”, e não “Homem-Aranha”, deveria ser, justamente, o nome desta obra do realizador de culto. Pois eis um filme onde o herói não surge equipado com o seu fato final até aos 50 minutos, ficando nós, até lá, essencialmente ocupados com o que torna esta figura no mais universalmente identificável dos super-heróis: um homem com os seus dramas familiares, escolares, profissionais, românticos e existenciais. Poderia ser uma canção de Bruce Springsteen, esta história de um rapaz working class de bom coração que ajuda a tia a pagar as contas, tenta confessar os seus sentimentos à rapariga do lado e vive numa permanente dualidade interior, tendo de escolher sistematicamente entre a sua felicidade individual e os sacrifícios inerentes às suas responsabilidades colectivas. Como as bandas-desenhadas, é disso que fala o filme de Raimi: não sobre um semi-deus de origens extraordinárias em combates mastodônticos, mas sim sobre um ser humano inteiro de raízes modestas que atravessa as suas batalhas internas. Debaixo da musculatura de blockbuster, bate um coração de filme indie.
Sempre que se falar do Homem-Aranha, que se tenha presente a seguinte imagem: num canto da cidade, um vilão ameaça explodir uma bomba; noutro canto, a tia de Parker está às portas da morte e precisa de um remédio. Se Parker salvar a cidade, arrisca a vida da tia; se salvar a tia, arrisca o bem-estar da cidade. Seja qual for a escolha, fica a sensação de culpa e fracasso. Mas não é tudo. Eis um monólogo de The Amazing Spider Man #122, quando o Duende Verde perece após um duelo com o aranhiço: “Ele está morto. De algum modo, julguei que pudesse ter mais significado. Quando um homem morre – até mesmo um homem como o Duende – deveria significar algo. Não deveria ser um acidente… um acidente estúpido e sem sentido. Tem de haver um ponto… para que não signifique que vivemos em vão.” Como Pedro Mexia escreveu sobre monólogos semelhantes do Surfista Prateado: “Isto é Kierkegaard. Em livrinhos de aventuras em papel barato que custavam 25 cêntimos.” No caso do filme de Raimi, é em celulóide projectado a 24 fotogramas/segundo que se assistia por 4 euros e meio. Por esse arrependimento incapaz de ser afastado, independentemente do percurso por que enverede, e por esse constante questionamento na procura de um significado existencial cuja resposta aparenta surgir na perdurabilidade das suas acções, Homem-Aranha é o super-herói existencialista por excelência.
Mas falei sobre o filme e a sua maturação. Tendo revisto a trilogia recentemente, tanto o 3.º (ainda uma desapontante conclusão) como o 2.º (ainda uma obra-prima do cinema de acção) pouco se mantiveram alterados. Foi com o 1.º que o tempo se veio a provar mais generoso. Antes, o que nele se destacava eram as cenas de acção. Mas, como Hollywood nos veios a presentear com cada vez maiores e mais digitalizados espectáculos de som e fúria, o que hoje se salienta é, justamente, o oposto: os momentos de calma e humanização. Olhe-se para a cena em que é partilhado o lema que definirá o código ético e filosofia de vida de Peter Parker (a conversa no carro com o tio Ben); olhe-se para aquele único e prolongado plano médio que se preocupa em recolher Peter e a sua tia para falarem do peso do luto que atravessam; olhe-se para a montanha de tímido afecto desenhada em cada plano fechado com o rosto gentil de Maguire nas cenas românticas com Dunst. Os prazeres de Spider-Man são reveladores de uma beleza singela num género verde cujo oximorónico amadurecimento infantilizado levou à extinção por absoluto. Revê-lo, hoje, torna-o mais próximo de um drama high school discretamente filosófico do que do redutor género a que parece superficialmente pertencer. Chamemos-lhe isto: um filme de super-herói humanizado.
E os olhos de Tobey Maguire… Façam os reboots e remakes que quiserem, dispensem as centenas de milhões de dólares que bem entenderem, nunca haverá efeitos especiais mais impactantes do que esses grandes olhos azuis capazes de exprimirem uma alma inteira.