Este filme de Andrew Haigh [Looking (2014-2016), 45 Years (45 Anos, 2015)] é, sobretudo, muito comovente. É uma história de fantasmas (Haigh adapta o romance Strangers do escritor japonês Taichi Yamada) que envolve lidar com traumas de infância, resolver feridas relacionadas com relações paternais e maternais, mas também com o lugar do protagonista do mundo e a forma como fecha (ou abre) o seu coração ao potencial que a vida tem para oferecer.
É também uma proposta sobre o poder da Arte, que aqui escrevo capitalizando a palavra porque pode abranger tantas coisas diferentes. Aqui, especificamente, acho que fala da possibilidade da escrita (de argumento) e do cinema poderem transformar uma experiência, uma dor, um passado. Sublimando-o, trabalhando-o, explorando-o até encontrar algo de catártico nesse processo.
Andrew Haigh acaba por nos mostrar um filme que sublima quase um trabalho psicoanalítico de reconciliação com o passado, onde todos os não-ditos, onde todos os assuntos tabu se apresentam para uma catarse emocional.
Quando o filme começa, encontramos Adam [Andrew Scott, um dos dois internet boyfriends deste filme, que já entrou em Sherlock (2010-2017) ou Fleabag (2016-2019)— quem sabe, sabe que ele é o “Hot Priest”] a viver, quase solitariamente, num arranha-céus londrino, recém-construído, apenas com dois inquilinos — o já mencionado Adam e Harry. Harry é mais novo e é protagnizado por Paul Mescal, outro internet boyfriend que deu que falar em Normal People (2020) e revelou-se transcendental em Aftersun (2022). Harry bate à porta de Adam, com uma garrafa de whiskey japonês, a tentar uma conexão que não dá logo faíscas porque Adam parece não querer sair da sua bolha de solidão, que inclui ver televisão, comer comida chinesa e tentar escrever alguma página que seja de um argumento que tem em mãos.
O que o faz sair da sua bolha é algo inusitado, que começa quando abre um novo texto; para um filme, para uma série ou apenas porque é o que lhe apetece escrever, não sabemos, mas sabemos que é algo que poderá funcionar como algo que está realmente a acontecer ou como sinal de que vamos entrar numa narrativa dentro de uma narrativa, embora essas linhas nunca fiquem totalmente explícitas e isso funciona porque é uma nada velada metáfora sobre como a Arte ajuda a lidar com as nossas emoções.
Então, Adam escreve, no início deste novo argumento, “EXT. CASA SUBURBANA 1987”. E a viagem ao ano de 1987 começa, mas não é (apenas) nas páginas que escreve, mas literalmente (de comboio, depois a pé) até à porta da casa onde viveu com os pais, antes destes morrerem, quando ele tinha 12 anos. E onde estes parecem ainda habitar.
Os pais dele (Jamie Bell e Claire Foy) estão perfeitamente cientes da sua situação espectral e dos anos que passaram em que não se viram, querendo saber todas as histórias do filho agora crescido. Há qualquer coisa de mundano na forma como reagem, como se a separação não fosse pela tão difinitiva Morte, mas por qualquer circunstância corriqueira da vida.
Mas o reencontro traz mais do que a doçura de estarem juntos, e rapidamente surgem tópicos difíceis (o bullying que Adam sofreu na escola, a sua homossexualidade, a ausência de compreensão dos pais, incertos sobre como lidar com o filho, numa década de 1980 que era muito mais repressiva e bem diferente dos dias de hoje), que vão sendo falados, discutidos, resolvidos na medida do possível em encontros subsequentes. Isto porque Adam passa a visitá-los, ao mesmo tempo que, quando volta para a sua vida urbana, vai desenvolvendo uma relação com Harry, que convida para voltar a sua casa. Inicia-se um romance, uma abertura para o mundo, uma exploração de uma sexualidade que quase parece dormente, como se a sua solidão o tivesse deixado tão longe da azáfama da vida como ele está da rua, no interior do seu arranha-céus.
Andrew Haigh acaba por nos mostrar um filme que sublima quase um trabalho psicoanalítico de reconciliação com o passado, onde todos os não-ditos, onde todos os assuntos tabu se apresentam para uma catarse emocional. Andrew e Adam exploram a ideia de ter uma (segunda) oportunidade para falar seriamente de todas as coisas que ficam, ou podem ficar, por dizer e a possibilidade de fazermos as pazes com os fantasmas que nos assombras, metaforicamente ou não. E todo este processo é bonito, é comovente, e é também extremamente triste pela impermanência, pela impossibilidade de ser tudo realmente real. E ao mesmo tempo, é real porque o afecta e transforma.
Um bonito filme, filmado com melancolia e tons quentes, que nos fará telefonar aos nossos pais.
★★★☆☆
All of Us Strangers está disponível na plataforma de streaming Disney+.