The house of fiction has in short not one window, but a million — a number of possible windows not to be reckoned, rather; every one of which has been pierced, or is still pierceable, in its vast front, by the need of the individual vision and by the pressure of the individual will.
Henry James, The House of fiction (1908)
Na filmografia de Jacques Rivette, o encontro inicial (iniciático?) entre duas atrizes/personagens singulares funciona muitas vezes como uma espécie de “gatilho de ficção” que, ao ser disparado, vem abalar os alicerces, supostamente bem assentes num terreno ficcional coeso e coerente, da “casa-filme” que essas personagens habitam, e que nós, espectadores e espectadoras igualmente bem instalados diante do ecrã numa sala de cinema, somos convidados a visitar durante algumas horas – tratando-se de uma realização de Rivette, reservem pelo menos três. Para além de impulsionador do universo de ficção do filme, esse primeiro encontro-choque encerra em si mesmo algo de potencialmente disruptivo ou subversivo, na medida em que vem “tornar possível o impossível”: isto é, o contacto entre entidades/realidades distintas que não se deviam à partida cruzar, e muito menos interpenetrar-se e (con)fundir-se uma na outra.
Céline et Julie vont en bateau (1974) não é exceção. A partir do encontro fortuito e furtivo entre as duas personagens do título – Julie (Dominique Labourier), bibliotecária que leva uma vida regrada e banal, e Céline (Juliet Berto), ilusionista de cabaret um tanto mitomaníaca –, somos com(o) elas embarcados numa aventura sem pés nem cabeça, sem direito nem avesso. Não é por acaso que Rivette evoca Alice no País das Maravilhas como tendo sido uma das suas inspirações para o início do filme: “Queríamos que a aparição de Julie perante Dominique no parque lembrasse um pouco a do Coelho Branco. A ideia era que Dominique a perseguisse e ambas fossem cair, não na toca do coelho, mas na ficção” (Jacques Rivette em entrevista com Jonathan Rosenbaum, 1974).
Apesar de apresentarem traços de personalidade à primeira vista opostos, a relação que logo se estabelece entre Julie/Dominique e Céline/Juliet parte de um “pé de igualdade”, segundo uma dinâmica de emulação que revela a sua complementaridade e, até, permutabilidade: elas serão as primeiras a ousar inverter papéis e a subverter as regras do jogo que lhe são impostas, numa tentativa de moldar a realidade à sua imaginação sem limites. Trata-se, em suma, de duas facetas da mesma Alice, deste e do outro lado do espelho, tão curiosas quanto crédulas, tão destemidas quanto inconsequentes, que saltam a pé juntos para dentro do poço sem fundo da ficção rivettiana – não sem um empurrão do Grande Mestre (substitua-se a cartola por uma boina parisiense, e a chávena de chá por uma câmara de filmar). Era preciso um tal encontro para que Céline e Julie se sentissem finalmente prontas, porque juntas, a “perder pé” da realidade de que até então eram prisioneiras.
Anunciado por um cartão de intertítulo – Le plus souvent, ça commençait comme ça –, o encontro-gatilho entre Céline e Julie despoleta uma perseguição pelas ruas íngremes e sinuosas de Montmartre, pontuada por truques de magia, jogos de faz-de-conta e outras performances burlescas; esta sequência contribui para estabelecer o modus operandi do universo narrativo do filme, assumidamente lúdico, aleatório, quase surrealista. Já a intriga propriamente dita, introduzida pelo segundo intertítulo – Mais, le lendemain matin –, só começa quando as duas jovens já vivem juntas e, numa tentativa de eludir o tédio do novo quotidiano partilhado, decidem direcionar a sua insaciável curiosidade para os habitantes de uma enigmática mansão vitoriana localizada no numéro 7 da rua (fictícia) Nadir-aux-Pommes, onde Céline trabalha ocasionalmente como ama, e onde Julie teria eventualmente morado na sua infância.
Terá a intriga da casa da rua Nadir-aux-Pommes transbordado para o quotidiano de Céline e Julie, ou foi o território da ficção que se expandiu de modo a engolir também o mundo real, fazendo de Céline e Julie meros peões do jogo do qual elas se julgavam mestres?
O que elas descobrem ao investigar o que se passa no interior da dita casa é o “filme-dentro-do-filme” de Céline et Julie vont en bateau, apresentado no genérico inicial com o título Phantom Ladies Over Paris (em inglês no original; trata-se alegadamentede uma adaptação livre de dois romances de Henry James, intitulados The Other House e The Romance of Certain Old Clothes). O ponto de partida da intriga, facilmente decifrável já que assente numa série de clichés, arquétipos e códigos narrativos e formais inspirados pelos géneros do film noir e do melodrama hollywoodianos dos anos 40 e 50, gira em torno de duas femmes fatales (Bulle Ogier e Marie-France Pisier) que planeiam a morte da pequena Madlyn, cujo pai (Barbet Schroeder) havia prometido à falecida esposa não se voltar casar enquanto a filha fosse viva. Contrastando com a espontaneidade e vitalidade de Céline e Julie, os habitantes da casa apresentam uma tez pálida de estátuas de cera, ocupam o espaço como as figuras estáticas de uma série de tableaux vivants e agem como autómatos condenados a repetir as mesmas ações indefinidamente.
O posicionamento de Céline e Julie perante a intriga familiar que se trama na moradia da rua Nadir-aux-Pommes comporta dois momentos distintos: o primeiro corresponde às sucessivas tentativas de aproximação e reconstrução retrospetiva dos acontecimentos desconexos de que são testemunhas; tarefa que se revela particularmente sisífica, na medida em que, de cada vez que uma delas consegue penetrar no interior, a casa parece rejeitá-las, pondo-as literalmente na rua sem qualquer memória ou prova do sucedido… a não ser as drageias que aparecem misteriosamente nas suas bocas. A gulodice, como a curiosidade, não tardarão a ser premiadas: basta saborearem esses rebuçados proustianos para progressivamente recuperarem – ou re-imaginarem – as suas memórias (ao ponto de os dois atos, rememoração e imaginação, se confundirem, pois toda a memória é subjetiva e, portanto, eminentemente criativa). Nesses momentos, Rivette filma Céline e Julie de frente para a câmara, como duas espectadoras que assistem às cenas de um filme que elas próprias estão a imaginar; é então como se também nós, espectadores e espectadoras “reais”, extradiegéticos, do filme de Rivette, nos tornássemos momentaneamente no alvo das reações das duas protagonistas, que riem, estremecem e apontam na direção do ecrã, interpelando-nos com o olhar, como se nos vissem a vê-las.
Porém, ainda neste primeiro momento, as cenas no interior da casa a que Céline e Julie assistem mantém-se herméticas e impermeáveis à sua presença, apresentando-se como as peças de um puzzle impossível de completar: os diferentes fragmentos nem sempre encaixam, as mesmas situações repetem-se com ligeiras variações sem deixar antever desfecho algum, de tal modo que acabará por ser preciso “forçar” a integração de duas peças estrangeiras no puzzle: elas próprias. Assim, o segundo momento de Céline e Julie na “casa da ficção” corresponde à sua passagem do estatuto de meras espectadoras/visitantes ao de atrizes/residentes que unem esforços para salvar Madlyn das garras das potenciais futuras madrastas. Para isso, deverão infiltrar-se na mansão ao mesmo tempo e assumir alternadamente o papel da ama da criança, de forma a romper com o ciclo repetitivo das ações que executam os habitantes da casa; e à medida que as peripécias rocambolescas se sucedem, a atmosfera mórbida e sombria da mansão vai-se deixando contaminar pela energia lúdica e exuberante de Céline e Julie; até que, sem que percebamos ao certo como, elas são catapultadas de volta à “realidade”, vindo despertar no seu apartamento, juntamente com Madlyn, sã e salva.
Il était une fois. Il était deux fois. Il était trois fois. Il était que, cette fois, ça ne se passera pas comme ça. Tudo está bem quando acaba bem, e Céline e Julie podem enfim ir fazer o tal passeio de barco que o título prometia, acompanhadas pela pequena Madlyn que resgataram de uma prisão tão certa como a morte. Mas o filme não termina aí; duas breves cenas no mínimo ambíguas bastam para colocar novamente em marcha a engrenagem implacável da ficção : na primeira, vemos, no lago onde Céline, Julie e Madlyn fazem o seu passeio, um outro barco onde se encontram o pai e as duas amantes; na segunda, é retomado o encontro inicial, mas desta vez é Julie que choca com Céline, que a persegue. Com estas cenas, instala-se definitivamente a dúvida sobre o estatuto ontológico e a relação metanarrativa que se estabelece entre as várias camadas que compõem o universo do filme de Rivette: terá a intriga da casa da rua Nadir-aux-Pommes transbordado para o quotidiano de Céline e Julie, ou foi o território da ficção que se expandiu de modo a engolir também o mundo real, fazendo de Céline e Julie meros peões do jogo do qual elas se julgavam mestres? Ainda assim, há que admitir que elas não parecem muito incomodadas com a eventual permeabilidade entre o real e a ficção, porque para elas tudo é um jogo, e no jogo tudo é possível. Gosto de imaginar que se Céline e Julie fumassem, certamente seriam cigarros da marca Players’, a mesma na origem da decisão de Celia Teasdale (Sabine Azéma) no início de Smoking / No Smoking (Fumar / Não fumar, 1993) de Alain Resnais.
E quem conduz o barco que navega sobre as águas movediças da ficção?, poderia perguntar o próprio Rivette, num eco à derradeira questão que nos dirige David Lynch na terceira temporada de Twin Peaks: “We’re like the dreamer, who dreams and then lives inside the dream. But who is the dreamer?”. Deste sonhador que foi Rivette, lembremos o quanto a sua obra de auteur demiurgo se fez tantas vezes navegando através dos “vasos comunicantes” entre realidade, sonho e memória, progressivamente rumo a uma concepção mais coletiva, rizomática, do ato criativo. Assim, em vários dos seus filmes, não é raro vermos, para além de Rivette e dos seus colaboradores habituais, os nomes das próprias atrizes creditadas enquanto co-autoras (co-sonhadoras?) do argumento do filme que, reciprocamente, as sonha e as mostra a sonhar.