Estávamos em 2017, e eu tinha acabado de chegar ao aeroporto de Londres, onde vivia, e de apanhar o comboio até à cidade durante a hora de ponta. No meio da confusão, recordo-me de ler nas páginas de uma revista qualquer, uma das muitas que tinha comprado para ler no avião, sobre o génio de Luca Guadagnino, cuja raiz o crítico em questão não conseguia localizar, e que o que o atraía, talvez ainda mais, ao mundo de Call Me By Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017). Mais nada conseguia ele pensar a não ser no mundo do filme, como se fosse de facto táctil e não tivesse sido projectado no ecrã, como se fosse uma materialização de um desejo maior que o mundo, tal era o seu magnetismo cinético. Não se ouvia falar de mais nada, e um passageiro inclusive viu a ilustração de Timothée Chalamet na página da revista e disse-me, antes de sair na sua paragem e sem que lhe perguntasse, que era um filme que enfeitiçava. Nessa noite, amigos sussurravam entre eles numa festa que “não, não pode ser assim tão bom, pois não?” Como é que um filme conseguiria alguma vez invocar o sentimento de destruição que é cair apaixonado, e caindo ficar? Escrevia eu sobre o filme durante o festival de cinema de Ghent, “a needle is threaded between the duality of the form of the human flesh and the non-tactile human experience of affect”, o que resume na perfeição o que temos em mãos quando falamos de Guadagnino. Esperamos do realizador do desejo, do sensualismo e do poder, o acto de olhar que escalde a memória.

Assim sendo, e independentemente da história que terá para contar, Guadagnino toca e dá acesso [retiro deste apanhado Suspiria (2018), um desastre de elevadas proporções que mentalmente apago da sua filmografia] a um sentimento que se estica e perdura e alerta os caminhos neurológicos, não muito diferente de notas de perfume espalhadas numa rua minutos depois de alguém por ali ter passado. Dito isto, não há nada do sonho febril ou do contar da fábula como no mundo encantado de Alice Rohrwacher. Tudo em Guadagnino é sobre criar as vibrações de moods que aparecerão no ecrã antes de serem sentidos, e mais importante que isso, antes de serem, eventualmente, ocupados. Do enquadramento austero neo-barroco que se abre à escolha do amor romântico em I Am Love (Eu Sou o Amor, 2009), à contaminação atmosférica de A Bigger Splash (Mergulho Profundo, 2015), à tensão romântica que leveda devagar como a reprodução de uma memória passada em Call Me By Your Name ou o instinto carnal e primitivo que consome e se torna impossível de resistir em Bones and All (Ossos e Tudo, 2022) – faria uma bela double bill com o mais recente neo-noir de Rose Glass, Love Lies Bleeding (Amor em Sangue, 2024) -, o que poderá parecer à primeira vista mais estilo do que substância é a adição de elementos básicos que se irão derreter uns nos outros, naquela que é uma fórmula infecciosa difícil de desconstruir depois de accionar todos os sentidos. Quase como se o ímpeto aqui fosse fazer um cinema anti-análise porque sensorial, e que só é provocador porque faz do seu espectador presa.
O tripé de Challengers persegue o sentimento que não consegue ser replicado em mais nenhum canto da vida. Como todas as personagens concluem a diferentes alturas no filme, tudo o que sabem fazer é bater com uma raquete numa bola. Não se trata de vencer a vida. Trata-se de não saber como o fazer, como viver, de outra forma.
Perante tudo isto, e tendo em conta a natureza competitiva e implacável do ténis-desporto e a voracidade do ténis-espectáculo, Challengers (2024) pousa com muita naturalidade na sua filmografia. Guadagnino regressa, assim, à tese sobre o desejo com um argumento sexy mas desigual e certamente encenado do dramaturgo e escritor americano Justin Kuritzkes [parceiro de vida de Celine Song, realizadora de Past Lives (Vidas Passadas, 2023)] que está ali para contar o que antecedeu o encontro em New Rochelle, Nova Iorque, entre dois profissionais de ténis, Patrick Zweig (Josh O’Connor) e Art Donaldson (Mike Faist), enquanto Tashi Donaldson (Zendaya), o prodígio adolescente do ténis que se viu forçada a reformar antes sequer de se profissionalizar no desporto devido a uma lesão, esposa e treinadora de Donaldson, os olha aos dois da bancada.
Eis um jogo-a-três que andará temporalmente de trás para frente, da frente para trás, durante mais de uma década, adoptando o desenho narrativo do mesmo movimento e trajectória elástica que aquele do desporto, para conseguir contextualizar os destinos de cada personagem a cada dado momento no tempo e assim explicar como tudo colidiu naquele jogo a acontecer no tempo presente. Faz pouco mais do que deixar o espectador atordoado, à espera de uma chave para decifrar aqueles três. Para além disso, a repetição de flashbacks (sem contar com os flashforwards) numa narrativa de ficção não é muito diferente do que recorrer à narração no cinema. Mais vezes que não, são estratégias demasiado on the nose, e deixam o filme em questão mais próximo do amadorismo.


Tal como acontece em tantos outros filmes no mundo do ténis até agora, e são muitos, é uma temática que tem pano para mangas – da comédia romântica Wimbledon (Wimbledon-Encontro Perfeito, 2004), ao muito europeu thriller de Woody Allen, Match Point (2005), ao mais brilhante ensaio idiossincrático de Julien Faraut, John McEnroe: In the Realm of Perfection (John McEnroe: O Domínio da Perfeição, 2018) – Challengers prende-se por coisas similares. A obsessão que se veste de ambição que se veste de vício e contamina a vida fora do campo, numa arena onde tudo o que importa é controlar a trajectória da bola que precisa de voar por cima da rede e cair no campo do jogador adversário mais vezes que não. Dessa repetição é alimentada a potência e a electricidade cinemáticas, e Luca aproveita isso para experimentar com planos onde ora o ponto de vista segue a bola, ora o ponto de vista é a bola, nascendo um sentimento de vivacidade que não se compara a nada mais. Como estar preso no ciclo de dopamina de um estupefaciente: quanto mais se consome mais se precisa de consumir com fim de atingir a mesma euforia da primeira vez.
Quanto ao elemento que o sustém: a antecipação antes do coito interrompido e a falta de sequências de sexo pelo filme fora – fez-me pensar em Closer (Perto Demais, 2004), filme mestre em usar a palavra como produção do acto sexual -, que sugere, e com razão, que não precisa do acto para fazer o convite, o clímax avizinha-se para aliviar a tensão no jogo-vida destas pessoas, naqueles últimos minutos de filme, salvando o que é possível enquanto é possível. É um belo e apto final, que confirma que, por mais obstáculos passem pelo caminho, o filme não perde de vista de que não há sinónimo para a euforia encontrada num campo de ténis durante um electrizante jogo onde tudo pára e se torna expectativa.
Mais do que sexo, mais do que comida, mais do que amizade formativa, mais do que amor ou a ideia de amor, mais do que vida familiar, e até mais do que uma filha, o tripé de Challengers persegue o sentimento que não consegue ser replicado em mais nenhum canto da vida. Como todas as personagens concluem a diferentes alturas no filme, tudo o que sabem fazer é bater com uma raquete numa bola. Não se trata de vencer a vida. Trata-se de não saber como o fazer, como viver, de outra forma.
O conceito do amor pelo jogo está explícito, mas não o sentimos. E a ferocidade associada pode estar lá fisicamente, mas não pulsa.
Mas voltemos ao início. Os soluços começam quando o olhar treme, e é difícil acreditar que aqueles actores são tenistas. E depois de que são adultos. E de que o que temos em mãos é um drama determinadamente ágil e agudo sobre o cruzar destes três tenistas adultos. No meio de muitas perucas, óculos de sol e churros, muita tensão sexual e momentos em slow motion com a banda sonora de Trent Reznor & Atticus Ross a cobrir o filme, não me saía da cabeça como algumas transições entre sequências conseguiriam facilmente duplicar-se em anúncios publicitários de 20 segundos a perfumes de luxo. Ou carros. Ou roupa. A semelhança com esse tipo de representação auto-consciente e insegura retira o espectador uma e outra vez do lugar construído até ali, levantando a suspeita de que talvez isto esteja escrito demais, realizado demais, pensado demais. Há modulações que se sincronizam só para se perderem outra vez. E a interpretação visível de Zendaya não ajuda. Mas prosseguimos. A química entre os dois outros actores, em especial entre Josh O’Connor e a câmara, brilhante actor enrolado nos sorrisos travessos do homem-criança que sabe que envelheceu, ajuda a colmatar essa fraqueza.
No entanto, com o avançar da narrativa, momentos televisivos que simplesmente não encaixam dentro do pacote Hollywood-Arthouse e a determinante construção mal-nutrida das personagens por diálogos que caem murchos no chão – “I love you. / Yeah, I know.” é talvez um dos momentos mais preguiçosos que vi no cinema no último ano – confirmam o que receio sempre que aconteça com um filme de Guadagnino. Challengers tem tanto potencial, é screwball o suficiente, mas foi construído de forma vazia para um filme que não é vazio! Ao ser possível ver as linhas de costura, é normal perder o subliminar de vista.

E é preciso mais do que um remate punk rock daqueles para salvar tudo o que veio antes. Ainda que, verdade seja dita, debaixo desta primeira camada de desencontro entre o corpo do filme e a sua corporalidade, há uma outra para onde se dirigiram e, eventualmente se esconderam, as nuances de tudo o que vimos na superfície. Aí, há momentos resguardados no silêncio que criam formas onde só havia ideias. Há um empurrar da conversa de um lado para o outro. Pena esta ser composta de frases efervescentes que não fazem nada avançar. Ninguém vence. Há preliminares que não existem no instintivo, na carne. Mas o filme não é puritano. Então porque é que não tilinta? Também ninguém vence.
Ou seja, Challengers apenas garante ao que viemos. Desce até alcançar uma dimensão mais próxima do que é térreo, onde ainda assim a transferência continua a não ocorrer. O conceito do amor pelo jogo está explícito, mas não o sentimos. E a ferocidade associada pode estar lá fisicamente, mas não pulsa. O filme iguala o que é sensorial a uma materialidade de um cinema-espectáculo feita de luzes e do perfil da sua actriz-celebridade, também a produtora do filme, que finta a câmara com sensualidade e avança rua fora sem olhar para trás. O controlo que Tashi tem sobre os seus white boys (como lhes chama) que a desejam, e o facto de que esta rejeita abandonar a sua liberdade em troca de uma vida doméstica, garante que o jogo, dela e entre eles, não cessará. E ainda bem! Da minha parte, gostava também que aquele pedido de Tashi, “I want to watch some good fucking tennis”, tivesse sido cumprido.
Challengers podia ser ténis. Teria sido o derradeiro festim à la Guadagnino. Em vez disso, escolhe ser um filme palatável e sexy, sim, sobre ténis.
★☆☆☆☆