Tenho uma boa notícia para todos: o cinema está em crise. O que, de certa forma, não é novidade, pois tem estado continuamente em crise ao longo da sua existência. Também não se trata de um sinal de perigo futuro – o futuro é um enigma e é preciso muita irresponsabilidade para especular sobre ele, para pretender decifrar os seus mistérios – mas, sim, de uma sensibilidade sismográfica aos desafios do presente. Penso que não há outro sintoma mais relevante para a vitalidade de uma arte do que a sua constante reavaliação, de acordo com a constante reformulação do nosso mundo. A verdadeira questão seria saber se as forças que transformam o mundo são as mesmas que transformam as artes, como ambas se alimentam mutuamente, a menos que sejam contraditórias.
Parece-me também que uma outra questão se coloca hoje, que, à sua maneira, parasita as outras duas, turva as águas e obscurece a nossa leitura do cinema e do seu lugar na própria história: a natureza da reflexão que determina o nosso olhar e a forma como essa reflexão é estruturada. Historicamente, ou seja, desde meados da História do cinema, a sua idade moderna, as ferramentas da cinefilia definiram esta estrutura, concebida por André Bazin, ele próprio um produto do Cristianismo Social de Jacques Maritain. O seu sucesso e relevância devem-se ao facto de ter sido adotada por uma geração de jovens cineastas, os da Nouvelle Vague, para quem a escrita teórica era o fundamento da sua prática. Reflexão e ação eram dois pólos de uma dialética que se tornaria a chave para a nossa compreensão do cinema, as suas singularidades e os seus paradoxos.
Perdoem-me por recuar tanto no tempo, mais de meio século, de forma a enfrentar o estado atual do cinema, mas o problema do tempo parece-me vital para tentar compreender onde estamos exatamente. É por isso que devemos começar por nos interrogar sobre o que é exatamente esta cinefilia original e qual poderia ter sido a sua alternativa.
Postulo, de forma correcta ou errada, que qualquer reflexão sobre o cinema se baseia, consciente ou inconscientemente, no carácter ambíguo da relação do cinema com as outras artes. E, consequentemente, com a sua teoria. Desde os primórdios do cinema, existiu um contraste entre os defensores de um cinema em sintonia com a história sincrónica da avant garde, por um lado, e os defensores do seu bastardismo intrínseco, por outro – dividido entre a literatura popular e o imaginário simbolista. André Bazin e os Cahiers du cinéma, pela sua parte, escolheram examinar a práxis e construir uma bolha essencialista a partir dela. O cinema estava, por assim dizer, noutro lugar, alheio às velhas questões.
As diferentes Nouvelles Vagues que se espalharam pelo mundo federaram-se em torno desta abordagem.
No centro de tudo estava a questão da filmagem e da ética da filmagem, e a liberdade do autor, que permitia todas as idiossincrasias. Mas, a partir do início dos anos 60, e de forma mais acentuada depois, esta cinefilia foi duplamente encurralada: pela relação reprimida com as artes visuais – Jean-Luc Godard fez disso o centro da sua obra – e pela evolução sócio-política do mundo, abalada pelo movimento juvenil que se materializou em França em maio de 68 e nos Estados Unidos no Verão do Amor de 1967.
Em termos simples, a relação com as artes visuais pôs em causa a forma do cinema moderno, a sua relação com a figuração e a narração, enquanto a agitação que varreu as sociedades contemporâneas pôs em causa o lugar ou mesmo a legitimidade do autor.
Tudo o que parecia claro tornou-se turvo; tudo aquilo sobre o qual o novo cinema tinha sido construído foi consequentemente posto em causa, mesmo pelos seus principais artesãos.
Esta questão profunda e sem resposta, de saber se o cinema faz ou não parte das artes visuais, marcou-me pessoalmente. Será o cinema a “sétima arte”, termo muitas vezes utilizado sem o compreender ou será outra coisa que não uma arte, talvez até a pedra filosofal que as vanguardas do século XX procuravam, a sublimação das artes, no sentido hegeliano do termo. O cinema como arte, de facto, mas que teria o poder de olhar para as outras artes, de resolver os mistérios da representação do mundo, em suma, de fazer o milagre da reprodução da percepção como um todo, cujo acesso assombra a história da pintura – Turner resolveu de igual modo a procura do movimento através da abstração.
Penso muitas vezes no que Ingmar Bergman disse sobre o facto de Tarkovsky se mover livremente através de espaços em cujas portas ele próprio tinha batido durante toda a sua vida.
Nesse sentido, sempre me confundi com os mal-entendidos suscitados pela distinção entre o cinema experimental, herdeiro das tentativas dadaístas (Hans Richter) e surrealistas (Man Ray, Buñuel) do início do século XX, e o cinema narrativo que se estabeleceu muito cedo como entretenimento popular, ganhando gradualmente os seus galões. Traité de bave et d’éternité (1951), do fundador do Letrismo, Isidore Isou, deve ser considerado, na minha opinião, como o prenúncio da Nouvelle Vague. E, do outro lado do Atlântico, uma ruptura semelhante, provocada por uma geração de cineastas experimentais que desafiaram tudo o que veio antes deles, Kenneth Anger, Andy Warhol, Jonas Mekas, Stan Brakhage ou John Cassavetes, foi a base do cinema livre que se seguiu, da Nova Hollywood, se quisermos. Sobretudo no que respeita à reformulação formal da estética cinematográfica, que muito menos afectou a Nouvelle Vague. Através da sobreposição e da magia negra (Anger), da abstração (Brakhage), de um estilo diarístico (Mekas), da dramaturgia e do estatuto do ator (Cassavetes), ou da utilização do zoom como reinvenção do plano fixo, liberto da estática câmara escura (Warhol), não é a sintaxe mas a própria textura do cinema que está em jogo.
Pela minha parte, considero o cinema como um todo: o cinema narrativo sempre se alimentou de obras experimentais, tal como estas últimas sempre se inspiraram nos limites ou impasses da figuração. O que quero dizer é que há um pouco de Brakhage em Michael Bay e um pouco de Warhol em Fassbinder ou Almodóvar.
No centro destas questões, como muitas vezes acontece quando se trata de questionar o contemporâneo, está a obra de Jean-Luc Godard, inicialmente um produto da cinefilia clássica e assombrado até ao pôr do sol pelo seu questionamento e dúvida que corrói essa mesma cinefilia, o nó de sofrimento que há muito tem definido a sua arte.
A teoria é o pensamento em movimento, o pensamento na sua capacidade de se apropriar – inclusive em termos estratégicos – das questões de um presente em constante redefinição. Em que momento, quando exatamente, o cinema deixou de ser pensado? Quando é que perdeu a ligação vital e essencial entre a prática de uma arte e a sua reflexão? Receio que muitas forças irresistíveis tenham contribuído para aquilo que continuo a considerar como o falhanço de uma geração.
Em primeiro lugar, diria que o cinema foi vítima do seu próprio prestígio e a teoria (do autor) do seu sucesso internacional, que abriu as portas para a academia. Assim que o pensamento cinematográfico se tornou uma disciplina académica, tornou-se fixo; deixou de ser a continuação das preocupações materiais e práticas dos cineastas. Quem é que, hoje em dia, se interessa seriamente pela forma como as lentes transformam o espaço, nomeadamente através das longas distâncias focais específicas do cinema moderno? Quem se interroga sobre a perspetiva monocular como um limite à reprodução do real pelo cinema? Ou, ainda, quem explora a disparidade entre o campo aberto e livre da escrita do romance ou do teatro moderno e os limites estreitos das convenções que regem o trabalho dos comités e comissões que detêm o poder de vida e de morte sobre as obras cinematográficas? Para já não falar das séries, cujos porta-estandartes parecem estar demasiado satisfeitos em aplicar o rol de convenções e chavões dos manuais de escrita de argumentos americanos.
Estou a referir-me ao momento em que a teoria viva se transforma em ideologia morta. Nas mãos dos professores universitários, que vêem nisso uma oportunidade de dar um toque de modernidade ao seu ensino, o pensamento em movimento torna-se uma doxa, um conjunto de regras, de automatismos, que já não se baseiam em nada, uma vez que esquecemos a sua própria fonte, a fonte da juventude, da poesia mais espontânea.
Se eu quisesse levar a minha reflexão mais longe e ser mais provocador do que desejo ser neste contexto, diria que é tempo, hoje, de enfrentar seriamente, e de forma responsável, o fracasso da cinefilia. Não pretendo pôr em causa as suas conquistas, nem a sua importância crítica no pensamento do século XX sobre a imagem: é de extrema importância. Mas o próprio sucesso deste tesouro da história do cinema deveria abrir-nos os olhos e obrigar-nos a admitir que se trata de um momento do cinema, que esse momento já passou há muito tempo porque já não produz nada de novo, senão uma forma de tetania que resulta na ideia de que a totalidade do cinema teria sido pensada na era da modernidade dos anos 60 e do cinema clássico antes disso, e que a única coisa que nos resta hoje é contentarmo-nos com os valores e as ferramentas de uma pós-modernidade irónica, ou melhor, não duplicada, se não mesmo caindo no grotesco barroco.
O que quero dizer é que, num mundo em que proliferam as imagens, de todos os géneros, não podemos deixar de constatar a fragilidade do lugar do pensamento cinéfilo, que se tornou uma posição de recurso, quando, até há pouco tempo, ainda estava no centro do debate.
Desde que os seus grandes princípios foram adquiridos, que o cinema foi reconhecido como um objeto de estudo legítimo, que o autor ganhou o prestígio antes reservado aos praticantes de disciplinas mais antigas e mais sérias, e que a sua legitimidade foi reconhecida como estando a meio caminho entre a alta e a baixa cultura, parece que não nos movemos um milímetro. Assisti à construção das muralhas de uma fortaleza – universitária – para proteger, em torno dos guardiões desse templo, valores que há muito não produzem nada de útil ou de relevante.
Digo isto com tanto mais desconforto quanto me coloco aqui, não só na posição de ensaísta, mas também na de cineasta que examina a teoria, colocando a questão de saber e de compreender de que forma esta me teria sido útil ou estimulante, além do que aprendi ao contribuir para os Cahiers du cinéma durante cinco anos, entre 1980 e 1985. A resposta, no que me diz respeito, e poderia – talvez – ser diferente para outros, é brutal: nada. E, como a natureza me dotou de um espírito um pouco contrariador, fico com a sensação de que tive de nadar contra a maré das concepções efémeras, dos amuletos da sorte, das modas instantaneamente esquecidas de um pensamento cinéfilo à deriva, determinado por uma ligação tardia à sociologia bourdieusiana, mergulhando nos jogos de espelhos da pós-modernidade e correndo ingenuamente atrás do prestígio das artes visuais, desde que estas invadiram o campo da imagem em movimento através da prática da arte da instalação, por mais frágil e questionável que seja.
Permitam-me que olhe para o passado uma última vez, antes de passar a considerações menos negativas, embora eu seja, em muitos aspectos, um defensor dos poderes do negativo, que foram uma grande inspiração para mim.
Quando a cinefilia histórica se formou no final dos anos 50 e início dos anos 60, a teoria das artes visuais tinha alguma coisa a dizer sobre o cinema, sobre a sua história e sobre as forças poderosas que determinaram a sua transformação? Não muito, na minha opinião, e não é preciso ser, como eu era, um leitor de Guy Debord e dos Situacionistas para constatar que, durante esses anos, perante o advento da Escola de Nova Iorque (Pollock, de Kooning, Rothko…), a principal questão que preocupava as vanguardas europeias era o seu próprio fracasso político, a repetição dos impasses da abstração e a repetição de transgressões que já nem sequer eram chocantes em 1930. O cinema estava tão afastado das preocupações da teoria das artes visuais que se referia, mesmo nas suas variações mais contemporâneas, como o neorrealismo italiano, à mais básica reprodução monocular do mundo. A questão da figuração no cinema parecia insignificante quando comparada com a exploração das obscuridades ou do deslumbramento do inconsciente através dos meios da abstração e, mais ainda, quando comparada com o movimento de negação da arte através de acontecimentos nas suas variações mais radicais e extremas, como o Actionismo vienense. Ou, ainda, as teses de Hamburgo de Debord, Vaneigem e Kotanyi que assinalavam a renúncia situacionista à arte em favor da “realização da filosofia”.
Escrevo isto para recordar como o pensamento cinéfilo foi também um poderoso antídoto contra as forças destrutivas que actuavam no seio do avant-garde e como permitiu aos cineastas emergentes da época, sem dúvida a geração mais rica e prolífica da história do cinema, encontrar uma base para uma prática de representação do mundo, que as artes visuais lhes negavam.
Teremos de chegar ao presente. É o que vou tentar fazer. Gostaria de começar pela questão da teoria, uma vez que rejeito a cinefilia pela sua ossificação em ideologia e dogma.
No seu recente livro A History of Pictures, David Hockney, que considero ser o principal pensador contemporâneo da imagem, para além de ser o maior pintor vivo, faz uma fascinante reflexão sobre as origens da representação: como esta se construiu durante muito tempo em torno de uma relação com a perspetiva monocular, com a evolução técnica das lentes e da sua utilização, e com a técnica da câmara escura. Por mais que estas ferramentas lhe permitam uma releitura infinitamente estimulante da época clássica da pintura, ele lida também com a sua reavaliação moderna. O momento cubista foi, a este respeito, um acontecimento crucial, rompendo com os pontos de referência tradicionais da perspetiva através de uma multiplicação de ângulos para uma mesma imagem.
Na minha opinião, Hockney não vai suficientemente longe, no sentido em que o seu ponto de vista não é apoiado pela teoria do cinema, que, com o tempo, esqueceu ser uma teoria da perceção – exceto com Gilles Deleuze que, principalmente em A Imagem-movimento, foi um dos últimos grandes pensadores do cinema. É de facto do ponto de vista do movimento – e da multiplicação de perspectivas e eixos numa sequência, não num plano, que não é o verdadeiro sintagma do cinema – que se coloca a questão do cinema como resposta às preocupações de Hockney, como forma de questionar os limites da câmara escura original. O movimento da câmara, desde que pode ser transportada, e o uso de lentes longas, incluindo em interiores, desde que dispomos de ópticas suficientemente sensíveis, aproxima-nos de facto, penso eu, da reprodução da perceção, que está finalmente ao nosso alcance.
Hockney recusa fazer o ponto da situação destas questões no cinema, que é o limite da sua reflexão, mas parece-me que a última descoberta da sua obra mais recente é essencial, no sentido em que sugere recolocar a pintura no centro da história das imagens. Para o resumir esquematicamente, ele não considera a passagem da pintura à fotografia como uma ruptura, mas como uma continuidade em que a invenção decisiva não é tanto a reprodução rival do real, mas a capacidade de fixar – no papel fotográfico – uma imagem que os pintores já conheciam há muito tempo, através da sua utilização da perspetiva e que estava na origem das suas técnicas e da sua evolução.
A importância desta ideia reside na sua relegitimação da antiga teoria artística desenvolvida em torno da pintura no seio do cinema, que poderia muito bem ser considerado a continuação da invenção da fotografia. No fundo, a questão que estou a tentar colocar seria a de saber se não seria do interesse do cinema de hoje confrontar-se com a riqueza das reflexões que, desde o Renascimento, se preocuparam em considerar tanto a questão da reprodução do mundo como a questão ainda mais essencial da exploração da percepção. Se me perguntassem o que penso ser mais útil ensinar nas escolas de cinema atuais, recomendaria estas duas vertentes.
Aliás, para sustentar estas intuições, bastaria observar como os pensadores da imagem a que Jean-Luc Godard – o mais autenticamente plástico de todos os grandes cineastas modernos – mais frequentemente se refere são Elie Faure e, sobretudo, André Malraux, cujo brilhantismo e justaposições espantosas – curtos-circuitos teóricos – continuam certamente a assombrar-nos.
O que estou a tentar mostrar aqui é quão mal equipada está a cinefilia para enfrentar estas questões, que estão no centro da compreensão da misteriosa natureza contemporânea do cinema, cujos próprios elementos parecem ainda escapar-nos. Ao passo que a história das artes nos oferece uma riqueza de oportunidades estimulantes para reinventarmos a nossa relação com a imagem em movimento e, talvez, para a fazermos recuar na longa história que acabou por ser obscurecida pela oposição entre o cinema clássico e a modernidade, um tempo produtivo.
Quem pensa o cinema hoje, de que ponto de vista e com base em que valores? E o que é que o cinema pensa de si próprio, segundo que ética e que princípios? Duas questões de natureza muito diferente, cujas respostas parecem ter-se desmoronado – sobretudo na Internet – e cuja coerência se tornou infinitamente difícil de imaginar.
Visto de um ângulo limitado, o do cinema francês, pareceu-me que, embora eu próprio não fizesse parte dele, as personalidades fortes de Serge Daney e Claude Lanzmann serviram de referência durante algum tempo, fundando uma espécie de post-script fúnebre da cinefilia, mais pós-esquerdista do que pós-moderna e definida pela questão do tabu: por um lado, o “travelling em Kapò” que foi criticado por Jacques Rivette num ensaio sobre o filme homónimo de Gillo Pontecorvo [Pontecorvo realizou La battaglia di Algeri (A Batalha de Argel, 1966) e tinha sido um ídolo indestrutível do cinema anti-colonialista] e que, para Daney, torna-se a própria obscenidade, a estetização da deportação, numa altura em que dá uma forma literária profundamente comovente à sua própria história pessoal, até então reprimida, de um pai que nunca conheceu, um judeu polaco vítima dos campos de concentração.
Por outro lado, Claude Lanzmann, autor da espantosa obra-prima Shoah (1985), ao apreender a deportação de uma forma transcendental e ao abster-se de utilizar imagens de arquivo, construiu em torno desta questão uma ética cinematográfica que deixou marcas para sempre.
A combinação destes dois assuntos serviu de teoria para uma geração de cineastas que raramente foram afetados diretamente por estas questões históricas, mas que procuravam um código moral que as ruínas da cinefilia clássica, já gravemente feridas pelo esquerdismo, não conseguiam fornecer.
O paradoxo deste momento da teoria do cinema é que não tinha nada de construtivo a propor para além do estabelecimento de um código de restrição. Acrescente-se, obrigatoriamente, a evocação do espectro da morte do cinema. Eu não teria gostado de começar a fazer filmes nestas circunstâncias terríveis e foi Arnaud Desplechin quem, em La Sentinelle (1992) – um filme que sempre pensei que Serge Daney teria adorado -, conseguiu desatar este nó e salvar o cinema desta maldição. Mas não haveria uma verdade fundamental em tudo isto e não seria Serge Daney, que subiu a bordo do comboio pós-baziniano durante os anos 70, quase clarividente em relação aos impasses da cinefilia em torno da qual se estabeleceu e cujo desvendamento, decomposição e abnegação testemunhou enquanto ele próprio morria?
O que resta destas questões? Permanecem, ultrapassaram as fronteiras de França? Nem por isso. São apelativas para os jovens cineastas? Têm posteridade ou só são pertinentes no contexto desta reflexão sobre o estado atual do cinema? Dificilmente.
Ao tentar identificar hoje o lugar de uma reformulação da cinefilia, é impossível não a situar na Internet e na redefinição que esta faz dos modos de visionamento do cinema e da forma como nos movemos na sua história. É um lugar-comum irrelevante e, no entanto, uma verdade digna de mencionar: a de que as gerações actuais têm um acesso infinitamente mais amplo à história – a toda a história do cinema e ao seu presente – inimaginável para a humanidade pré-digital, que apenas tinha acesso, através da Cinemateca, a uma fração das obras-primas do cinema, algumas delas perfeitamente inatingíveis.
Não vemos tudo, mas temos acesso a quase tudo, até gratuitamente; a cinefilia dissolveu-se numa multidão de cliques em conflito, cada um organizado em torno de um fragmento de um passado glorioso, ao ponto de até o seu valor simbólico continuar a diminuir. Continuam a existir filmes, muitas vezes também muito bons – hoje fazem-se mais filmes bons do que em qualquer outra altura – cujos desafios se colocam numa base ad hoc: será que vai ganhar o Oscar, a Palma, o Leão, o Urso, será que vai ser nomeado? Entretanto, os cineastas enquanto autores estão a desaparecer. Quem sabe hoje em dia seguir o fio de uma obra, compreender o que se passa na busca de um artista, por mais fútil e sem sentido que seja? É tudo sobre este filme aqui e, depois disso, começa tudo de novo. Na fragmentação digital e na diluição da sua pertinência teórica atual, todo o legado da cinefilia de autor é praticamente posto em causa.
Que teoria está a entrar em diálogo com o cinema no presente, que teoria é aceite, tem o direito de ajudar a moldar a inspiração dos cineastas? A quem se deve prestar contas? Tenho um pouco de medo na resposta, para ser sincero.
Parece-me que é a sociologia – é mais fácil dizer a política – e o comunitarismo. Mas será isto bom ou mau? E não estarei a aventurar-me em areias frágeis e movediças? Creio que há uma injunção para abordar estas questões, mesmo que duvide que seja capaz de formular uma resposta satisfatória e muito menos consensual.
Conhecemos os males do nosso tempo. O aquecimento global, a catástrofe ecológica, o aumento insano das desigualdades sociais, a impossibilidade de gerir os fluxos migratórios e, sobretudo, a incapacidade dos governantes, dos Estados, de darem uma resposta satisfatória ou mesmo vagamente tranquilizadora a estes temas angustiantes, para não falar das guerras, das epidemias ou do desemprego. Pelo contrário, parece que a oposição auto-destrutiva à apreensão desses males se tornou, nas nossas democracias, um trunfo eleitoral.
É apenas natural que os cineastas sejam também cidadãos e, portanto, legitimamente envolvidos nos problemas que a sociedade enfrenta. Mas a política é o domínio do complexo e não produz necessariamente bom cinema. Além disso, o cinema de ficção tem dificuldade – o que é normal – em apreender questões sociais que são analisadas ou representadas de forma muito mais adequada pela literatura, pela imprensa ou mesmo pelo documentário, formas mais longas e, portanto, mais legítimas, capazes de tratar assuntos frágeis ou sensíveis com o necessário rigor, precisão e exatidão que o cinema só muito excepcionalmente pode oferecer.
Do meu ponto de vista, o sociológico é um mau ramo para se tentar agarrar, até porque as simplificações, as amálgamas e as dramatizações correm o risco de cortar os factos, reduzindo-os a generalidades confortáveis e resultando numa interpretação simultaneamente errada e prejudicial.
Não pretendo criticar ou deslegitimar um cinema que pretende ser responsável perante o Estado e os seus cidadãos; pelo contrário, é perfeitamente louvável. Quero apenas dizer que o considero muito difícil, e por vezes até perigoso, e que, de qualquer modo, não descubro aí uma chave que nos permita pensar o cinema contemporâneo, e muito menos o cinema do futuro, de uma forma satisfatória ou estimulante.
O que pensar do comunitarismo, que se tornou um factor que influencia as nossas sociedades e que, por sua vez, examina o cinema na falta de ser examinado por ele, o que, de qualquer forma, pareceria ser mais fundamental, mais arriscado e mais satisfatório para as nossas mentes? Sempre estive convencido de que o papel do cinema e da arte é examinar a sociedade e certamente não ser examinado por ela, particularmente não nos termos de censura, a eterna marca dos regimes totalitários.
Eu era um adolescente nos anos setenta. Tenho-o repetido muitas vezes e continuarei a fazê-lo, porque esse período, e o seu questionamento de todos os valores da sociedade, deixou uma marca indelével na minha vida. Vivi e participei ativamente numa contracultura que defendia a liberação da vida quotidiana e estive envolvido em formas de esquerdismo que promoviam a libertação individual em vez de utopias colectivistas e apoio a regimes autoritários ou mesmo genocidas. Vi a libertação da homossexualidade em palavras e actos, vi o renascimento do feminismo e as suas vitórias decisivas. Vi a invenção de uma identidade franco-magrebina, de uma cultura originária dos bairros para onde foram relegados os imigrantes africanos, encorajados a instalarem-se em França para servirem de mão-de-obra nas grandes construções de infra-estruturas da França gaulesa.
Interessou-me menos, depois, a deriva identitária que se seguiu a estes passos em frente, nem a sua instrumentalização política ou ideológica. Talvez tenham sido fatais; talvez tenham sido necessários, não sei. Pessoalmente, nunca pensei na minha relação com os outros nos termos da cor da pele ou das preferências sexuais. Quanto à minha relação com as mulheres e o feminismo – que seria o meu partido político preferido para toda a vida, porque estou absolutamente convencido de que a masculinidade tóxica se tornou a fonte de todo o mal no nosso mundo – foi Groucho Marx quem deu a melhor definição quando disse que o homem é uma mulher como qualquer outra. Eu próprio não o poderia ter dito melhor.
Acrescento estes comentários mais pessoais não só para definir quem sou, mas também, neste caso, “de onde eu estou a falar”, para usar o jargão dos anos políticos. Pessoalmente, penso que o cinema pode ser comunitário – não creio que seja essa a sua origem, mas porque não? – mas este comunitarismo é, no entanto, totalmente inadequado para substituir-se à ausência de pensamento teórico sobre o cinema, que temos de avaliar hoje.
Vou ter de falar de Hollywood. Não tenho praticamente nada de positivo a dizer sobre ela: a prosperidade desta indústria e as suas novas modalidades não me encantam, assustam-me ou mesmo repugnam-me, porque o que produziram recentemente é diametralmente oposto ao que eu amava ou admirava no cinema americano que, ao longo da história do cinema, deu a esta arte vários dos seus maiores mestres.
Assistimos ao triunfo das séries, à distribuição dos filmes através de plataformas digitais e à confiscação dos ecrãs ao serviço dos franchises (sobretudo dos estúdios Disney), cuja hegemonia parece agora absoluta.
Porquê dar-se ao trabalho de financiar um filme que não está destinado a provocar uma sequela, um spin-off ou outro filme “no universo de” e cuja relação insegura com o público é imprevisível? Há muito tempo que, em Hollywood, o território do cinema está a diminuir. Em resultado, um cinema independente está obrigado a contentar-se com orçamentos ridículos – e, portanto, limitado na sua prática da sintaxe contemporânea do cinema, cuja maior amplitude fica reservada para as grandes produções.
E a Netflix, a Disney Plus, a Apple, etc.: o cinema não se refugiou aí? Alfonso Cuarón, Martin Scorsese, os irmãos Safdie e Noah Baumbach não encontraram aí asilo político? Eu próprio já lá estive, uma vez que o meu filme Wasp Network (Wasp Network – Rede de Espiões, 2019) é distribuído pela Netflix na maioria dos países, excepto onde foi comprado antecipadamente – em primeiro lugar em França, onde foi um sucesso honesto de público no grande ecrã. Nenhum outro distribuidor ofereceu aos produtores do filme uma alternativa viável.
Se há uma questão com que o pensamento cinematográfico – que precisa de ferramentas teóricas que lhe faltam – se depara, é a confusão gerada pela profunda transformação da distribuição e do financiamento dos filmes. Em primeiro lugar, será que as plataformas tencionam financiar o ambicioso cinema de autor contemporâneo, além do efeito fortuito da fama que acompanha a rivalidade neste domínio dos recém-chegados, determinados a conquistar uma grande fatia do mercado? Por outras palavras, será que a Netflix, que hoje precisa de prestígio e de valor simbólico, continuará a precisar dele no próximo ano ou no ano seguinte? Penso que não. Quanto aos estúdios, voltarão ao cinema como modelo de negócio ou o desvio para as franchises, por um lado, e para as séries, por outro, é definitivo?
Em suma, haverá ainda espaço para um cinema livre no grande ecrã? Penso que, se esta janela não está a fechar-se, está pelo menos a encolher diante dos nossos olhos. O único modelo real que resta é um cinema independente, radical e ousado, mas infelizmente com uma distribuição limitada.
Sinto-me confortável com isso? Nem por isso. Venho das artes plásticas; fui influenciado pela poesia contemporânea e os meus gostos musicais levaram-me, na maior parte das vezes, a artistas nas margens das margens, para não falar das minhas convicções estéticas, filosóficas e políticas, que são terrivelmente minoritárias na minha geração. Mas se escolhi dedicar-me ao cinema foi por causa do seu estatuto maioritário, porque era a última forma de arte que ressoava profundamente na sociedade, que não estava presa no seu reduto, que não tinha sofrido o desvio esmagador das artes visuais, que optaram por uma aliança com o capitalismo financeiro triunfante, escolhendo um falso radicalismo cínico, a que Guy Debord chamou “dadaísmo de Estado”, destinado a promovê-lo a alturas estratosféricas.
O cinema que me inspirou, que amei, que tentei praticar, é um cinema impuro e aberto, particularmente acessível àqueles para quem o cinema é muitas vezes a única oportunidade de encontrar a arte como vital, benéfica e, porque não, salutar.
Será que, a este respeito, penso que Alfonso Cuarón, Martin Scorsese, os irmãos Coen e tantos outros fizeram bem em escolher uma forma de segurança e confiar os seus filmes à Netflix? Não, acho que não. Penso que os seus filmes demonstram que o cinema em que acredito está vivo e é viável – a maior parte destes filmes poderia facilmente ter sido financiada sem a ajuda da Netflix ou de outras plataformas – e que é a extensão, a continuação de uma arte que é verdadeiramente do nosso tempo, da nossa geração, que dá conta da transformação do mundo, dos seres, do tempo, de tantas coisas que pertencem ao cinema e que correm o risco de se perderem ou de serem esquecidas no fluxo das imagens; e, mesmo que tenha poucas certezas, estou certo de que este perigo é muito real, que enfrentá-lo e perseverar nos unirá, por mais poderosas que sejam as forças que temos de enfrentar.
Neste momento, o meu leitor tem todo o direito de me perguntar o que é exatamente essa teoria ausente de que o cinema atual necessitaria. Parece que já evoquei o indispensável vai-e-vem entre a prática intuitiva, espontânea, descontrolada, muitas vezes determinada pelo uso de novas ferramentas ou novos meios, e o seu pensamento. Não quero dizer que o desenvolvimento das artes seja a palavra da Pítia e que caiba aos críticos, aos ensaístas e também a certos cineastas, como estou a fazer neste momento, tentar decifrar os seus enigmas. Mas penso que pode ser importante, talvez mesmo essencial, que as obras gerem aquilo a que Roberto Longhi chamou ekphrasis, ou seja, o discurso tornado possível e provocado pelas questões, enigmas e descobertas que a arte, na sua busca da vida e das suas contradições, deixa por resolver. Uma escrita que estaria em diálogo com os artistas, uma revelação da obra e, por esse mesmo facto, um intercessor para o espectador.
Entendo isto no sentido mais literal, o de saber ler e responder às questões que a prática cinematográfica coloca no dia-a-dia, mas gostaria também de levar esta questão um pouco mais longe e abri-la a dois campos que parecem ter um grande potencial no contexto atual. O primeiro é o inconsciente e o segundo é a ética.
Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, devo falar na primeira pessoa e partilhar preocupações que sempre me perseguiram, mesmo quando perdiam terreno na reflexão cinematográfica e na inspiração dos cineastas.
Aplicada ao cinema, e perdoem-me as inevitáveis simplificações e atalhos na abordagem de um tema tão vasto, a psicanálise ilumina-nos de duas formas diferentes. A primeira, amplamente freudiana, lembra-nos que os autores nunca estão inteiramente conscientes do que fazem na apreensão das personagens e dos seus actos, do mesmo modo que os escritores, ao pegarem na caneta, nem sempre escrevem o que tinham planeado, pois a escrita revela o pensamento mais do que o pensamento paralisa a escrita: em suma, quero dizer que tanto os cineastas como os escritores, por mais lúcidos que sejam, nem sempre sabem o que dizem ou fazem porque o seu inconsciente está em ação.
Noutros tempos, não há muito tempo, isto era óbvio e procurava-se o que motivava ou determinava o indivíduo moderno, para o bem ou para o mal, nas reflexões sobre as personagens de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni ou Jacques Tati. Creio que o mesmo poderia acontecer hoje, numa altura em que o significado dos filmes, nas suas múltiplas formas, se tornou mais do que nunca um tema de debate e de polémica. No cinema, como em qualquer obra da mente, é o inconsciente que actua. Abrimos-lhe as portas e não há nada mais precioso do que aquilo que este exprime através de nós quando nos abstemos dos lugares-comuns, das conveniências, das convenções e de todas as falsas regras dramáticas que determinam os comités e as comissões de que, infelizmente, o presente e futuro do cinema dependem demasiadas vezes, limitando e distorcendo a inspiração e os desejos autênticos dos jovens cineastas, que são ensinados a não serem eles próprios pelas regras dominantes da indústria cinematográfica.
À outra dimensão segundo a qual a psicanálise define o cinema, eu gostaria de a designar como amplamente junguiana, no sentido em que o cinema, na sua totalidade, mesmo na sua forma mais convencional e simplista, pode – e, na minha opinião, deve – ser considerado como um inconsciente coletivo. O mundo das imagens, do fantástico, do imaginário, onde quer que nos possa levar, muitas vezes das formas mais dececionantes ou banais, é o sonho da nossa sociedade e, nele, informa-nos, muitas vezes sem o sabermos, sobre o estado do mundo melhor do que em qualquer outra arte, com exceção talvez das canções, do entretenimento popular e da música em todas as suas formas, fornecendo um relato em tempo real do que está a fluir no nosso tempo presente.
Por exemplo, sempre considerei o Star Trek um olhar quase documental sobre a vida no escritório e as interacções entre os empregados, divididos entre a sua rotina diária e os perigos do mundo exterior; só mais tarde percebi o que estava literalmente à minha frente, que a sua nave espacial se chama “Enterprise” [empresa]…
Numa nota mais sombria, é difícil não considerar a proliferação de filmes que são de alguma forma assombrados pela destruição e pelo fim do mundo, e construídos em torno dos super-heróis da Marvel, como uma espécie de vingança da masculinidade, que é ameaçada pela redefinição do lugar das mulheres nas sociedades modernas.
E escolho deliberadamente duas tendências bastante simples com o único objetivo de mostrar que o desenrolar destes fios pode contribuir para pensar as verdades, incluindo as desagradáveis, que animam o nosso tempo.
O que me traz à ética.
Esta merece ser examinada, mesmo que o estado atual do cinema possa dar-nos poucas respostas fáceis ou satisfatórias.
Não se trata de uma questão de moralidade para mim, uma vez que a maior parte das obras de Eisenstein ou de Vertov podem ser definidas como propaganda, que o próprio Rossellini fez filmes aprovados pelo Estado fascista, que pode ser doloroso ver The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915), uma das obras-primas da história do cinema, que Bergman, Hitchcock e muitos dos artistas mais eminentes da história do cinema fizeram filmes de propaganda durante a Guerra Fria. Isso não diminui a sua genialidade. Para não falar de Leni Riefenstahl, a quem é negado o seu – importante – lugar apenas devido ao seu nazismo e aos benefícios que dele retirou. Um grande cineasta como Xie Jin, o inspirado autor de Wutai jiemei (Duas actrizes, 1964) e Nü lan wu hao (Woman Basketball Player No. 5, 1957), não teve escrúpulos em prosseguir a sua carreira durante as horas mais negras da Revolução Cultural.
Considero antes esta uma questão de prática, como quando André Bazin falou de uma “montagem proibida”, quando se juntam dois planos antinómicos, uma fera selvagem, por um lado, e um ator disfarçado de explorador, por outro. Ou quando Claude Lanzmann, que citei anteriormente, examina a legitimidade de representar, de ficcionar os campos de concentração e as câmaras de gás. Cada um tem o direito de argumentar e de defender o seu ponto de vista sobre esta questão. Não é menos pertinente e tem, sobretudo, o mérito de ir até ao limite de uma questão que se coloca, em menor escala, em cada gesto da prática do cinema.
Quem financia os filmes, de onde vem o dinheiro, de quem nos tornamos cúmplices quando gastamos esse dinheiro, quando praticamos a nossa arte? De que é que abdicámos, a que é que tivemos de renunciar quando tivemos de responder às exigências do mercado e da indústria que ditam as suas regras? Que práticas de um canal de televisão, e baseando a sua audiência em que demagogia, queremos mesmo aprovar? A que procura imaginada, a que “público em geral”, desprezado por aqueles que dizem falar em seu nome, cedemos?
Por exemplo, quinze anos depois, descobri que o meu filme, Les destinées sentimentales (Destinos Sentimentais, 2000), tinha sido distribuído nos Estados Unidos por uma empresa, muito simpática, cujo principal acionista era o agitador de extrema-direita Steve Bannon. Se me sinto confortável com isso? Não, não sinto. Tenho escolha? Não sei, talvez, mas as coisas seriam muito mais claras se estas questões fossem discutidas e postas “preto no branco”. O mesmo se aplica às mega produções americanas que adaptam os seus argumentos às exigências da censura político-confucionista do governo chinês para chegarem ao maior público do planeta.
Recordo-me frequentemente do título de um artigo de François Truffaut, ironicamente intitulado «Clouzot em trabalho ou o reino do terror». Temos de reconhecer, como Truffaut, a imagem, muito difundida na época e mais difundida ainda hoje, do demiurgo-cineasta que abusava da sua autoridade e do seu poder em benefício de uma demanda indizível, de um absoluto tão vago quanto difícil de formular, e cujos caprichos, cóleras e impertinências são outras tantas expressões tangíveis do mesmo, permanecendo, no entanto, inacessíveis ao comum dos mortais. Considero importante o contrário: que os cineastas são responsáveis perante a sua equipa e que a qualidade da concentração, a riqueza da partilha, a clareza das intenções constituem uma parte decisiva da aventura colectiva de uma rodagem. Muitas vezes, sempre que tive oportunidade, agradeci à equipa dos meus filmes e lembrei-lhes o quanto o cinema é a soma das energias transmitidas por um realizador, cuja arte depende muitas vezes da sua capacidade de ouvir, de prestar atenção às ideias, ao fluxo de coisas que surge no set, dia após dia. O seu talento depende também de saber como dar origem a isso. Para mim, é uma convicção antiga e profunda que o melhor do cinema provém da qualidade do empenhamento de cada um num estranho empreendimento que tem que ver com a reinvenção e o reencantamento do real, mas que é também um mundo paralelo, uma vida paralela em que cada um deve ser capaz de se superar, de encontrar a sua satisfação e, de certa forma, de dar sentido ao que é um pouco mais do que um trabalho, o empenhamento de uma vida, uma busca íntima.
Isto não significa, de modo algum, que eu renuncie ao que muitas vezes declarei, ou seja, que a realização é, antes de mais, uma força de ruptura dos automatismos que estruturam o funcionamento de um set. De facto, cabe à mise en scène perturbar constantemente as convenções e as conveniências, formas que só estão vivas se forem constantemente abaladas e questionadas: e quanto mais as abanarmos, quanto mais nos recusarmos a contentar com respostas prontas, quanto mais pusermos em prática a convicção de que o cinema pode e deve ser mil coisas – o que foi no passado ou o que ainda está por explorar, que este território é infinito e o único que realmente merece ser explorado -, mais oportunidades teremos de revelar o próprio significado da nossa arte e o seu lugar no mundo. Mas nada disto pode ser conseguido sozinho. Precisa de ser alargado, aprofundado, aplicado por todos, com todos os riscos inerentes e com a exatidão necessária para realizar esta ambição.
Isto aplica-se a todo o tipo de filmagens e a todos os cineastas que optaram por exercer a sua arte à margem das leis e das regras da indústria do streaming e que souberam preservar a sua liberdade, muitas vezes duramente conquistada – o valor supremo do cinema – em seu próprio benefício, é claro, mas também, e igualmente, em benefício dos seus colaboradores. Um filme é um microcosmo, toda a sociedade, todos os estratos estão nele representados, e as mesmas ondas, as mesmas tensões atravessam-no, só que esses valores são postos à prova de forma mais imediata, mais urgente, diariamente e com consequências imediatamente observáveis. É por isso que atribuo um valor inestimável a uma prática ética do cinema cujos efeitos benéficos, prazeres e perigos, seriam partilhados por todos, constituindo um trabalho desalienado no coração do próprio território da alienação. Falei de responsabilidade e creio que é preciso, antes de mais, submeter o nosso trabalho ao respeito destes valores.
Como podem adivinhar, não gosto muito daquilo em que se tornou a atual indústria cinematográfica, nas mãos de executivos que mais parecem gestores de empresas produzidos em escolas de gestão, ou de altos funcionários públicos, que são muitas vezes pessoas de grande qualidade, mas cujos instintos, ambições e imaginação estão a milhas de distância dos aventureiros, dos jogadores e dos visionários que construíram esta catedral que todos partilhamos, a catedral do primeiro século do cinema.
A este respeito, sempre acreditei no chamado cinema independente – estruturas cujos modelos históricos seriam Les Films du Carrosse de François Truffaut ou Les Films du Losange de Barbet Schroeder e Eric Rohmer. Mas isso seria ignorar o trabalho de produtores que, no meio da vegetação frequentemente hostil de vários organismos de financiamento cinematográfico e no labirinto do sistema bancário, conseguiram apoiar – para além de qualquer lógica de lucro, felizes por não ficarem eles próprios sem dinheiro – obras singulares e atípicas contra os valores do seu tempo. Obras de autores autênticos que não se deixam levar senão pelas suas convicções, pelas suas obsessões, mas também pelos seus limites e pelas suas fragilidades, matéria-prima do seu trabalho.
É este ecossistema, reformulado vezes sem conta em diferentes culturas e países, mais ou menos dependente de uma legislação favorável ao cinema ou de um mecenato, ou até de nada, que tem mantido vivas a reflexão, a investigação, a ousadia e, antes de mais, uma integridade indispensável à boa prática do cinema.
Vimos crescer a onda do cinema em streaming, vimos o cinema tornar-se uma indústria e essa indústria tornar-se dominante – e hesito em usar as palavras “entorpecedor” ou “alienador”, que, até há pouco tempo, me teriam saído da caneta com toda a naturalidade, sem sequer sentir necessidade de as justificar. No entanto, se noutro tempo se podia sonhar com o cinema como uma utopia, parece-me que ele se tornou perfeitamente distópico e que, em nome do entretenimento ou branqueado pelo conformismo e boas intenções, se dedica essencialmente à perpetuação e à lisonja das emoções mais convencionais e dos desejos mais baixos, se não mesmo insanos. A este respeito, fico bastante satisfeito quando um filme, por falta de preocupação com a natureza, a luz e a humanidade, se abstém pelo menos de ser nocivo.
É por isso que, no fundo, hoje, o cinema deve ser feito contra o cinema. Sobretudo se quiser encarnar, no novo mundo das imagens, aquilo que é mais precioso e mais vital: a liberdade de pensar, de inventar, de procurar, de vaguear e de errar, em suma, de ser o antídoto de que precisamos para preservar a nossa fé e manter viva a chama que nos compete saber proteger e transmitir, geração após geração, numa batalha que nunca está ganha.
© Olivier Assayas
Março – Abril de 2020
Tradução: João Araújo
Agradecemos a autorização concedida pelo website Sabzian para a realização e publicação desta tradução. Nesta ligação podem aceder ao texto original, «Le temps présent du cinéma» (2020), bem como as traduções para outras línguas.