O universo é cruel. De tudo o que há de cruel, há os monstros. Aqui, o monstro não se configura como algo físico, palpável, evidente. Não é um corpo estranho, deformado, desenhado e estruturado à imagem das figuras sobrenaturais que encarnam o fantástico, que vivem na sombra e assombram. Em Kaibutsu (Culpado – Inocente – Monstro, 2023), o novo filme de Hirokazu Kore-eda, o monstro veste a Humanidade e a Humanidade veste o monstro.
Na noite cerrada, ecoam as sirenes dos camiões de bombeiros que apressadamente circulam pela cidade e contra o tempo correm para apagar o incêndio que fustiga um edifício. Da janela do apartamento, Saori e Minato observam o prédio em chamas: ela, mãe, viúva; ele, filho, órfão de pai. Pai, esse, que desde que partiu, “vê” a família a celebrá-lo em vida, mantendo a tradição, como homenagem à sua memória, de lhe cantarem os parabéns e assoprarem as velas, de lhe falarem das memórias que não esquecem, e do presente que, embora vivido na sua ausência, continua. No presente, Minato esconde um segredo que começa a suscitar mudanças comportamentais, motivando preocupações por parte de Saori. Um dia, a mãe encontra pedaços de cabelo do pequeno jovem no chão, no outro depara-se com um par incompleto de sapatos à entrada de casa; um dia, vê-o a chegar com a orelha ferida, no outro, ouve inusitadamente Minato a comparar o seu cérebro ao de um porco, autodenominando-se de “monstro” e acusando o Professor Hori de bullying. Assumindo uma postura protetora, Saori dirige-se à escola, expõe insistentemente os relatos e procura explicações para o sucedido. O resultado? Esbarra no sistema educacional burocrático que recusa responder à sua revolta e aflição.
O universo é cruel, escrevia eu nas linhas que encabeçam este texto. O universo é também multidimensional. É precisamente a partir deste prisma que o argumentista Yuji Sakamoto – que contribuiu para a aclamação do filme com o Prémio do Melhor Argumento do Festival de Cannes de 2023 –, constrói a narrativa de Kaibutsu, adicionando-lhe camadas extra, incentivando o espectador a seguir as encruzilhadas do quebra-cabeças e a encaixar cada peça do puzzle. O que verdadeiramente eleva o mistério e o suspense à expressão “as aparências iludem”, evocando o disruptivo Rashōmon (1950) de Akira Kurosawa.
“Quem é o Monstro?” é a questão que se impõe e que encontra na voz de Minato e Yori o eco e a tensão que atravessam o seu íntimo, funcionando como um jogo, uma adivinha que paira no ar e cuja resposta não vem nunca.
Como que puxando a fita atrás, o cenário inicial do segundo ato do filme revisita a cena de abertura do primeiro: o edifício em chamas. Agora testemunhado por Hori, o incêndio constitui-se como o momento estrutural em que, dali em diante, acedemos ao seu universo, à sua visão sobre a história que envolve Minato. Se na primeira parte somos levados a crer que o monstro é Hori, no segundo a convicção transfere-se para o pequeno jovem, pois através da perspetiva do Professor destruímos, conjuntamente, a ideia deste como vilão e assistimos a um conjunto de eventos que constroem a tese de Minato como agressor, e Yori, seu colega, como vítima.
Mas enquanto universo multiperspetivo, Kore-eda transcende a simplicidade e o díptico, e faz-nos regressar uma vez mais ao fogo que deflagra, para nos introduzir, enfim, a terceira – e reveladora – perspetiva da história: a de Minato. Em Minato, mergulhamos no seu processo de auto-descoberta de identidade e na sua convivência com os padrões morais e sociais edificados, mastigados e cuspidos pela sociedade heteronormativa. Afogamo-nos na amizade entre Minato e Yori, que longe dos olhares dos que os rodeiam expressam inocentemente a ternura e o afeto mútuos, e distantes destes, os reprimem e ocultam. O receio de Minato em ser associado a Yori, alvo de abuso por parte dos colegas e do próprio pai, leva-o a agir de forma paradoxal: corta pedaços do cabelo de forma a assegurar-se de que não está infetado com a doença de Yori, “cérebro de porco”; regressa a casa com apenas um sapato porque o outro ficara no pé de Yori; e arremessa pertences dos colegas como manifestação da frustração e impotência que sente ao presenciar as palavras hediondas dirigidas a Yori, como se também a si fossem direcionadas.
Secretamente, os jovens encontram na carruagem de um comboio abandonado na floresta o refúgio onde se escondem da escola e da família, das crianças e dos adultos, da cidade e do mundo. Duas almas perdidas que se sentem, por fim, livres. Acontece que o mesmo comboio que os abriga, figurativamente, da agitação emocional provocada pelo olhar da sociedade é o mesmo que não resiste ao deslizamento de lama na montanha, e falha em abrigá-los da tempestade. O portão do caminho de ferro, que estava cerrado antes da tragédia, desaparece, e abre caminho à passagem, entenda-se, à idealização do renascimento por parte de Minato, à existência e coexistência de ambos num outro universo em que o preconceito, a aversão e a monstruosidade não têm lugar e espaço para preencher os vazios. Perante o céu etéreo, limpo e iluminado, Minato e Yori correm pelos campos verdejantes – imaginariamente floridos por Yori –, abraçando-nos e desarmando-nos através da ideia da felicidade que é estarmos rodeados de pessoas que nos fazem compreender e sentir que não há nada de errado em sermos exatamente quem somos.
“Quem é o Monstro?” é a questão que se impõe e que encontra na voz de Minato e Yori o eco e a tensão que atravessam o seu íntimo, funcionando como um jogo, uma adivinha que paira no ar e cuja resposta não vem nunca. Não deixa de ser curioso que se a Humanidade incorpora o monstro quando atua como perpetradora, os espetadores ocupam do mesmo modo essa posição, quando, enquanto coletivo que no exercício de visionamento de Kaibutsu, têm a tendência de sentenciar, em diferentes momentos, cada uma das personagens – influenciados e limitados pelo alcance da visão a que têm acesso.
Sensibilidade, subtileza, contemplação e paciência são características caras a Kore-eda que, uma vez mais, coerente à sua filmografia, as emprega na missão do corte e costura, embutindo-as no ambiente violento, impetuoso, hostil e frio – realista e mundano. A montagem que abarca os pormenores, capta os elementos no momento certo e fá-los deslocarem-se como se de peças de xadrez se tratassem, avançando e recuando mediante a construção da ilusão de ótica e da ambiguidade desejadas. Os variados planos longos que nos puxam para dentro do ecrã são muitas vezes acompanhados pelas composições melancólicas de Ryuichi Sakamoto, que coadunam com a beleza das relações humanas, a disfuncionalidade dos laços familiares, a inocência das crianças, o sabor da liberdade e a inevitabilidade da perda. Findas as considerações, apraz-me concluir: “Se apenas algumas pessoas o podem ter, não é felicidade. A felicidade é algo que qualquer pessoa pode ter.”
★★★★☆