Stewart e Cyril Marcus, ginecologistas e gémeos idênticos, foram, de acordo com a New York magazine, “encontrados esqueléticos e já num estado de parcial decomposição no seu apartamento em East Street n.º 63, no meio de lixo e medicamentos. Stewart foi encontrado de rosto voltado para o chão, despido, excepto as meias. Cyril estava apenas de cuecas e de rosto voltado, numa cama de casal. Stewart morrera vários dias antes de Cyril.” O médico legista anunciara a ingestão de barbitúricos como causa de morte. Carol Baum indicou a Cronenberg um livro vagamente baseado no caso – Twins de Bari Wood e Jack Geasland – e cópias de todos os artigos escritos sobre os irmãos.
– Chris Rodley
Cronenberg ouviu falar pela primeira vez dos irmãos Marcus numa pequena descrição no jornal: “médicos gémeos encontrados mortos num apartamento elegante”. Pareceu-lhe uma “história inventada”, “demasiado perfeita”. Nos dias seguintes, foram publicados inúmeros artigos, pois o percurso dos irmãos ginecologistas envolvera práticas médicas questionáveis, o que motivara “ressonâncias nos movimentos feministas”, na sequência da publicação de entrevistas a mulheres que foram suas pacientes. O cineasta pensou que “alguém deveria fazer um filme” sobre os gémeos ginecologistas. Como “ninguém o fez”, ele demorou dez anos até obter condições para o filmar. Uma parte das dificuldades atribuem-se à escrita do guião, pois nem Norman Snider [que colaborara com Cronenberg na escrita de Crimes of The Future (1970)] nem Andy Lewis [que escrevera o guião de Klute (1971)] conseguiram identificar o foco que o cineasta pretendia. O “grotesco e o sensacionalismo” que constituíram os cabeçalhos das notícias não interessavam ao projeto de Cronenberg. Mas Lewis também não se aproximou, pois procurou “desmitificar” os irmãos, libertá-los de qualquer “mitologia”, “espanto” ou “estranheza”: seriam apenas dois irmãos, duas “pessoas normais”, embora gémeos. Para Cronenberg isso falharia completamente o alvo, pois para ele os gémeos vivem “desesperados para tudo partilharem” e isso está evidenciado no filme quando Beverly procura investir na intimidade de uma relação e o irmão Elliot diz que ele não vive nenhuma experiência se o irmão não a viver também: “Tu não a fodes enquanto eu não a foder”. Para o cineasta, os gémeos são “como amantes, que desejam partilhar tudo”.
No entanto, a maior dificuldade foi validar o projecto com os produtores. Nas reuniões perguntavam: “têm mesmo de ser ginecologistas”, “não podem ser advogados”? Nesses encontros, todos se recordavam do caso e ficava claro que “não tinham conseguido tirar a história das suas cabeças”. A recordação era para eles como um estranho “sonho”, donde saíam aquelas criaturas peculiares – os ginecologistas – ainda por cima “gémeos”, “que trabalharam e morreram juntos”. Para Cronenberg o “gancho” era evidente, e “estava engatado nos seus subconscientes”, mas não aceitavam fazer um filme sobre isso, como se houvesse uma barreira que era necessário romper. Os produtores tinham em comum o facto de serem “todos homens”. Apesar das discussões acaloradas em volta de Dead Ringers (Irmãos Inseparáveis, 1988), o assunto não encontrou nas mulheres qualquer “melindre”, trata-se dos “seus corpos”. Nessas reuniões, em que a questão das drogas também parecia um obstáculo ao projecto, era manifesto que a “maior resistência era a ginecologia, a escuridão”; Cronenberg recorda-se de uma frase que despontava sempre nessas reuniões: “é demasiado escuro”.
Esta escuridão, entre a beleza e a repulsa, é um dos temas de Dead Ringers e numa das cenas assume um caracter irónico, como se Cronenberg pretendesse colocar dentro do filme esse historial de avanços e recuos da produção. Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz sem filhos (e infértil) consulta a clínica dos Mantle, onde é examinada à vez pelos gémeos (interpretados por Jeremy Irons). A mulher é trifurcada, uma alteração rara na configuração do útero e se para muitos ela é uma aberração, para eles é uma maravilha da natureza. Elliot, o irmão mais seguro e popular, enquanto a penetra com os instrumentos, soltará um “é fantástico”. Perante a surpresa dela, habituada a reacções depreciativas, o ginecologista diz-lhe que deveriam existir concursos para avaliar a beleza das entranhas, pois os padrões de beleza existentes são redutores, não contemplam o corpo inteiro, por dentro e por fora. Na sequência seguinte, uma mesa de restaurante junta Elliot, Claire e o agente da actriz. A mulher pede para o ginecologista lhe falar do seu útero. O agente dela tosse e engasga-se. Irons responde ao pedido: tem três portas, que conduz a três compartimentos diferentes, o que é raríssimo. Depois, pergunta à mulher se tem problemas com o período. O agente, enquanto se levanta, pede desculpa e diz que tem de sair, está atrasado para outro encontro, explicitando a dificuldade dos homens se acercarem destes assuntos, como os produtores que barravam a aprovação de Dead Ringers. Este diálogo remete para um dos temas de Cronenberg: homens e mulheres como espécies diferentes do reino animal. Aliás, esse tema é lançado na primeira sequência do filme, que Cronenberg estabelece na Toronto dos anos 50, como se estivesse a evidenciar afinidades com a sua infância e juventude. Dois rapazes adolescentes (gémeos idênticos) falam de sexo enquanto caminham. Um deles diz que já descobriu a razão de ser do sexo: é porque os humanos não vivem debaixo de água. Ele explica: os peixes não precisam de sexo, porque põem ovos e fertilizam-nos na água. Os humanos não podem fazer isso. Têm de internalizar a água. Daí terem sexo. O outro pergunta: os humanos fariam sexo se vivessem na água? O outro responde que fariam, mas sem se tocar. Depois, os dois rapazes desafiam uma rapariga de idade aproximada a fazer sexo com eles numa banheira. É uma experiência, dizem eles. Perante a recusa dela, um deles diz: são tão diferentes de nós. É porque não vivemos debaixo de água, responde o outro. Cronenberg explicita, desde logo, como se o filme se tratasse de um documento cientifico, que se propõe falar de sexo e anatomia enquanto espaço laboratorial, na antecâmara de uma das suas experiências de transformação do humano.
Tal como no mais recente Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022), as intervenções clínicas são performances públicas, encontros definitivos entre a arte e a ciência, que aqui surgem nas operações encetadas pelos irmãos ginecologistas.
Da mesma forma que os seus filmes tomam o ponto de vista da doença venérea, Cronenberg diz “não experienciar a repulsa no sexo”. Portanto, tal como os protagonistas de Dead Ringers, ele assume o papel de “cirurgião”, que pretende examinar “a natureza da sexualidade”, desenvolvendo personagens que depois “disseca com os bisturis cinemáticos”. Como enunciou em Crimes of the Future, é necessário procurar a metamorfose das duas variantes da espécie – masculino e feminino – para que possam ambicionar uma fusão, que permitiria outras possibilidades: o sexo transformar-se-ia. Cronenberg foi adiando a escrita do guião, até ter encontrado um conjunto de elementos que para ele eram fundamentais, como a já citada cena de “abertura com os rapazes”, a sequência do sonho (que veremos em detalhe) ou os instrumentos cirúrgicos, verdadeira “pedra de toque” da sua abordagem, que desponta na segunda sequência do filme, estabelecida na Universidade de Cambridge (Massachusetts), onde os gémeos concluem o licenciatura com distinção e afrontando a academia alcançam sucesso na relação com a indústria da medicina, que adopta o “retractor Mantle”, um instrumento que um dos professores de anatomia lhes dissera que poderiam utilizar num cadáver, mas que nunca funcionaria num corpo humano.
O filme apresenta-nos os gémeos num regime de partilha perfeita de funções e aptidões. Elliot, o elemento confiante e cínico, dedica-se à promoção social da relação e do trabalho científico dos Mantle; Beverly, mais sensível e introvertido, é quem assume grande parte das consultas e da investigação. No entanto, essas partilhas também implicam constantes trocas e substituições, no que se refere à intimidade e às dimensões públicas, de socialização. Cedo percebemos que Cronenberg quer explorar a ideia de que estes dois indivíduos são apenas uma entidade, um ser dividido em dois corpos, que poderemos considerar uma transformação introduzida na concepção pela natureza, como uma promoção de uma experiência científica arriscada, com evidente propensão para o erro e para o desastre. Numa parceria entre o realizador e a performance de Irons, é notável como raramente confundimos os dois gémeos. Com recurso a uma ligeira diferença no corte de cabelo, à postura e à forma de andar, muito frequentemente identificamos o carácter de cada um dos irmãos, se estamos perante Elliot ou Beverly. Cronenberg indica que os gémeos questionam o “conceito de livre arbítrio”, da “liberdade de escolha” que resiste “à ideia de destino determinado”. O cineasta apesar de acreditar que a “sua vontade determina a sua própria vida”, os gémeos, não como uma aberração mas como uma peculiaridade da natureza, podem indicar-nos “o poder da genética”, como um municiador de uma predestinação biológica. Portanto, o cineasta propõe-se “olhá-los de perto”, “imaginar um mundo em que os gémeos idênticos são um conceito, como sereias”. Sugere, então que Elliot e Beverly, a sua “evolução”, transformou-os em “criaturas tão exóticas” quanto Seth Brundle em The Fly (A Mosca, 1986). Se a separação entre a mente e o corpo é um dos ingredientes do laboratório de Cronenberg, aqui é intensificado por “um corpo que está separado em duas partes”. E concretiza que os gémeos “costumam adorar” Dead Ringers, por falar deles, por questionar “assuntos de que ninguém aborda”: “é como ver a nossa cidade no ecrã”.
Apesar de os dois gémeos juntos formarem um casal, um todo que se completa, os dois personagens apresentam características masculinas e femininas e por isso para Cronenberg não é concebível que Beverly seja “a mulher do casal”, apesar do nome o parecer indicar. Elliot fez sexo com mais mulheres, mas também garantiu apenas “superficialidade” nessas relações, enquanto Beverly é mais bem sucedido a estabelecer “uma ligação emocional” com o sexo feminino, como acontece com Claire. Mas como Elliot suporta a visão de sucesso imposta pela sociedade (sobre o que é bonito, adequado e correcto), Beverly interioriza as suas características como “uma fraqueza”, que dificulta que o próprio “escute a sua voz”.
Claire será o elemento desestabilizador da parceria. Depois de Elliot partilhar com o irmão os detalhes do sexo com a actriz, incentiva-o a procurá-la, a passar-se por ele. Mas como vimos, Beverly após os primeiros encontros com Claire, investe sentimentalmente na relação, algo que é reforçado pelas particularidades anatómicas da mulher, pela impossibilidade de engravidar, e por uma história de promiscuidades e de abusos, de toma de hormonas e outras drogas. A actriz e Beverly testam a possibilidade de um domicílio conjugal, algo que é explicito na cena em que no sofá ensaiam as linhas de diálogo da série de televisão protagonizada por Claire. Mas, em simultâneo, e desconhecendo ainda a existências dos gémeos, Claire prognostica um problema de identidade em Beverly, algo de esquizofrénico, o que representa um diagnóstico certeiro das vivências dos Mantle, na separação imposta por aqueles dois corpos. A actriz forçará um encontro público com os dois gémeos, onde ficará evidente que pela primeira vez os irmãos disputarão algo, ao invés de o partilharem. Já com a narrativa adiantada, Elliot irá reencontrar Claire e dizer-lhe que ela é um elemento confuso na saga dos Mantle, possivelmente destrutivo. Mais adiante, Claire susterá aos avanços de Elliot que lhe beijara as feridas no rosto, aí colocadas pela maquilhagem. As afinidades entre Claire e os gémeos, também se intensificam pela condição da classificação dela como “mutante” (trifurcada), uma construção singular da natureza que a aproxima de Elliot e Beverly, criaturas maravilhosas e “experimentais”. Será a actriz que ao longo do filme melhor apontará ao espectador as diferenças entre os irmãos.
Os encontros sexuais de Claire e Beverly prolongam enunciados de filmes anteriores do cineasta, em que a ciência surge associada a uma performance, sendo que aqui o sexo é uma possibilidade de acto médico cruzado com uma coreografia que faz uso dos instrumentos clínicos para colocar Claire numa posição peculiar, que aproveita os seus desvios (a sua predilecção pelo masoquismo) e permita penetrá-la, como se o sexo fosse uma exploração clínica, o prolongamento de um exame de ginecologia. O sexo surge também associado à morte. Claire expressará num desses encontros o lamento de não poder ter filhos: quando morrer, morrerá mesmo.
Tal como no mais recente Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022), as intervenções clínicas são performances públicas, encontros definitivos entre a arte e a ciência, que aqui surgem nas operações encetadas pelos irmãos ginecologistas. Cobertos por técnicas vermelhas (com tons de sangue, como uma projecção das entranhas), os gémeos manejam os instrumentos em acções que não encontram tradução no acto médico, mas em algo mais criativo, especulativo. Aliás, Beverly fabricará novos instrumentos, concebidos para as suas mulheres mutantes, que os enfermeiros e assistentes desconhecem e que abrirá a porta para uma “zona”, um lugar de uma mente delirante. Numa clara afinidade com o universo de Burroughs [Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) será o filme seguinte de Cronenberg], Beverly perante a ausência de Claire, a dependência das drogas e o declínio da clínica, entra na tal “zona”, que o leva, então, a fazer esboços dos instrumentos que um artista usa para conceber peças metálicas, estranhos artefactos com que a galeria montará uma exposição, mas que Beverly continuará a defender como instrumentos da ciência, óptima tecnologia que demonstra que os corpos humanos é que estão desajustados.
A primeira sequência em que vemos os irmãos Mantle no apartamento, simetricamente dispostos numa mesa de vidro, parecem devolvidos a um útero e à medida que a narrativa avança essa sensação intensificar-se-á, pois Cronenberg pretendeu encenar aquele espaço como “um aquário”, um casulo para aquelas “estranhas criaturas”, aqueles “peixes exóticos”. Por isso, o apartamento apresenta tons “púrpura e azul marinho”, que se adensam para tonalidades progressivamente crepusculares, que prognosticam a morte. Será, então, no apartamento e na clínica que partilham mulheres, que lhes investigam as entranhas, que as experimentam como uma espécie exótica e por isso um dos irmãos dirá a uma cliente que o único interesse da clinica dos Mantle é a fertilidade das mulheres e por isso não tratam assuntos relacionados com homens, nem com partos. Depois de uma projecção de Dead Ringers um médico perguntou a Cronenberg porque é que se sentiu tão triste ao ver o filme. Os dois concordaram que “o filme não é sobre ginecologia e gémeos”, mas a “destilação” da narrativa leva-nos à “inefável tristeza da existência humana” ao colocar em jogo “mulheres, nascimento, frustração e uma vida não retribuída”. O cineasta aponta a importância da música de Howard Shore, “meticulosamente introduzida e afinada no tom” das sequências e que resulta em algo tão “inefável como as imagens e os sonhos”, uma música “sensorial e comovente”.
Cronenberg entende que Dead Ringers é “perturbador” por assinalar “a evanescência” das nossas vidas e a “vulnerabilidade” do nosso estado mental.
Cronenberg desafia-nos a indicar a presença de um ginecologista num filme. A cena de abertura, um exame ginecológico que para as mulheres é banal, para os homens pode ser “estranho e difícil”, um território desconhecido. Por isso, Dead Ringers, acusado de sexo repugnante e misoginia, é mais um exemplar da sua filmografia que questiona o que pode ou não ser mostrado e o papel da censura e da moralidade. Cronenberg fala-nos das “razões politicas” que procuram estabelecer uma “distinção” clara entre erotismo e pornografia, na asserção de que “o erotismo é terno e gentil”, “a pornografia é nojenta e violenta” e relembra que originalmente pornografia era “escrever sobre prostitutas”, fazer das mulheres personagens das suas histórias. Também as facções feministas intervêm ao apoiar um erotismo, que permita um poder dividido entre homens e mulheres, “sem que um domine o outro”, o que se pode tornar “risível”. Por isso, para ele não é admissível aceitar o “conceito de erotismo na arte”, enquanto se defende “que a pornografia deve ser banida”, até porque o que é considerado “erótico numa sociedade” pode ser conotado como “nojento, pornográfico e anti-religioso noutra”. Assim, ele pensa que quem contrarie “padrões de comportamento e produção de imagens consideradas seguras” poderá obter o rótulo de “pornógrafo”. Exemplifica com uma cena em que uma pessoa está a tomar um duche. O que se mostra depende da nossa experiência, de como o fazemos ou como vimos outros a fazê-lo, mas também como o vimos projectado em outros filmes. É uma “síntese”, que faz uso da “imaginação”, mas não só, pois considera que as suas opções são “parte do seu sistema nervoso”. Ele concretiza com a imagem de um “buraco aberto na sua cabeça que projecte no ecrã o que ele sonha”, revelando assim uma parte dele que “não pode ser expressa de outra forma”. Esse resultado varia naturalmente de pessoa para pessoa, sendo que os seus filmes brotam da “tradição da fantasia e do fantasma”, um fantástico gerado nas trucagens de Meliès, mas que é menos influenciado pela história do cinema do que pela Literatura, de Nabokov e de Burroughs, por exemplo. Debaixo da camada de “profissionalismo, do verniz do artista e do empenho filosófico”, o cineasta diz que desponta a exuberância de criança e considera que fazer um “filme é um acto positivo, um acto de fé”.
Cronenberg entende que Dead Ringers é “perturbador” por assinalar “a evanescência” das nossas vidas e a “vulnerabilidade” do nosso estado mental. Como reitera, a única realidade que conhecemos é a do nosso corpo e isso traduz-se num “medo existencial”, pois os corpos são por “definição efémeros”, o que por consequência aponta a debilidade do “nosso entendimento da realidade”. Por isso, podemos estabelecer uma ligação entre Videodrome (1983), Dead Ringers e Naked Lunch, na afectação do corpo através da televisão ou das drogas, que impele uma “mudança da nossa realidade”, o transporte para a “zona” que especula uma possível “evolução” do humano. O cineasta pretendeu usar a ginecologia como uma “metáfora para a separação entre a mente e o corpo”. E isso inicia-se no filme com a sequência dos rapazes, ainda “crianças”, mas já com ambições “cerebrais e analíticas”: eles querem “compreender a feminilidade de modo clínico através da dissecação e análise, não pela experiência, emoção e intuição”. Segundo Cronenberg, o que torna a ginecologia algo de “repugnante” para os homens é a sua “formalidade”, o recurso à “esterilidade clínica”, o corpo feminino entregue “a um estranho”, muitas vezes um homem, que acede a um “conhecimento íntimo dos órgãos sexuais”, algo que “está normalmente reservado para amantes e maridos”. Apesar de naturalmente suprimirmos a presença de “erotismo” ou de “intimidade” nas funções do ginecologista, não impede que os homens sejam “ciumentos”, pois o clínico tem mais conhecimento (não apenas fisicamente) da sua mulher: “o entendimento do ginecologista de tudo aquilo e do seu funcionamento é maior que o nosso”.
Cronenberg guarda as suas imagens extremas para apenas uma das sequências de Dead Ringers, a do sonho. A comprovar que apenas as usa em caso de necessidade, para algo que não é possível imaginar (e tem de ser mostrado) e para introduzir uma metáfora que elucide a narrativa. Aqui, Beverly sonha que Elliot se introduz na cama dele e de Claire. Inicialmente, Cronenberg mostra-nos o par num enquadramento e Elliot a olhá-los de fora, em contra-campo. Depois junta o trio no plano e mostra-nos os gémeos ligados como siameses, com uma espécie de cordão orgânico. Claire, que foi a primeira mulher que, ao invés de partilharam, passaram a disputar e que ergueu uma barragem entre eles, propõe-se arrancar o cordão que liga os gémeos, numa tentativa metafórica de os separar. Claire trinca o cordão, surge um esgar de prazer no rosto de Beverly e ele acorda. Para Cronenberg esta sequência do sonho era decisiva para dar a ver “a vida interior de Beverly”, era a melhor forma “de o penetrar dramaticamente”, para que acedêssemos, sem o peso dos diálogos e mesmo arriscando uma “abordagem naturalista”, à expressão da “ansiedade” relativa ao irmão, da sua “dependência dele” e o “medo de que pudessem ser separados” por Claire.
Beverly e Claire passam a viver uma espécie de conjugalidade problemática, depois do regresso dela, facilitada pelo uso abundante de drogas, sendo Claire a passadora (a mulher associada ao vício e à mutação), ela que sempre usou abundantemente drogas. Numa “zona” partilhada pelo casal, Beverly mostrar-lhe-á os seus novos instrumentos cirúrgicos, em aço. Claire, numa posição que nos recorda a imutabilidade (e a mutação) da protagonista de The Brood (A Ninhada, 1979), fica fascinada com aqueles artefactos. Beverly, confirmando a importância da mulher no desfecho da saga dos Mantle, informa-a que aqueles instrumentos servem para separar irmãos siameses.
Uma conversa entre os gémeos, em que recordam os irmãos siameses originais (Chang e Eng, ligados pelo peito), antecipa o desfecho da narrativa. Lembras-te como morreram, pergunta Elliot. Chang morreu de ataque cardíaco, a meio da noite. Sempre foi o mais doente. Bebia demais. Quando Eng acordou e viu o irmão morto, morreu de medo, mesmo ali na cama, diz Beverly. Elliot que até então foi a figura do controlo, é arrastado pelo estado de Beverly e uma amiga aponta-lhe que deveria afastar-se do irmão, para salvar a sua reputação na academia, pois é cada vez mais difícil distingui-los (a câmara de Cronenberg concretizará a ideia, ao mostrar os irmãos a caminharem no apartamento como réplicas um do outro). Elliot assinala a separação como uma impossibilidade e responde, então, com o que ele designa por uma observação médica objectiva: o que corre no sangue dele, corre no meu. São irmãos inseparáveis.