1.
Houve coisas que nunca tive, que nunca me chegaram às mãos. Por exemplo: armas. Pistolas, revólveres, espingardas de paintball. Os westerns – ou, mais prosaicamente, os “filmes de cowboys” ou as “cowboyadas” –, ritmados ao som da pólvora, também não eram coisas incentivadas lá em casa (isso e outras coisas: só há pouco tempo vi pela primeira vez Terminator [O Exterminador Implacável, 1984]…). Porque, diziam-me, os “índios” (indígenas, sim, mas por essa altura eu não sonhava quem era Cristóvão Colombo, quanto mais saber do seu equívoco à chegada à América do Norte) eram, contrariamente ao que acontecia nesses filmes, os bons; os maus, os cowboys, aqueles que destruíam selvaticamente as suas terras e as suas famílias. Isto foi num tempo em que o “politicamente correcto” não existia. Ou melhor, existia, mas era uma coisa que a maioria das pessoas nunca conheceu ou de que já se esqueceu: por esses dias, apelidar alguém de “politicamente correcto” representava, na realidade, o contrário do que o termo hoje evoca. Sensatez, diplomacia, ponderação, eis os atributos que caracterizavam uma forma de estar. Quel drôle de chemin se percorreu para chegarmos aqui, hein? Por isso, quando me diziam que eram os “índios” os espezinhados e os cowboys os opressores, não foi com a intenção de me imporem uma visão absoluta e omnisciente do mundo, de homogeneizarem os “brancos” e, qual reductio ad abstractum, terraplaná-los sob o denominador comum do Mal. Tentavam, apenas, alertar-me para a existência de outras realidades, outras leituras, outras visões. Para a existência do Outro.
E, porém…
Vim a perceber muito, muito mais tarde que, na realidade, muitos westerns já “sabiam” disto tudo e que eram bem mais complexos do que quem me criou pensava (tal como a saga Rambo me fora vedada sem saberem que o primeiro tomo, que só vi já com as primeiras brancas a despontarem, é, na verdade, um extraordinário filme anti-guerra e anti-América). Que muitos deles eram, na verdade, denunciadores, e não apregoadores, da violência e do horror cometidos sobre os nobres e belos “peles vermelhas”. Em qualquer caso, antes disso, os “índios” já se haviam tornado um dos meus heróis de infância, com quem convivia à noite nas leituras da colecção Outras Gentes (Edinter) e aprendia sobre o dia-a-dia dos Mandan, povo da tribo dos Sioux. Com certeza que, lida à luz de hoje – ou melhor, fotografada, partilhada e “printada” nas redes sociais, porque ninguém lê nada, claro –, a colecção seria vista ora como “politicamente correcta” pelos reaccionários habituais, ora como “eurocêntrica” e “cis-hetero-patriarcal” pela intelligentsia moralista de serviço. Enfim, o que dizer? Que se trata de livros belíssimos, de um grande humanismo e uma desmedida admiração e curiosidade pelo que ainda não conhecemos. Grande parte da minha educação ética (política) começou nesses livros. Jamais me deixaram.
2.
Houve coisas que nunca tive, que nunca me chegaram às mãos. Por exemplo: certas fantasias de Carnaval. Polícia, Rambo, Action Man (!) ou… Cowboy (Ah!, a palavra “fantasia” e as suas ressonâncias psicanalíticas com “figuras de autoridade”…). As minhas fantasias, contudo, eram outras, directamente em linha com os meus também outros heróis. Respondiam pelo nome das personagens de alguns dos meus filmes e desenhos animados favoritos: Peter Pan, Inspector Gadjet, mais tarde o Jim Carrey de The Mask (A Máscara, 1994) – o melhor fato, amarelíssimo, da escola nesse ano, importa dizer o óbvio! Mas, acima de todos, Robin dos Bosques. E, logo a seguir, Charlot (que só muitos anos mais tarde viria a conhecer como “Tramp”). De ambos fui fantasiado, bem orgulhoso da minha diferença, em mais do que um Carnaval.
Robin dos Bosques não é apenas o meu filme favorito da Disney (versão brasileira, claro, embora aqui incompleta) e aquele cuja fita do VHS mais desgastada subsiste nas prateleiras de casa da minha Mãe. É um dos meus filmes predilectos, ponto, ao lado de Le Mépris (1963), My Darling Clementine (1946), La Notte (1961) ou Fitzcarraldo (1982). Não perderei tempo a tentar descrever as emoções que me assaltaram (mal o assobio do genérico e o Technicolor irrompem…) quando agora o revisitei, pela primeira vez em vinte ou vinte e cinco anos. Mesmo que quisesse, não o saberia fazer. Melhor assim.
Mulher (imagine-se hoje a reacção da brigada do woke-reumático quando Robin e João Pequeno escondem as moedas nos seios!), cigana (!!), vidente, cego, pedinte, cegonha, abutre: Robin é um herói de muitas faces (e que mulher bonita é Robin travestido de mulher cigana!), tantas as que se mostrem necessárias na luta pelos pobres e desafortunados. Um charmoso prestidigitador de nobres maneiras, um gentleman magnânimo e justo que desafia o poder cruel e egomaníaco do usurpador Príncipe João (a quem a coroa foge sempre da cabeça, pois é demasiado pequeno para ela…). O qual veremos, perto do final, qual Nero (esse que mandou liquidar a própria mãe), num castelo devorado pelas chamas (e tantas vezes se refere ele, polegar a servir de chupeta, à “mãezinha”, amargamente a criticando por ela gostar mais do irmão Ricardo…). Já aqui escrevi sobre as mãos (mas que dizer dos olhos…?) de Robin Hood e Lady Marianne numa das mais belas cenas da história do cinema; faltou dizer, todavia, que ninguém me tira da cabeça que à caminhada do casal de miúdos no Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994), de Kiarostami, não é alheio o passeio na Floresta (encantada) de Nottingham…
As mais memoráveis façanhas de Robin acontecem sensivelmente no início e no final do filme, e têm o saque ao opressor como denominador comum. Na primeira, Robin, armado de uma bola de cristal e fazendo-se passar por vidente junto do Príncipe João, rouba-lhe os anéis (chupando-os enquanto lhe beija as mãos) e o dinheiro que transporta consigo. Na segunda, introduz-se pela calada da noite no quarto do tirano (que ronca profundamente) e, através de uma frágil corda, faz passar vários sacos de moedas para o pátio do castelo onde se encontra João Pequeno. É uma cena extraordinária, de um suspense inaudito, e que me deixava invariavelmente no maior dos nervos.
3.
Deixamos os heróis do povo, mas nem por isso o povo, no caso, dois grandes e taralhocos amigos (só amigos? partilham tecto e leito, vestem-se de drag, chegam mesmo a casar…). Que, afinal de contas, também terão direito aos seus cinco minutos de heroísmo, mesmo se involuntariamente… Eis Laurel & Hardy, isto é, Bucha e Estica (chegará o dia em que a tradução portuguesa será censurada em nome dos mais altos valores morais), como operários de uma fábrica de buzinas em Saps at Sea (Marinheiros à Força, 1940) – brincadeira com Souls at Sea (Almas em Perigo, 1937) cujos fortes e determinados protagonistas interpretados por Gary Cooper e George Raft estão nos antípodas dos nossos desastrados de bom coração… Era o filme que mais me fazia rir na meninice e cujo peculiar esparguete das últimas cenas, confeccionado com a corda de um barco (muito, muito al dente…), permanece como uma estranhíssima imagem de infância (desde logo porque, mesmo sabendo do seu ingrediente secreto, ele me parecia sempre… saboroso).
A polissemia desta horn factory (“horn” também significa um instrumento musical de sopro: trompete, trombone, saxofone, etc.) responsável pelo colapso nervoso (hoje chamar-lhe-iam burnout) de Bucha não é por acaso. Saps at Sea (“saps” como “idiotas”) constrói-se, todo ele, em torno do Som, inclusivamente, como veremos, daquele que está no fora-de-campo. Buzinas, telefones, carros, campainhas domésticas, música e muitas, muitas explosões (como em Jerry Lewis e em Tati), tudo é matéria sonora altamente perturbadora para Bucha (ao mínimo barulho, fica transtornado!), que recebe baixa da fábrica (onde antes o víramos a trabalhar com Estica numa cena reminiscente do Chaplin de Modern Times [Tempos Modernos, 1936]) e é aconselhado pelo médico a passar uns tempos de sossego próximo do mar (“Hornphobia” é o diagnóstico!).
O Som é, na realidade, ponto de partida para um olhar humorístico e irónico muito mais vasto. Desde logo, o som da indústria fabril e das buzinas dos carros e o seu efeito caótico na vida da cidade e daqueles que a habitam (“poluição sonora”, como hoje se diz), levando-as mesmo à loucura – o filme de Gordon Douglas abre com um trabalhador da fábrica a ser levado de maca para a ambulância e um polícia a lamentar-se por ser o quarto naquela semana… Eis o som da grande urbe moderna (abafado que foi o do chilrear dos pássaros, do vento ou das cigarras), ou, por outras palavras, a “Sinfonia de Uma Grande Barulheira” – o som que faltava à Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (Sinfonia de Uma Capital, 1927) de Ruttman.
Paralelamente, uma bicada ao som – ao histrionismo – do cinema… sonoro, por contraposição à subtileza e expressividade do mudo, de onde, aliás, Laurel & Hardy originalmente vieram (o seu primeiro registo sonoro data de Unaccustomed As We Are, curta de 1929). Tal como, em City Lights (Luzes da Cidade, 1931) que Chaplin arriscou temerariamente fazer quatro anos depois da inauguração do som com The Jazz Singer (1927), Chaplin iniciava o filme como um falso talkie, numa dupla crítica às então deficiências técnicas do sonoro, mas, sobretudo, à “desnecessidade” do som, mormente dos diálogos, em cinema. Daí que não se compreenda o que as personagens (políticos que inauguram uma escultura pública e professam as habituais palavras da praxe) dizem nessa cena inaugural – “Para quê, se podemos ter outro tipo de expressão com o mudo? O que as personagens dizem não interessa! Olhem para o seu rosto! Para os seus gestos!”.
Mas não só. Numa altura (início da década de 40, justamente a data de realização de Saps at Sea) em que o jazz conhecia uma profunda revolução com o surgimento do bebop (que, tal como o jazz dos primórdios de Nova Orleães, foi inicialmente visto como música rudimentar e degenerada, “lixo sonoro”), a polifonia da cidade é também uma rábula a essa nova forma musical rebelde, nervosa, enfim, “barulhenta” – e quem foi senão o horn (o trompete, o sax de Charlie Parker) o porta-estandarte do bebop?… A cidade está ruidosa, a música também (o director da fábrica insiste com Bucha e Estica para que produzam o som em “G minor”!). As pessoas estão surdas e ninguém ouve ninguém – eis a condição do Homem moderno, esse ser neurótico, ansioso, enfim, “stressado”. Ao ponto de nele se incluir o próprio espectador, para quem a experiência de ver o filme, com múltiplos efeitos sonoros puxados a um volume anormalmente alto, se mostra incómoda e stressante.
Paradoxalmente, à medida que o som tudo invade, aparecem como cogumelos os avisos e placas de “Quiet Please” (há um na própria fábrica das buzinas que reza assim: “Silence while men are working”!). Ou seja, e resumindo: Saps at Sea, no seu despretensiosismo e humor (daquele que faz falta hoje: pontapés no rabo e explosões!), revela-se um fino observador do seu tempo e da idade moderna, um tipo de atributo que um dia já foi a regra em filmes saídos dos estúdios americanos, mas que hoje é como tentar encontrar uma agulha no palheiro.
Ninguém lhes pediu nada, mas Bucha e Estica vão, involuntariamente, salvar o dia. Quando finalmente se preparam para passar uns dias de descanso num barco, eis que um terrível criminoso procurado pela polícia (com uma fácies saída directamente de um noir da época) se intromete no prometido repouso. E, também aí, o Som, sempre ele, se mostra decisivo: depois de um dia de tormenta em que o terrível foragido os obriga a prepararem-lhe o famoso spaghetti (para depois, descoberto o engodo, os forçar a comê-lo), Estica, arguto, lembra-se de tocar o trombone.. Ao ouvi-lo, Bucha, completamente transtornado, bate súbita e furiosamente no vilão, ajudando assim a polícia à sua captura. Um herói “à beira de um ataque de nervos”? Heroes at Sea assenta-lhes melhor…
4.
Chaplin dizia ser Luzes da Cidade o seu melhor filme. Manoel de Oliveira assinou por baixo. Também ele um filme de “super-heróis” (mas porquê “super”? Como se as qualidades humanas não bastassem…) no qual Charlot salva um milionário do suicídio e uma rapariga da pobreza e da… cegueira. Em vez de um herói “de capa e espada”, um de chapéu e bengala. E, porém, continua a ser The Circus (O Circo, 1928), na infância como hoje, o meu Chaplin predilecto. Nele, a personagem do Tramp, anti-herói por excelência, começa e termina o filme sozinho, nessa solidão e anonimato se resumindo o percurso de todos os homens bons de que a História nunca rezará. Aliás, é curiosa a curva ascendente (optimista?) que entre os dois filmes se estabelece: se, em O Circo, de 1928, Chaplin começa e termina o filme sozinho, sem a rapariga, três anos depois, em Luzes da Cidade, o toque (e não a voz, o som) das mãos da rapariga cega nas suas permitirá o reencontro mágico – e o mais comovente sorriso alguma vez apanhado em filme. E, porém, o nosso herói não é, graças a Deus, perfeito (perfeitos são os hipócritas, não os heróis). Depois de comer o gelado a uma criança, aceita ficar com uma carteira recheada de dinheiro que não lhe pertence. Nada que a sua formidável fuga e dissimulação da polícia não desculpem, claro…
São muitos os que serão salvos por Charlot, e nem estamos a contar com o espectador. Desde logo, o próprio Circo. Ninguém se ri dos palhaços, boceja-se sem vergonha, os bilhetes não vendem e o risco de fechar as portas está à porta. No espírito da velha escola de que não tentar ser engraçado é o melhor caminho para se ter graça (algo da ordem do alienígena para os ditos “humoristas” da geração das redes sociais), o circo vem abaixo de tanto rir com as acções espontâneas e desastradas deste nobody que não usa nariz de batata nem sapatos maiores do que o seu número. Sim, a vida (a naturalidade, a espontaneidade) é muito mais engraçada do que a representação e o artifício. O erro, o falhanço, o imprevisto, em vez do calculado e do manipulado (quando o obrigam a ensaiar os números tradicionais de palhaço, Charlot mostra-se incapaz). E, sem prejuízo do statement sobre o que é isso de fazer humor (não é da natureza dos heróis alumiar-nos sobre o fundamental?), convém não esquecer que os palhaços foram, antes da televisão, do cinema e da internet, grandes heróis populares, aqueles que, nas cidades e em lugarejos onde Judas perdeu as botas (como aqueles pelos quais a companhia de circo do Yo Yo [1965] de Pierre Étaix vai passando), salvaram, com a sua candura, muitos da amargura e do cinzentismo dos dias (nomeadamente, os mais desfavorecidos), aqueles que, em muitos momentos, deram aos miúdos aquilo que os pais não conseguiam dar.
Mas ainda antes de injectar nova vida ao circo, já Charlot iniciara, sem o saber, as manobras de salvamento de Merna, a filha do autoritário e cruel dono do espectáculo. Um “pai tirano” que a sujeita à violência e à fome, atenuada por Charlot no momento em que a conhece e divide, qual milagre da multiplicação, o seu pão a meias (os heróis e o seu património crístico). Mais tarde, quando Merna lhe diz que é ele a estrela do circo, que a si se devem as casas cheias, Charlot, lumpemproletário por excelência, toma, finalmente, “consciência de classe” – classe de Herói, claro – e, fazendo a “revolução”, exige um aumento e que Merna seja bem tratada pelo pai.
Charlot irá, porém, mais fundo. À essência dos heróis. Que não é a força nem a perfeição, antes a magnanimidade, a capacidade de sacrifício, o despojamento ao serviço dos outros. O matar do ego. Apaixonado por Merna (a quem chega a comprar um anel de noivado), sabe desde cedo que esta não o ama, mas ao trapezista seu rival (e seu perfeito oposto: jovem, musculado, impecavelmente vestido). Depois de Charlot ser expulso do circo, Merna foge do pai e pede-lhe para a levar consigo. Um homem comum jamais rejeitaria esta hipótese caída do céu de ficar finalmente com a amada; um herói iria falar com o trapezista para lhe contar que a amada de ambos fugiu, mas que, se casarem, ela poderá voltar e serem felizes juntos. Sim, um herói iria inclusivamente casá-los ao cartório e, depois, levá-los ao pai dela e selar, assim, a libertação do jugo parental…
5.
É hora de abalar. Todos partem. Entre o homem do início e o do final do filme, o que vimos foi uma breve suspensão do tempo. Um sonho fugidio, lindo, que, como na canção, alguém nos lembrou… O circo é desmontado e faz-se ao caminho; Charlot também, mas não vão juntos. Solitário (como todos os heróis por debaixo da capa, ou da bengala e do chapéu) e sem a rapariga, mas com a decência, a rectidão, a justiça. O humanismo. Estes valores, ao contrário do circo, não são nómadas. Não vêm e voltam; não se praticam à segunda-feira e dispensam-se à sexta; não se negoceiam. Era também assim nos westerns.