I have a head for business and a body for sin. Is there anything wrong with that?
– Tess McGill (Melanie Griffith) em Working Girl (Um Mulher de Sucesso, 1988), de Mike Nichols
Houve uma época do cinema em que uma mulher podia ser CEO de uma fábrica de automóveis de Detroit, dedicar-se inteiramente ao trabalho (workaholic, mesmo), ter encontros sexuais fortuitos e entediar-se com homens demasiado melosos e apaixonados, descartando-os rapidamente com um bónus extra e um bilhete só de ida para Montreal. E esse filme até podia ter sido realizado por Michael Curtiz (ainda que com ajuda substancial de William Dieterle e William A. Wellman, não creditados), o realizador de másculos filmes de Errol Flynn e de histórias de romantismo exacerbado como Casablanca (1942).
As women on top (da hierarquia empresarial, claro está) povoaram muito do cinema do período 1930-34, os anos que antecederam a plena aplicação do Motion Picture Production Code (o infame “Código Hays”), e tinham algo em comum: pouca disponibilidade para verter lágrimas. Elas estavam demasiado ocupadas em levar avante os seus intentos, sejam eles ascender socialmente, conquistar independência ou mostrar aos homens que também sabem jogar o seu jogo. E o cinema admitia que elas tivessem filhos fora do casamento, fizessem abortos, tivessem amantes (um ou muitos) sendo ou não celibatárias, e até, espante-se, trabalhassem (sem ter de abdicar disso porque um homem o pediu e sem sentirem peso na consciência por estarem a roubar um emprego a um pai de família em plena Depressão).
Jim mostra-se algo “primitivo” na forma convencional como vê os papéis de homem e mulher, na forma como não aceita ser ele o seduzido e não o sedutor (sendo incapaz de levar o engate até ao fim, quando Alison se oferece para o acompanhar a casa no final da noite).
Seria com a aplicação do Código que as mulheres assumiriam penteados e ombros hirtos, e nessas armaduras acabavam, paradoxalmente, por perder poder (com mais lágrimas, delas e nossas). As mulheres pre-code eram feministas que nem precisavam de queimar sutiãs, porque não os usavam (os corpos livres de grandes estrelas como Jean Harlow, Norma Shearer ou Kay Francis). O poder que as mulheres irão ser capazes de recuperar no mundo empresarial bem mais tarde, já na década de 80, era sinalizado por um fato que se assemelhava ao da década de 40, com os seus chumaços predominantes, ao qual se associavam as sapatilhas com que essas mulheres calcorreavam os passeios de Nova Iorque. Essa seria a era das super-mulheres, em filmes como Working Girl (Uma Mulher de Sucesso, 1988) ou Baby Boom (Quem Chamou a Cegonha, 1987).
Mas nem essas super-mulheres conseguiam recuperar muita da liberdade das mulheres pre-code, a forma como Alison Drake (Ruth Catterton) vive exclusivamente focada na sua carreira, sem paciência para relações amorosas e os sentimentos intrincados que vêm com elas. Sexo, sim, mas sem apegos ou lamechices. E o sexo nem sequer existe aqui como noutros filmes do período pre-code, como estratégia para a ascensão social [com exemplo máximo em Baby Face (A Mulher que Nos Perde, 1933)]. Para Alison, trata-se apenas de uma entrega terapêutica ao desejo e à sensualidade, uma forma de descomprimir das longas horas de trabalho, tensão, ansiedade e cansaço. É todo um modus operandi bem apurado: um convite para jantar (para “debater questões de trabalho”, como é óbvio), uma conversa que passa da mesa para o sofá e do sofá para a almofada junto do fogão de sala, um copo de vodka para descontrair (o objecto do desejo, não a predadora).
“– Aren’t you ever going to marry?
– No thanks, not me. You know, a long time ago I decided to travel the same open road that men travel. So, I treat men exactly the way they’ve always treated women.”
Há uma honestidade especial na forma como ela abre o jogo desde cedo, não perdendo tempo a procurar destrinçar sentimentos puros de jogadas oportunistas (sim, porque o homem gold digger também existe). Uma coisa é certa: para Alison, sexo e poder estão interligados, e Female (1933) não perde a oportunidade de lhe dar razão – até o pobre subalterno Pettigrew (Ferdinand Gottschalk) aproveita para lançar a asa sobre a nova mulher secretária, não perdendo tempo para fazer valer a sua hierarquia numa escalar menor. Sendo certo que estes homens que passam pelo salão de Alison não são um verdadeiro desafio, cada um deles comportando-se da mesma forma que o seu antecessor. Por isso, como seria de esperar, o desconcerto de Alison apenas acontecerá quando ela encontrar um jogador à altura que não se revele presa fácil. “Gentle and feminine, eh? So that’s what they want. Well, we strive to please.”
Esta mulher, ainda que muito female, não mostra grande interesse por ocupações de uma lady of leisure, o que fica claro na forma como recebe a sua amiga – com toda a cortesia, mas com algum enfado, pela necessidade de dispensar o seu tempo a ocupações fúteis. O que a apaixona mesmo é o negócio herdado do pai, dirigir a produção de novos automóveis. O seu poder de sedução como mulher, quando assente nas armas típicas de uma mulher (como o vestido de noite cortado até ao fundo das costas), apenas se justifica como meio rápido para atingir um fim. Na cena de sedução com Jim Thorne (George Brent), quando brincam e partilham hamburgers, ela seduz da mesma forma que um homem poderia seduzir, envergando um fato discreto, nada revelador, e conquistando pela conversa e pela cumplicidade (o que é corroborado pelas prostitutas que a provocam e dizem haver algo de errado com a “técnica” dela, quando Jim recusa que ela o acompanhe a casa).
Ruth Chatterton, como tantas outras actrizes que reinaram neste período do pre-code, traz consigo para o filme uma aura muito pessoal. Assim, não podemos evitar sorrir quando Jim deixa claro que não está interessado em sexo casual, comportando-se como uma virgem ofendida, sabendo que Ruth Chatterton e George Brent eram casados na vida real (o estúdio terá certamente procurado tirar proveito publicitário deste matrimónio que era ainda recente). Por outro lado, é igualmente possível descortinar uma dimensão de heroína pre-code na vida da própria Ruth Chatterton, ela que era também piloto de aviões e que atravessou várias vezes os EUA de costa a costa, mantendo uma amizade estreita com Amelia Earhart. Sim, é possível acreditar que Chatterton tivesse a garra suficiente para dirigir uma fábrica de automóveis e vingar num mundo de homens. Talvez Chatterton tenha, por isso, considerado a vida de Hollywood pouco estimulante, chegando ao cinema tardiamente e deixando-o ao fim de poucos anos [a sua maior marca seria porventura em Dodsworth (Veneno Europeu, 1936), de William Wyler], para se afirmar ainda como uma romancista de sucesso.
Alison é, como Chatterton, uma mulher de paixões, mas que não passam necessariamente pelo sexo oposto. Como ela deixa claro ao responder à amiga que se espanta por ela se entregar ao trabalho de forma tão arreigada:
“– Necessity. Because when father died, I was the only one who knew anything about it. Now here I am. I can’t let go. It’s like holding a tiger by the tail. Oh, but I love it. It’s the battling and the excitement. I don’t think I could do without it now.
– But you’re missing so much, Alison. The real things, the…
– You mean men?
– Yes.
– Oh, I see lots of men.”
Qual a resolução possível deste manifesto feminista? E para quê uma resolução, na verdade? Num filme do pós-código, a conclusão é fácil de antever: Alison abandonaria o trabalho na fábrica, para passar o tempo em casa, ter filhos, ir a salões de beleza, jogar bridge e organizar jantares e festas, o que estaria alinhado com a descrição que Pettigrew faz de Jim – “A man of Jim Thorne’s type, for example, wants a woman who’ll look up to him. Gentle. Feminine. Someone he can protect. That’s because Jim Thorne is strong and – rather primitive, perhaps. The dominant male, my dear.”
Mas o que se passa em Female é algo de substancialmente diferente, sob uma capa de convenção. Sim, Jim mostra-se algo “primitivo” na forma convencional como vê os papéis de homem e mulher, na forma como não aceita ser ele o seduzido e não o sedutor (sendo incapaz de levar o engate até ao fim, quando Alison se oferece para o acompanhar a casa no final da noite). Mas, quase in extremis, Jim acaba por se revelar um correspondente masculino à altura de uma heroína pre-code. Da parte de Alison há uma rendição não muito credível, que passaria, efectivamente, por abdicar da sua carreira em nome do amor a Jim. Deixar a fábrica definitivamente, ficar em casa e ter nove filhos – Jim acredita nisso tanto quanto ela ou tanto quanto nós. Ele vê o absurdo da abdicação de Alison e reconhece que ela seria incapaz de abandonar a sua carreira e o trabalho na fábrica, que isso é parte daquilo que ela é. O que ele oferece é juntar as suas forças às dela para salvar a fábrica de outras mãos – aliados no trabalho e nas “ocupações pós-laborais”. E este é o momento para nos apercebermos de algo que esteve sempre ali debaixo dos nossos olhos, o peculiar romantismo no acto de produzir automóveis, que eram, nestas suas primeiras décadas de vida, sinónimo de conquista de um espaço de privacidade para tantos casais apaixonados, perdidos um no outro, longe de olhares e comentários indiscretos. Assim vemos o casal Alison e Jim uma última vez, juntos num carro, em direcção ao futuro.