Working out what we want is a life’s work,
and it has to be done over and over and over.
Katherine Angel, Tomorrow Sex Will Be Good Again: Women and Desire in the Age of Consent (2021)
A primeira longa-metragem da britânica Molly Manning Walker, fenómeno compreensível desde a sua presença no festival de Cannes o ano passado, onde arrecadou o prémio da secção Un Certain Regard, é um cavalo de Tróia. À primeira menção ou imagem, é fácil encaixotá-lo enquanto mais um nugget do cinema realista britânico. O vernáculo casual entre três amigas de 16 anos, Tara, Skye e Em, que falam entre si dentro de um carro nos momentos iniciais embrulha, desde logo, o filme numa história sobre o ritual-de-passagem britânico, mais invasivo do que antropológico, que ocorre nos países da Europa do sul todos os anos no início do verão, neste caso no resort que é Malia, na Grécia, encabeçado por adolescentes ingleses da classe trabalhadora que, após os seus exames de final do ensino secundário (também chamados de A-Levels), partem numa semana de “carnificina”. Neste caso, a semana onde Tara terá a oportunidade de perder a virgindade, a única coisa que aos olhos das amigas a distancia delas (“If you don’t get laid on this holiday, then you never will.”). Nada mais importa. E o percorrer vazio de estereótipos da personalidade de cada uma das raparigas que o diga. Não existe mais nada.

Semelhante aos passos caminhados pela americana Eliza Hittman, com a sua também primeira longa-metragem It Felt Like Love (2013) – filme que se conduz a este de Walker como um primeiro suave acto – How to Have Sex (How to Have Sex – A Primeira Vez, 2023), lenta mas forçosamente, conquista uma dupla face. E o que traz de documentarista ganha em literário e depois parte o coração, cobrindo-se pela sombra do horror solarengo de tudo o que é compulsivo e impulsivo e nos junta (e separa) uns aos outros. Walker quer não só pensar no que fazemos e como o fazemos, mas porque é que o continuamos a fazer. Não é coincidência que a trama se dê na Grécia, porque esta tragédia é, de facto, clássica.
Dito isto, este filme não é sobre o primeiro acto sexual, propriamente, mas como a violência que o pode circundar se torna rito de passagem. É também sobre como a sociedade tem vindo, durante demasiado tempo, a encabeçar a experiência sexual enquanto um acto meramente biológico, onde o consentimento não é para ali chamado e onde a vulnerabilidade que o compõe é até vilificada, alvo de escárnio. Já para não falar também do peso que é colocado nas primeiras experiências enquanto os movimentos arrítmicos a alcançar, ou melhor, a ultrapassar, durante o crescer-da-idade. Um diálogo entre Tara e Skye evidencia o problema:
“- I wasn’t going to call you out, obviously.
– Yeah, sure!
– No one cares if you’re a virgin, it’s very chill.
– So, why are you bringing it up, then?
– ‘Cause it’s funny.
– It’s not funny. Skye, it’s not funny.”
How to Have Sex alinha-se mais rapidamente aos textos analítico-sociológicos de Katherine Angel e Mark Greif sobre sexo, auto-descoberta e consentimento nos tempos do #MeToo do que aos casos isolados e condenáveis de abuso sexual. O facto de que poderá haver uma abertura para discutir o que Walker não nos conta, mas mostra, é razão para forçar a ferocidade de que Walker se aproxima, ainda que com subtileza.
Quando finalmente o abuso acontece, da pior forma possível, é importante compreender de onde vem aquele “yeah” que sai da boca de Tara, numa mistura entre o que esta pensa ser a desordem da paixão com o facto de que esta só queria ser olhada e desejada pelo rapaz que talvez, só talvez, depois daquilo, se sinta confortável em a cortejar. Carinho não é para aqui chamado. Tara não sabe ainda que está sob controlo da sua vida. Tal como escrevia Jessica Kiang para o Los Angeles Times: “Mas mesmo se Tara se tivesse apercebido de como o seu ‘yeah’ foi gerado por 16 anos de imersão numa cultura que fala incessantemente sobre sexo sem nunca dizer algo útil sobre ele, a sociedade é um alvo demasiado grande para usar enquanto bode expiatório, então claro que ela acaba a culpar-se (…)”.
O simples facto de que descomprimir exige a exaustão de binge-drinking prova como esta prática da adolescência, e do mundo desta, é algo que se tolera ou supera; nela não existe alívio.
A pista está no título: como fazer sexo. E tudo toma a forma de um terrível mal-entendido. Mas não o é. É abuso. Os formatos dos movimentos que aproximam duas pessoas ao acto sexual durante a adolescência, feral e inconsequente, sim, traduzem-se em olhares que douram a experiência com pedidos de ajuda inaudíveis. Para traduzir a universalidade da experiência sexual, a mesma que derrota classe e cultura, o filme enche-se de olhares literais que nos mostram o antes, o durante e o depois, e falam pelo todo indizível, por este monstro de dez olhos no decorrer de imagens tão vívidas e electrizadas (ou não fosse o background profissional de Walker em direcção de fotografia) que não têm como não ganhar uma textura plástica, a das coisas baratas e unidimensionais. É aí então que, num tornado de sequências handheld e zooms tão lentos que são quase imperceptíveis à primeira vista enquanto linguagem fílmica relevante (a comparação a um animal selvagem que planeia o seu ataque não é descabida), How to Have Sex aproxima-se, de forma arrastada, do curto circuito das nossas maneiras, sem haver perigo na abordagem de Walker em chegarmos até lá.

Daí o cavalo de Tróia, invisível para quase todos. Especialmente para o espectador. Mesmo sendo a experiência sexual abusiva mais universal do que rara, devido em grande parte à objectificação dos corpos femininos dentro e fora dos espaços públicos e privados, nenhuma jovem adulta a espera. Há muitas camadas, umas mais marginais do que outras, para desvendar um filme que se contrói num enrolar infinito de noites embriagadas, sinalizadas por néones e jogos de espelhos, e uma quantidade invisível de copos de shot, a maquilhagem que derrete a meio da noite, os saltos impossivelmente altos, vestidos de nylon fluorescentes, e as ressacas que nunca são curadas e emergem durante o despertar a meio do dia dentro de uma casa arrendada cheia de corpos suados e a cheirar a comida de plástico expirada. Em frente à piscina ou à praia estarão os corpos adormecidos e nauseados, conduzidos pela miopia da cultura sexual e da pressão social que a enreda, os mesmos que umas horas depois estarão a exercer o mesmo movimento. O simples facto de que descomprimir exige a exaustão de binge-drinking prova como esta prática da adolescência, e do mundo desta, é algo que se tolera ou supera; nela não existe alívio.
Aliado a isto, o filme empenha-se moralmente nas invasões, ora geográfica e imposta por aquele grupo de pessoas que os nossos olhos seguem, ora física e emocional, e que condicionará a própria noção de futuro de Tara. Conduzido pela intensa mas controlada performance de Mia McKenna-Bruce, tão à flor da pele quanto possível e sempre numa luta interior consigo mesma – vemo-la a debater-se constantemente entre o que é perceptível e que é realmente sentido -, um olhar entre Tara e um rapaz que a tenta proteger na partilha silenciada dos dois, ambos incapazes de verbalizar o abuso de poder, porque não têm enraizada neles a linguagem a articular, expande as margens do filme de planos que rimam para planos que se desencontram pois andam de mãos dadas com o trauma. Dizia o brilhante Mark Greif em Against Everything (2016), antologia de ensaios, escritos e publicados originalmente na N+1: “(…) estamos a testemunhar a sexualização do processo da vida em si, no qual o prazer é canalizado no prazer sexual, e a função da carne quente e habitável em qualquer formato está ali para nos dar acesso ao auto-erotismo através do circuito do outro”. Nesse sentido, a experiência de How to Have Sex passa de feminina a universal, e lembra como ambos os géneros, de formas diferentes, se deparam com o conceito da necessidade da auto-descoberta, onde a exploração sexual é só um pedaço do todo.


How to Have Sex é memorável pela forma como explora esta ligação ao outro para chegar ao Eu, e o abuso dessa conduta. Mostra também o momento em que o Eu começa a ser ou deixa de ser propriedade de outrem. Afinal, esta é a compreensão conquistada com o próprio corpo. Walker não nos diz como evitar este passo, este estripar, mas salienta a sua paisagem interna numa tentativa para esse efeito. Há o mergulho, a angústia, a continuação da violação, a inscrição do acontecimento e o voltar ao corpo, a uma “nova novidade” após os distúrbios das primeiras vezes, após a interrupção do que foi idealizado. Uma questão permanecerá: como parar o que só assim vem a fazer parte da fractura que dá pulmões ao crescimento, ou seja, à capacidade de alguém de se adaptar ao desequilíbrio? Tara só precisa de saber quem é primeiro, antes de mais, antes de tudo o resto. E partir daí. Sobre isto, relembro-me das vibrantes palavras de Nick Pinkerton para a Art Forum sobre It Feels Like Love há tantos anos: “o ethos continua a ser o facto de que para o cinema ser para todos, tem primeiro de ser para alguém”.
★★★☆☆