Escrever sobre o mais recente filme de Philippe Garrel, um pequeno encanto numa primeira visualização, capaz de expansão numa segunda ou terceira, é reflectir sobre a imparável força da obra, e como esta se forja depois de sair das mãos do seu criador. Há poucas frases que carregam mais verdade do que aquela de Milan Kundera que encontrei no seu livro A Arte do Romance: “grandes romances são sempre mais inteligentes do que os seus autores”. Garrel continua a ser um dos exemplos mais literais de como a obra se auto-potencia fora das mãos do seu criador, especialmente porque tanto dele e da sua história nela foi colocando. Através de vários ângulos, ora de forma mais abstracta, ora por via da reflexão narrativa, há um rasto autobiográfico que unifica a obra mas não a limita ou finita. Pelo contrário, providencia o oxigénio para esta partir em viagem.

Em Le Grand Chariot (Retrato de Família com Teatro de Marionetas, 2023), quando Pieter (Damien Mongin) e Louis (Louis Garrel) caminham rua fora e Pieter recorda como sobrevivia enquanto pintor sem dinheiro na cidade antes de ter começado a trabalhar com a companhia de teatro de marionetas, negócio de família de Louis que abraça o mesmo ofício ao longo das gerações – “Nem todos temos a sorte de pertencer a uma família como a tua”, diz-lhe -, é impossível não pensar na família do próprio cineasta e no impacto que o cinema e o teatro continuam a ter há pelo menos três gerações. É importante relembrar que Philippe Garrel é filho dos actores Martine e Maurice Garrel, “que também fazia marionetas e era um marionetista”. Especialmente num filme que junta os seus três filhos (Lena, Louis e Esther Garrel – os dois primeiros são também Lena e Louis no mundo do filme, e Louis não só tem ambições de ser actor como é essa a sua profissão quando o filme acaba). Dizia Garrel à Mubi Notebook: “(…) my family is kind of like the circus. Everyone is in the theater or in film. (…) I think it would be hard for me to maintain professional —even emotional — ties with people in cinema if I didn’t have these people from my family around me.” Talvez seja por isso, ou apesar disso, que é delineado, filme atrás de filme, o tipo de ternura tão unicamente comovente que leva a crer que a sua construção acontece para que a melancolia ali possa residir. No habitual filmar dos bastidores, da vida privada – tudo o que interessa a Garrel acontece nos bastidores e por isso mesmo é que neste filme só vemos a peça a partir do ponto de vista do espectador em momentos de absoluta tensão -, na procura por amor e na intimidade de um casal, e depois nos respirares interiores e exteriores da família, Garrel nunca teoriza. Deixa o filme cair na emoção, que acontece na fricção entre os vários elementos, e este por sua vez transborda o tipo de solidão imensurável que perseguirá o espectador.
Não existe uma só verdade ou uma só maneira de viver uma vida. Curioso como se respira essa liberdade num filme que se debate sobre a ruminação do passado. Pensar nele agora em retrospectiva é pensar num filme cujo vigor é de resistência, resistência essa que se faz facilmente refúgio.
Com Le Grand Chariot não é diferente. A perseguição mantém-se. Mas desta vez, o foco parte da morte do patriarca (Aurélien Recoing), como se estivesse Garrel a avisar a própria família que não só terão saudades dele, mas que este seu cinema será muito em breve coisa do passado, tão do passado como o exercício colectivo, manual e artesanal, que é o teatro das marionetas, bonitas para serem expostas e admiradas atrás de vidro, lamentadas então só nessa altura e normalmente por aqueles que nunca se debruçaram sobre a sua magia antes. Num tom solene, das cores graves e quentes ainda que mal ventiladas, Le Grand Chariot sintetiza o melhor e o pior do cinema de Garrel, o que por si só faz do filme um objecto de imensa curiosidade, especialmente tendo em conta o padrão muito desigual com que o auteur nos tem presenteado nos seus últimos filmes. Num só gesto, Garrel continua interessado na procura imparável em conquistar a beleza das coisas e o amor nas relações mais íntimas e familiares. Num só gesto também, o filme mostra como nada mudou nas suas variações autobiográficas. A iminência da sua morte e daquilo que o criou segue-o quarto escuro fora, o que explica o silêncio sentido quando foi galardoado com o Leão de Prata para Melhor Realizador o ano passado no Festival de Berlim. Eis o ano de Mal Viver (2023), de João Canijo, Music (2023), de Angela Schanelec e Bai Ta Zhi Guang (The Shadowless Tower, 2023) de Zhang Lu na competição. Seria estranho não o ver a enroscar-se ainda mais nesse silêncio confirmativo do fim das coisas como elas sempre foram.

E é sobre essa inevitabilidade de não ser possível regressar a um momento no tempo onde até o cinema ficou parado, deliciado consigo mesmo, de que primeiro nos fala Garrel. Acompanhar os tempos seria talvez rejeitar um cinema que é, de facto, autocomplacente. Seria rejeitar muito do cinema francês da Nova Vaga que ainda é feito – após confirmação, Garrel é o último realizador associado ao movimento, ainda vivo e a fazer cinema com 76 anos. Seria então rejeitar a leveza e dureza ao mesmo tempo de Le Grand Chariot que expõe como a preservação do legado, o também opressivo family business, choca com a noção de vocação e auto-expressão (tudo existe por via da tradição e da oferenda, e nunca é encontrado). Mas como bater a porta ao passado é ter que falar com o presente, depararmo-nos com o que são, para Garrel, as artes em vias de extinção – depois da marcenaria em Le Sel des Larmes (O Sal das Minhas Lágrimas, 2020) – e o seu encontro com o conceito de família.
É aí que Garrel mostra talvez demasiado de si, demasiado da sua idade e da sua pretensão e esquece-se que a cada vinte anos o mundo pode, e certamente dará, uma volta de 180º. Em Lisboa neste momento a actividade da marcenaria é uma actividade reencontrada por jovens que precisam de se distanciar da digitalização dos seus trabalhos. É uma actividade agora endeusada, que regressa abraçada a um romantismo dos tempos antigos para recordar a necessidade fisiológica da criação manual, da perda do corpo no trabalho físico e no seu aperfeiçoamento. O mesmo poderá ser dito sobre o teatro de marionetas, uma arte que tem vindo a desaparecer por aqui, mas que ainda se encontra muito instalada no mundo cultural da Europa do Leste, com particular ênfase nos Balcãs. Quanto à família, Garrel não tenta iludir e assume o fim da “vida de circo” como eles a conheciam, mas não é por isso que esta se perde. Não há nada em Le Grand Chariot que seja um atentado ao individualismo, ou mesmo às supostas amarras da família. A conversa da avó (Francine Bergé) com os netos e Pieter sobre a sua relação tensa com a mãe, que de tão conservadora via a filha como uma criminosa ou fora-da-lei simplesmente por esta ser uma esquerdista convicta, para sempre destruída quando a senhora conhece um entertainer, um marionetista, é a prova de que a união entre a família pode acontecer pela distância, e de que não existe uma só verdade ou uma só maneira de viver uma vida. Curioso como se respira essa liberdade num filme que se debate sobre a ruminação do passado.

Pensar nele agora em retrospectiva é pensar num filme cujo vigor é de resistência, resistência essa que se faz facilmente refúgio. Entre as várias e importantes tempestades pessoais das personagens, seja na luta de Pieter consigo mesmo, no desencontro entre o que significa ser um artista e viver como um, seja nas ambições tanto românticas como carreiristas de Louis, e claro, no desejo das duas irmãs de manterem todo o trabalho construído ao longo de décadas à tona, há muitas coisas que poderão ser parte do passado, algumas delas estão de facto incluídas aqui como diálogos forçados ou personagens por desenvolver, especialmente as personagens femininas, mas se há algo que nunca terá validade é o acesso Garreliano à emoção, à sua bagunça e vulnerabilidade, que envolve sim, mas também eleva. É a junção entre o filmar das pessoas enquanto conversam, ou conversam enquanto comem à volta de mesas, e conversam enquanto pensam enquanto andam. É o equivalente à necessidade por trabalho manual de que falava. É a obra a efervescer sem o criador. Todos aqueles corpos translúcidos e desejosos por fazerem o seu caminho no mundo. É onde tudo se encapsula, nesse brilhar do banal – nem os textos trabalhados para o teatro de marionetas confluem com a história – na dança das mesmas conversas, dos mesmos desejos, que acontecem em todas as famílias ao longo do tempo. Sai-se de Le Grand Chariot com uma certeza: é nessa emotividade que encontraremos o futuro.
★★☆☆☆