Um dos lugares-comuns do entendimento social do fenómeno do cinema de super-heróis é a dicotomia entre a popularidade destes filmes (e consequente sucesso comercial) e o desinteresse dos sectores intelectuais da cultura, quase sempre cristalizados na simplista e totalizante expressão “os críticos”. “Os Críticos não gostam de filmes de super-heróis” é uma dessas ideias feitas que domina a relação do público de cinema mainstream com essa entidade plural e difusa a que se chama “crítica de cinema”. Não só não existe um pensamento único entre “os críticos”, como o desinteresse da “crítica” pelo cinema de super-heróis não é, de maneira nenhuma, uma fatalidade.
Por entre aqueles que escrevem ou escreveram sobre cinema, encontram-se vários que, de forma mais ou menos entusiástica, defenderam este ou aquele filme de vigilantes mascarados super-poderosos. Por exemplo, nos Cahiers du cinéma, um jovem crítico de cinema no início dos anos 1980, de seu nome Olivier Assayas, escreveu com euforia sobre os filmes que Richard Lester fez em torno da figura do Super-Homem, chegando mesmo a entrevistar o realizador para a “autoral” revista, num texto intitulado – nem mais nem menos – «La Lester touch». Mesmo Serge Daney se interessou pelo fenómeno (de um ponto de vista mediático) e refletiu sobre as repercussões estético-sócio-políticas do sucesso comercial de Batman (1989), de Tim Burton (numa conversa difundida pela France Culture em 1989 e publicada postumamente na revista Trafic em 2002).
Em Portugal, é conhecido o entusiasmo de João Bénard da Costa por Unbraekable (O Protegido, 2000), de M. Night Shyamalan, e mesmo Mário Jorge Torres, no Ípsilon, viu com bons olhos os primeiros X-Men de Bryan Singer. Porém, se há um crítico de cinema português (da imprensa escrita) que, de forma sistemática, sempre encarou os filmes de super-heróis com curiosidade, esse crítico foi Manuel Cintra Ferreira – crítico regular do jornal Expresso e programador da Cinemateca Portuguesa. Assim, no âmbito do dossier dedicado ao fenómeno dos super-heróis (It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis), pareceu-nos necessário lembrar o pensamento e a escrita idiossincrática de Manuel Cintra Ferreira, como electrão livre do pensamento sobre cinema no nosso país.
A presente edição dos Recortes do Cinema percorre uma série de textos do crítico e programador, ora publicados no referido jornal, ora escritos para as “Folhas” da Cinemateca Portuguesa.

Para abrir as hostilidades, comecemos por um excerto de um pequeno texto escrito sobre um filme pouco memorável (mas que entusiasmou Cintra Ferreira à data da estreia), The Incredible Hulk (O Incrível Hulk, 2008):
(…) Hulk é, talvez, o mais original dos super-heróis da família Marvel. Não tem fórmulas mágicas (Capitão Marvel), não é extraterrestre (Superman), não possui gadgets sofisticados (Batman), não se transforma consoante a sua vontade (os X-Men), etc.. E, principalmente, não é um dedicado defensor da lei e ordem e dos valores americanos. Hulk é um “outro”, um doppelganger (…). A sua origem, conforme Stan Lee afirmou, está entre o monstro de Frankenstein e o Mr. Hyde do clássico de Stevenson, O Médico e o Monstro. (…) Daí que seja de louvar a nova versão das aventuras do super-herói verde que a Marvel lançou, dirigida pelo francês Louis Leterrier. Deixem-me desde já manifestar a minha surpresa. Considerando os trabalhos anteriores deste realizador, The Transporter (Correio de Risco, 2002) e Unleashed (Danny the Dog – Força Destruidora, 2005), a minha alma “BDólifa” e cinéfila tremeu. Daí a minha surpresa face ao resultado. (…) O Incrível Hulk é um excelente filme de aventuras que todos os admiradores do Hulk irão apreciar, assim como os cinéfilos em geral. A Marvel está de parabéns, o que não é sempre o caso nas recentes versões cinematográficas dos seus super-heróis.
– “O Incrível Hulk”, In Expresso (Revista Actual), 13 de Junho de 2008.
O que se depreende desta breve passagem é, primeiro, o conhecimento panorâmico do crítico sobre o universo das bandas desenhadas e de que forma este se cruza com as referências literárias e cinematográficas mais clássicas. Por outro lado, a disponibilidade de um crítico que, mesmo contra todos os indícios, se deixa surpreender por um título que, a todos os níveis, parecia suscitar pouco interesse. Por fim, e talvez mais importante, a admissão de “BDófilo” (condição a que dá a mesma importância à de cinéfilo). Este “filiação” à Banda Desenhada enformou muito do gosto de Manuel Cintra Ferreira e, como tal, ilumina o seu olhar diante de filmes que, doutro modo, pouco dialogam com críticos cuja formação intelectual se fez por outras vias.
Nesse sentido, vamos, então, ao princípio, isto é, ao texto mais antigo que descobri na rápida pesquisa que deu origem a este texto: a “folha de sala” que Cintra Ferreira escreveu aquando da passagem do primeiro filme de Tim Burton, de Batman (1989), na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema – programado no âmbito do ciclo “1989: Oscars”. O que este texto revela é um conhecimento profundíssimo do universo dos comics, bem como das suas muitas desmultiplicações mediáticas (cinema, televisão, novelas gráficas, etc.). Assim abre a “folha”, com as questões tão caras a Cintra Ferreira como a “humanidade” do super-herói e a “identificação” do leitor:
Meio século passou entre o “nascimento” de Batman e a sua consagração. Foi em Maio de 1939 que o “cape crusader” entrou em luta pela primeira vez, nascido na inspiração de uma noite, do lápis de Bob Kane, a quem os editores tinham pedido a criação de um “super-herói” que rivalizasse com o popularíssimo Superman. A astúcia de Bob Kane foi dar ao seu personagem uma dimensão mais humana do que a do “homem de aço”, o que o tornava mais vulnerável mas, simultaneamente, mais passível de identificação com os leitores. (…) Entre nós o herói de Bob Kane chegou pela primeira vez através do cinema (diga-se de passagem que não foi apenas sina do “cape crusader”, o mesmo acontecendo com Superman, primeiro em desenho animado, depois através de serials, com o Capitão América, e outros), mas mesmo neste campo Batman surgiu com bastante atraso. Foi só em 1950 que o primeiro “serial” inspirado na criação de Bob Kane (e que data de 1943) se estreou entre nós, quase em simultâneo com o segundo, de 1949. Chamaram-se, respectivamente, Batman (As Aventuras do Homem Morcego, 1943), de Lambert Hillyer, e Batman and Robin (Novas Aventuras do Homem Morcego, 1949), de Spencer Gordon Bennett.
– in “Folha” da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, distribuída pela primeira vez a 15 de Fevereiro de 1990, no âmbito do ciclo “Oscars: 1989”.
Este cuidado e este pormenor não podem deixar de despertar, no leitor, a imagem de um Manuel Cintra Ferreira (pré-)adolescente a descobrir o prazer dos serials à medida que iam estreando nas salas comerciais portuguesas. Cintra Ferreira nasceu em Lagos, em 1942, tendo vindo a fazer o liceu em Lisboa. Não custa imaginá-lo, com dez ou onze anos, a escapulir-se da escola para assistir às matinés das Novas Aventuras do Homem Morcego num qualquer cinema de reprise que dois ou três anos depois da estreia continuasse a exibir o filme de Spencer Gordon Bennett.

Mas regressemos ao texto sobre o filme de Burton. Cintra Ferreira entende-o à luz não tanto dos comics que o terão formado na infância (sublinha-se “o imaginário dos leitores”), mas à luz das novelas gráficas que “reinterpretaram” a mitologia do homem-morcego:
O Batman de Tim Burton, filtrado pelos desenhos de Frank Milner já pouco terá a ver com as origens, pelo menos do que delas sobram no imaginário dos leitores. Nomes e personagens mantêm-se, mas The Dark Knights Returns e o seu prolongamento cinematográfico parece formar um rio para onde convergem todos os afluentes estéticos e psicológicos que ao longo de meio século vieram marcar o “homem morcego”. Desta acumulação resulta um salto qualitativo que o transfigura de forma definitiva. A bem dizer, o Batman de Miller surge como o primeiro herói do nosso tempo e o filme de Tim Burton como o primeiro serial da pós-modernidade (…). Pela primeira vez um herói assume o “dark side” em toda a sua dimensão. Se Indiana Jones percorre também os meandros das trevas, é para melhor fazer ressaltar o triunfo da luz. Para Batman apenas subsiste a escuridão maléfica. Ou, em termos cinematográficos, ao triunfo da luz de Murnau (a ascensão dos heróis de Spielberg dos labirintos para o sol) sucede o do domínio das trevas de Ulmer (a persistência dos claro-escuros que transformam as cores do filme de Burton num sombrio preto e branco).
– idem.
Aqui fica bem patente o modo como a “alta cultura” cinéfila (Murnau, Ulmer) se cruza com a “baixa cultura” dos livros aos quadradinhos. Manuel Cintra Ferreira não fazia estas distinções e misturava todas as referências para melhor entender o cinema enquanto arte de encontros e três-leituras. Tanto é que se deve ao crítico-programador a apresentação de 15 episódios da série Batman (O Homem Morcego, 1943), de Lambert Hillyer, na Cinemateca Portuguesa, em 2008, no âmbito do programa “História Permanente do Cinema”. Assim, em duas sessões, Cintra Ferreira pôde mostrar, em cópias de 16mm, a totalidade do serial que primeiro levou Batman ao grande ecrã. Transcrevo uma secção da respetiva “folha de sala” (sendo que chamo a atenção para o laivos autobiográficos que se escondem por detrás da escrita na terceira pessoa):
O Batman que vamos ver é um exemplo bastante interessante do «serial», o que esteve em voga nas décadas de 30 e 40, e que era um dos principais atractivos para os jovens espectadores das sessões das tardes de sábado, onde semanalmente se exibia um episódio da aventura. Daí a apresentação de um «resumo» e um «ponto de partida» à base de cenas do(s) episódio(s) anterior(es) para o espectador recordar onde ficara a acção e assistir à resolução do habitual cliffhanger em que fora deixado o herói, com as inevitável armadilhas e alçapões que escondem perigos enormes. (…) Que o espectador não pense que vai ver o Batman tal como foi visto na sua estreia em Portugal. Só nos anos 30 é que alguns serials foram exibidos (no Olímpia) em episódios semanais (não um mas três de cada vez, em complemento de outro filme). Mas a prática foi depressa abandonada com a exploração de montagens que juntavam todos os episódios, cortando as inevitáveis introduções, procedendo a mais um ou outro corte e transformando-o numa longa metragem de duração variável entre 3 e 3 horas e meia, que era apresentada geralmente no Olímpia ou no Coliseu. Por isso mesmo pode dizer-se que as duas sessões que ocupam este serial, com a sua sucessão de cliffhangers, hoje surgem razoavelmente ingénuas no meio de um cenário de fancaria e com os heróis em vestimentas que lhe deram um inenarrável toque camp.
– in “Folha” da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, distribuída pela primeira vez a 13 de Dezembro de 2008, no âmbito do ciclo “História Permanente do Cinema”.
O que daqui se conclui é a compreensão adulta de que o deslumbre da infância é irrecuperável e que, mesmo a reconstituição nada pode contra a transformação do olhar que o tempo impôs sobre as coisas. O que era estimulante passou a ser camp, o que era emocionante passou a ser repetitivo, o que era surpreendente passou a ser cliché. Sim, em parte isso acontece – com todos nós –, mas Cintra Ferreira é um crítico algo diferente. Quando faleceu, em 2010 (com apenas 68 anos, vítima de um tumor cerebral), o jornalista Sérgio C. Andrade escreveu um belo obituário, no jornal Público, com o título “Manuel Cintra Ferreira, o crítico de cinema que gostava de gostar dos filmes que via” (parafraseando Luís Miguel Oliveira – colega do crítico e programador nas duas áreas – que comentou “Ele gostava de gostar e de se entusiasmar com os filmes que via.”). Eis a súmula perfeita do seu olhar sempre disponível.

Nesse sentido, proponho, agora, um salto temporal que atravessa quase duas décadas, de modo a que possamos fazer um raccord [como aquele do 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968)], onde através do tempo se liga um forma a outra, isto é, se ligam duas leituras das novelas gráficas de Frank Milller pelo cinema: refiro-me, naturalmente, a Batman Begins (Batman – O Início, 2005), de Christopher Nolan.
Se o trabalho de [Christopher Nolan] não faz sombra ao de Tim Burton, que marcou indelevelmente a série com os seus dois primeiros filmes, não deixa de, por outros meios, criar também uma atmosfera diferente, com uma marca pessoal, influenciada na maior parte pelas “novelas gráficas” de Batman, no “desenho” do justiceiro e na paisagem urbana que lhe serve de pano de fundo, e com um argumento que explora medos e fantasmas contemporâneos, em particular o terrorismo e organizações clandestinas fundamentalistas que sob a aparência de “justas” recorrem ao crime generalidade e ao terror.
– “Como se faz um super-herói”, in Expresso (Actual), 25 de junho e 2005.
Eis o segundo eixo de leitura de Manuel Cintra Ferreira sobre os filmes de super-heróis: a sua dimensão política e o modo como parecem ser, quase sempre, um reflexo da sociedade que os produziu, isto é, um reflexo dos medos e angústias que atravessam essa mesma sociedade.
Nesse sentido, há algo de premonitório no seu texto sobre Unbraekable de Shyamalan, escrito em janeiro de 2001, pouco tempo antes do ataque às Torres Gémeas, em Nova Iorque:
Shyamalan inscreve[-se] bem na ideia feita de um “autor”, como eram Ford, Hawks ou Ozu, de quem se diz que estavam sempre a fazer o mesmo filme (não é bem verdade, mas a ideia está certa). Na verdade, O Protegido assemelha-se a The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999), não porque Shyamalan tenha ficado deslumbrado com o sucesso do segundo, mas porque se trata de uma variação sobre o mesmo tema: um aprofundamento da psicologia dos personagens e das situações que vivem. O Protegido aparece como uma fábula contemporânea sobre a insegurança em que hoje se vive, um pouco por todo o lado. Insegurança essa que cria a necessidade de acreditar em alguém que nos proteja, um “super-herói” (…). A partir desta ideia, o realizador desenvolve a sua história apoiando-se no tema da busca, que já estava subjacente em O Sexto Sentido. (…) Quem de imediato adere à hipótese [de que David/Bruce Willis é um super-herói] é o filho de David, Joseph. Também nesta personagem, o que germina é a “busca” e o sentimento de insegurança. Joseph vê o pai começar a “desaparecer” da família e a identificação que faz com o super-herói resulta da necessidade de o manter no seu meio. (…) Tal como em O Sexto Sentido, também a busca leva ao conhecimento e, a partir deste, ao acto.
– “O Super-Herói”, in Expresso (Cartaz), 27 de Janeiro de 2001.
Escreveu Cintra Ferreira que se tratava de uma “fábula contemporânea sobre a insegurança”, e não podia adivinhar a transformação monumental que o ataque terrorista do dia 11 de Setembro de 2001 teria na vida de todos nós (e que inauguraria uma nova forma de entender o mundo – esse sim, o verdadeiro e transformador bug do novo milénio).

De qualquer forma, o que importa salientar aqui é o terceiro e último aspecto que caracteriza o entendimento do crítico sobre o cinema de super-heróis: o olhar infanto-juvenil. No filme de Shyamalan esse olhar é corporizado na personagem de Joseph e é essa olhar que – de facto – transforma o pai num ser super-poderoso. Há, portanto, uma dose de fantasia que se associa a um processo de identificação do espectador/leitor de bandas desenhadas. Cintra Ferreira compreendeu bem esse “truque” de integração na narrativa de uma figura de alteridade do consumidor principal do género: o rapaz pré-adolescente que se deleita em mundos de fantasia (criação com que, certamente, o próprio crítico não deixou de se identificar também).
Nem de propósito, não há filme que tenha explorado melhor essa ambivalência entre a fantasia e a identificação juvenil do que os primeiros dois tomos de Spider-Man realizados por Sam Raimi.
O Homem-Aranha está de volta, tecendo habilmente a teia que leva diretamente ao box-office. (…) Se o fenómeno é já recorrente no que se refere à adaptação das bandas desenhadas da Marvel ao cinema (…), o caso de Spider-Man é mais interessante na medida em que a dupla personalidade do herói está mais perto do “homem comum” (…), ou melhor, do “adolescente comum” (…). A identificação do público juvenil (principal consumidor deste género de filmes) com o herói faz-se melhor com este do que com um milionário como Bruce Wayne (Batman). E a identificação é ainda favorecida com os problemas pessoais e sentimentais que afetam Peter Parker e, a partir de certo momento, as performances do seu alter ego, Spider-Man. Habilmente, Sam Raimi dá ênfase maior a estas questões, mais do que o confronto com o “super-adversário” (…). Se o primeiro Homem-Aranha nos dava o “nascimento” do novo heróis, o segundo filme de Raimi dá-lhe a continuidade imediata, colocando Parker face aos dilemas colocados pela sua nova condição, e a forma como esta afecta a sua vida quotidiana, a sua vida de trabalhador-estudante.
– “A vida difícil de um super-herói”, in Expresso (Revista Actual), 17 de Julho de 2004.
Sublinhe-se a luta entre o “extraordinário” e o “mundano”, entre o “super” e o “banal” ou, de forma contínua, a dimensão quotidiana da heroicidade. É aí que Manuel Cintra Ferreira encontra a “habilidade” de Sam Raimi e é daí também que vem o elogio de Brad Bird em The Incredibles (The Incredibles – Os Super Heróis, 2004):
Um dos problemas que a banda desenhada sempre enfrentou na transposição para o cinema foi a falta de “identificação” entre a prancha e a sua recriação em movimento, seja em animação (o caso de Astérix e Tintim), seja em personagem reais (Batman, Superman, etc.). A animação digital, como The Incredibles vem provar, faz a ponte perfeita entre os dois meios (…). Mas o que se torna mais divertida nesta segunda longa-metragem de Brad Bird é o seu ponto de partida. Os nossos super-heróis são alvo de uma campanha do estilo “politicamente correcto”, após o salvamento do Sr. Incrível ter provocado uma série de ferimentos, de que resulta serem afastados do “trabalho” e viverem com outra identidade. Resultado: os nossos “super-heróis” são “obrigados” a serem “humanos”, com trabalhos e escritório e a rotina do dia-a-dia. É nesta situação que o filme apresenta as mais divertidas cenas (…).
– “A vida privada dos super-heróis”, in Expresso (Revista Actual), 28 de Novembro de 2004
A partir desta pequena seleção da vastíssima produção escrita de Cintra Ferreira, é possível delinear um conjunto de ideias-chave que constroem os princípios de uma reflexão mais larga sobre o cinema de super-heróis. A saber: de que modo estes filmes trabalham as questões da adaptação da banda desenhada? Como se relaciona o herói com super-poderes e o respetivo humano com os seus dilemas, as suas dúvidas e as suas mágoas? De que forma o súbito interesse pela figura do super-herói traduz as tensões de uma sociedade proto-securitária? E, talvez o mais importante, de que maneira os realizadores destes filmes exploram a problemática da identificação com o espectador (diegeticamente através de figuras de alteridade mimética)?

Sendo que tudo isto provém de um crítico que, a par do cinema, adorava a banda desenhada e que, por isso mesmo, procurou preservar um certo olhar de fascínio que, muitas vezes, se perde com a idade. É certo que a grande paixão cinéfila de Manuel Cintra Ferreira são os filmes clássicos, em particular os de John Ford, e que pouco antes de falecer (e quando se reformou da Cinemateca) ofereceu uma cópia novinha de The Searchers (A Desaparecida, 1956) para a coleção daquela instituição. Porém, o que se procurou demonstrar aqui é que o gosto, o conhecimento e a disponibilidade de Manuel Cintra Ferreira ia muito além da doutrina do cinema clássico e que, de certo modo, havia algo no cinema de super-heróis que o emocionava (talvez de forma nostálgica). Muitas vezes isso é mais do que suficiente.