“Não corras atrás da poesia. Ela introduz-se por si mesma através das articulações (elipses)” (Bresson). Quando não filmar é uma escolha e não o resultado de uma hesitação ou imposição externa; quando não filmar é dizer (explícita ou implicitamente, advertida ou inadvertidamente) alguma coisa; quando não filmar é o mais perigoso (leia-se, corajoso) a fazer – eis quando a musculatura dos “grandes acontecimentos” visíveis (as imagens, os filmes, as obras) revela a sua menor importância, perante a força secreta e invisível das articulações.

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Encaminhados pela Renata, estávamos a filmar de improviso pelas ruelas do 2.º Torrão, quando uma mulher veio à porta de casa despejar água de um balde. A Renata conhecia-a, abraçou-a calorosamente e apresentou-nos. Com essa intermediação, sentimos haver uma autorização implícita para filmar. Mas o Diogo, com um sentido de respeito que lhe é próprio, baixou a câmara. A Renata insistiu que tínhamos de entrar na casa para ver a vista do piso de cima (“a melhor vista da margem sul”, disse). Eu acenei para irem só o Diogo o Tiago e, se se sentissem à vontade e a dona da casa autorizasse, que filmassem.
A única coisa que o Diogo filmou foi uma mão e uma parede. Uma mão queimada, qual pétala negra, pousada (em pose para a câmara, de facto) sobre uma superfície branca. Na faixa áudio ficou gravado o fragmento da conversa que, segundos antes, havia motivado o Diogo para, de impulso, filmar (como quem fotografa, apenas para mostrar) uma imagem da história por trás daquela queimadura. Um plano de apenas seis segundos – quatro, na verdade, tendo em conta a câmara trémula noutros dois segundos.
Quando vimos o plano, percebemos que teríamos de voltar àquela casa. Apesar de não sabermos o que viria a ser o filme, ele estava já todo ali. Como escreveu o Tomás, na sua tese por vir, a “queimadura na mão tem uma textura fissurada, parecendo uma continuação da própria textura da parede; como se fizessem parte de um material comum – como se tivessem um passado em comum”. E foi dessa passagem entre não filmar e filmar que apareceu uma personagem fundamental: a Antónia. Quando voltámos no dia seguinte, a Antónia parecia estar vestida para nos receber, como se soubesse que teria um lugar fundamental no nosso filme (ou melhor, nas nossas filmagens).
Como disse várias vezes ao longo da primeira semana de “residência artística” na Trafaria, não estávamos ainda a fazer um filme, mas, acima de tudo (e não apenas), filmagens, uma forma de pesquisa – “a pesquisa verdadeira é a verdade desdobrada cujos membros esparsos se reúnem no resultado” (Marx). Filmar como quem pesquisa era a forma de est(ud)armos juntos numa sala de aula diferente, uma sala sob o risco do real.
Uma hipótese: imagine-se uma escola de cinema, cujo programa de trabalho – semestre a semestre, aula a aula, exercício a exercício, intervalo a intervalo – consistisse em descobrir porquê, o quê, onde, quando e como não filmar.
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Há alguns anos, nas aulas de apresentação de ideias para projectos de documentário, a Inês apareceu com uma daquelas propostas “vencedoras”: a avó era ex-taxista e tinha muitas histórias para contar sobre o período em que havia vivido em Angola, durante a Guerra Colonial. O filme realizar-se-ia em andamento, sempre no interior do táxi da avó, que o conduziria, tal como quando exercia a profissão. No excerto exigido, que a Inês trouxe para a aula de pitchings, a avó nunca olhava para a câmara e falava como se fôssemos um cliente no seu antigo dia-a-dia. O à-vontade era total. “É uma daquelas pessoas que nasceram para ser filmadas”, disse alguém.
O filme estava feito. Só faltava filmar.
Na semana seguinte, na aula de deliberação sobre que projectos “seleccionados” seguiriam em frente, a Inês disse que não queria continuar. “Porquê?”, perguntámos. Havia mostrado as imagens à avó e sentiu – não soube explicar porquê – que “não lhe tinham feito bem”. Houve desalento geral. Outros projectos avançaram.
Desse ano em diante, passei a dizer em todas as turmas – e nunca menti – que o mais belo filme que naquela escola tive oportunidade de ver foi um que nunca chegou a ser filmado.
Outra hipótese: imagine-se um modelo de financiamento de filmagens, cujo apoio, concurso a concurso, consistisse em atribuir ou revalidar subsídios para os que, em qualquer momento do processo de produção, pudessem decidir parar de filmar.
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Em ano de pandemia, entrei em contacto com uma associação de abrigo para animais abandonados e obtive autorização para lá filmar. A ideia de voltar a filmar diariamente, num período de confinamento institucional, entusiasmou-me, tal e qual como nos casos anteriores em que filmar, para mim, não foi senão uma desculpa para poder estar nos lugares que se parecem com prisões, como quem escava buracos (linhas de fuga), secreta e silenciosamente.
Passei o primeiro dia com o Hugo, um dos voluntários mais antigos do abrigo. Ele fez os seus afazeres diários normalmente, só nos momentos de pausa me deu atenção – tal e qual como noutros projectos em que filmei pessoas dedicadas ao seu trabalho. Os gestos do Hugo revelavam uma precisão ao nível do ritmo e do movimento, numa daquelas coreografias laborais que as primeiras câmaras de filmar da história do cinema souberam mostrar em toda a sua artisticidade.
Voltei para casa, revi o material. Por mais voltas que desse à cabeça, senti que não havia estilização ou metodologia que justificasse o facto de voltar àquele lugar. Apercebi-me que não havia ali nada para eu filmar – não havia cinematógrafo, cine-olho, cine-transe ou cine-punho capazes de se articular com os “blocos de duração e movimento” (Deleuze) que se me apresentavam em potência e em toda a sua violência, a olho nu. Por cobardia ou hesitação, sem a verticalidade que se exige numa decisão livre e justa, nunca comuniquei que, afinal, não iria continuar a filmar. Quando hoje passo por lá de carro, qual travelling na via rápida ao lado, o abrigo parece-se com um bairro de lata como qualquer outro, virado de costas para mim e para a cidade.
Não filmar, por vezes, não é a forma de dizermos algo ao mundo, mas de o mundo nos dizer algo a nós.
Última hipótese: imagine-se um cineclube ou festival de cinema, daqueles repletos de realizadores convidados, em que só projectavam filmes que, pelas mais variadas razões, nunca foram filmados.
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São as junções entre dois ou mais ossos (vulgo articulações) que ora autorizam, ora negam tudo aquilo que o corpo deseja e pode. “A configuração de uma articulação determina o grau e o sentido do movimento possível” (daqui). Talvez nos falte – hoje, mais que nunca – conhecer uma práxis não-linear do cinema, em que as articulações não tenham a função de bloquear ou impulsionar, mas de possibilitar o movimento e, simultaneamente, uma “vontade incondicional de dizer Não” (Nietzsche).
Na vida como no cinema, é nas elipses (nas fissuras) entre as coisas que filmamos (i.e., as fases mais importantes que vivemos, as pessoas mais marcantes que conhecemos) que luminosamente (re)aparecem, como fantasmas, os “espíritos livres” que (não) somos.
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(ao Diogo e ao Nico)