The broken are the more evolved.
– “A Horda” em Split (2016)
Se há alguma coisa verdadeiramente poderosa, ou super-poderosa, a unir Unbreakable (O Protegido, 2000), Split (Fragmentado, 2016) e Glass (2019) entre si é o facto de surgirem em momentos-limiares na história de Hollywood e da América. São obras de tal maneira entrosadas com o Zeitgeist que, hoje, não podemos deixar de olhar para elas como prefigurações de vários momentos de definição ou redefinição de um certo paradigma estético, social e político. A figura do super-herói, por exemplo, ganhou uma preponderância grande no seio da mitologia hollywoodesca após os ataques às Torres Gémeas, em 11 de Setembro de 2001. Mas Unbreakable é de 2000, um filme sobre desastres em cadeia desencadeados por uma experiência cultural de uma ambição desmesurada, mas ao serviço de um bem maior: localizar o “messias”, o “chosen one”, através de um processo de selecção que não evitará a morte de centenas de inocentes. Em tempos medíocres, diz o mastermind de todos estes ataques (terroristas?), as pessoas deixaram de olhar para si mesmas e percebem o alcance de quem são ou podem vir a ser. O 11 de Setembro foi um momento de portentosa descoberta da figura do herói no Homem comum: um país em crise, ferido no seu orgulho, virou-se para os exemplos de coragem e humanismo vindos daqueles que, até aí, participaram de uma sociedade anestesiada, cada vez mais consumida por preocupações materialistas e sentimentos mesquinhos, de inveja, de ganância e de vaidade, super-valorizados por uma economia de mercado que rapidamente se precipita a converter o cidadão comum em dado estatístico. Um “número” de potencial limitado, acomodado e, por isso, perfeitamente domesticável.
E se o tal “messias” for um “mero” segurança de um estádio, a braços com um casamento em fanicos e uma relação distante com o filho? O plano de Unbreakable, que nos apresenta o suposto “super-homem” dos nossos tempos, é absolutamente magistral: um longuíssimo (falso) plano subjectivo captado de um assento do comboio para o da frente. A câmara espreita, em contínuo, sem cortes, dando a ver, em panorâmicas sucessivas (como se fosse o plano subjectivo da criança que, antes, víramos a espreitar), a preparação do engate, que consiste, numa primeira instância, na ocultação do anel de casamento por parte de David Dunne (Bruce Willis), e, numa segunda instância, num diálogo que redunda rapidamente num embaraçoso fracasso, já que a mulher se diz casada e, logo a seguir, abandona o lugar.
À época, João Bénard da Costa terá sido conquistado logo a abrir, graças também à força desses instantes iniciais. Numa entrevista concedida ao Público, no já distante ano de 2001, confidenciou: “Há um filme deste ano de que gosto muito – por acaso, este ano tem sido mau –, que é O Protegido, do Shyamalan.” O entrevistador nota, logo a seguir: “Aliás, no Independente [jornal para o qual João Bénard escrevia regularmente], referia-se à sequência inicial no comboio como uma das melhores da História do cinema”. Ao que responde o entrevistado: “Adoro esse filme, é espantoso.” Mais à frente, esclarece: “O Shyamalan, antes de O Protegido, fez The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999) e eu ia cheio de preconceitos, as pessoas falavam muito daquilo, ainda por cima foi na altura em que saiu o Magnolia (Magnólia, 1999), que eu detestei! E, de repente, foi uma surpresa enorme, adorei o filme, foi por isso que logo que se estreou O Protegido o quis ver, já era um cineasta que eu tinha escolhido.”
Confesso que demorei algum tempo a escolher ou ser escolhido por Shyamalan. Padeci do mesmo preconceito inicial face a The Sixth Sense. Não foi amor à primeira vista, mas Unbreakable e sobretudo o título seguinte, esse brilhante tratado hitchcockiano chamado Signs (Signs – Sinais, 2002), fizeram-me “dar o braço a torcer”. E, se calhar, agora que revejo alguns destes filmes, apercebo-me que pode bem estar tudo contido nesse tal plano introdutório de Unbreakable, brilhantemente concebido por Shyamalan e pelo seu director de fotografia, o português Eduardo Serra. O que, a meu ver, importa “recortar” dessa cena de apresentação do nosso protagonista é a sua, digamos assim, falibilidade tão humana e a sua aparente, e muito natural, falta de jeito para o jogo social. É uma cena que sinaliza uma certa forma de impotência – e até de ridículo – pouco ou nada compatível com a promessa de nesse homem estar adormecido um qualquer poder especial que vai abalar o mundo tal o conhecemos. Tudo nele parece banal, quase risivelmente mundano. Mas, logo a seguir, Shyamalan, realizador que quase sempre fez do efeito de surpresa o ingrediente principal da própria dramaturgia, mostra, com espanto e solenidade, um David Dunne como “homem do momento” nas notícias, por ter sido o único sobrevivente de um aparatoso desastre de comboio. Saiu ileso, sem um arranhão ou um mau jeito na coluna. “Um milagre”, dizem os media e aos médicos, por uma vez, falta-lhes uma explicação plausível.
Antes, Shyamalan apresentara-nos a história de um bebé que nasceu com múltiplas fracturas, vindo a tornar-se uma criança tão frágil quanto o cristal. Na escola, ganhou a alcunha “Glass”, por causa dessa sua intrínseca e “preciosa” fragilidade, uma vulnerabilidade física compensada por uma mente que se expande muito para lá dos limites da mediania humana, desde que é exposta aos mundos, códigos e possibilidades hermenêuticas contidos nos comics. O que Shyamalan nos contará é a história de um encontro, antes de ser verdadeiramente “um embate”, entre o homem mais frágil e o homem mais inquebrável.
O que Shyamalan nos começa por mostrar é o exemplo de superação do rapaz, que “se refugia” – e se supera – lendo bandas desenhadas, pensando o mundo a partir de épicas lutas do bem contra o mal e filosofando sobre o sentido da vida. Conclui ele, desde tenra idade, que haverá uma razão para que cada humano nasça com um conjunto de forças e fraquezas. Tudo o que cresce e se expande na história do Sr. Glass, retrai-se, “cai no ridículo” ou na pura inacção (para não dizer, depressão) na história de David, espécie de herói solitário, e em negação, que podia ter saído do mais sorumbático filme que Frank Capra nunca realizou. Toda a montagem – a montagem de imagens, ou seja, de backstories desencontradas no espaço – é como uma história de aptidões e falhas, sendo que o equilíbrio e o desequilíbrio entre super-poderes e super-debilidades nunca se poderão contar de maneira unívoca.
Ao mesmo tempo, como objecto teórico sobre o fenómeno dos comics na cultura americana – aliás, o filme começa por debitar estatísticas sobre o fenómeno, como se fosse um ensaio, à la Adorno ou Kracauer, acerca do impacto da mitologia dos super-heróis em toda a educação de um povo –, Unbreakable é um filme acerca de o poder de uma ideia sobre a força niveladora da experiência. Era preciso um teórico como o Sr. Glass para haver um corpo como o de David, quando este se apercebe, pensando para lá da mediocridade geral que lhe foi prescrita, que é alguém especial, cumprindo, deste modo, o sonho secreto de qualquer filho na relação com o seu pai.
Uma das forças dramatúrgicas desta obra de Shyamalan radica na comovente relação, quebradiça mas plena de amor, entre o rapaz (Spencer Treat Clark, mais um grande papel de um child actor num filme de Shyamalan) e o seu pai ou na convicção do primeiro em relação aos super-poderes deste último, mesmo que isso tudo colida com o estado das relações humanas naquela casa, desde logo, com a mulher, magnificamente interpretada por Robin Wright, a servir de amparo emocional ao marido, qual mãe a dobrar. De novo, é David a personagem fraca nesta equação sentimental: incapaz de lidar com os fracassos do passado (o fim precipitado de uma carreira como praticante de futebol americano?) ou dominado pela sua inabilidade para dar um rumo à sua vida (insatisfeito com a sua profissão enquanto segurança e também falhando com as obrigações de pai). Quanto mais se torna evidente que David é “the one”, mais convencidos ficamos de que ele é o humano mais imperfeito de todos (e um dos mais macambúzios nesta narrativa), incapaz de, sozinho, lidar emocionalmente com os seus fantasmas. A história dos “pesadelos” que o afligem é exemplar desta necessidade de “o protector” ser, antes de mais, aquele que precisa de “protecção”, mais concretamente, da ternura da mulher e do amor e orgulho do filho.
Neste ponto, devo fazer um parêntesis para reforçar a ideia de que existem poucos filmes sobre esse elo, em que o amor se confunde com um sentimento de orgulho profundíssimo, na relação entre um rapaz e o seu pai. A este nível, digamos assim, basicamente humano, não estamos distantes do anterior The Sixth Sense, sobretudo se nos abstrairmos de toda a narrativa associada à célebre fala “I see dead people” ou se pensarmos na história de incomunicabilidade desenrolada entre marido e mulher, ou de como a verdadeira assombração, aquela que prende (aprisiona mesmo) o fantasma neste mundo e que, enfim, radica numa profunda “falta” sentimental. Unbreakable é mais um exemplar desse amor às personagens que atravessa os melhores argumentos de Shyamalan: para se tornar o super-herói, o messias prometido nos quadradinhos da BD, tem de se reencontrar – ou se descobrir, finalmente – como marido e como pai.
Antes da febre dos super-heróis – o Spider-Man de Sam Raimi é de 2002 –, veio a sua desconstrução crítica mais brilhante, como uma espécie de “manual de instruções” para os tempos vindouros de super-domínio da Marvel e da DC. Mas Shyamalan não surfou a onda, trilhou o seu caminho e deixou para trás os seus “escolhidos”. Até que, 16 anos depois, dá-se aquele que é, ao dia de hoje, um dos twists mais “espantosos” – volto à palavra de Bénard – na história do cinema americano. Não se tratava de um volte-face na narrativa propriamente, mas além dela. Descobria-se em Split, um thriller de modesto orçamento para os padrões americanos, uma sequela improvável dessa obra escondida no ano-limiar de 2000. Era o renascimento de toda uma mitologia, não num sentido à la Marvel ou DC, uma vez que continuamos a falar de pessoas em guerra consigo mesmas antes de em guerra com o mundo; de questões de identidade e de saúde mental – centrais nos nossos dias – transpostas para uma intriga em que o espectáculo não está na acção de tiros, socos e pontapés, mas no modo como o espaço do íntimo se desdobra e se converte em palco principal do drama.
O que significam as múltiplas personalidades do vilão-herói do filme, interpretado com corpo e alma por James McAvoy (chamemos-lhe “A Horda”, nome do colectivo de personalidades que habitam este corpo em implosão)? Representam, antes de mais, um princípio de separação e de união, lição de montagem (extra)cinematográfica que se vai convertendo, lentamente, em mais uma prelecção à maneira do Sr. Glass: existirá na doença mental uma potência qualquer ainda por reconhecer? Será que a dificuldade ou a deficiência pode ser, afinal, como um super-poder?
Em Split, não temos o teórico de serviço Sr. Glass, mas temos a psicanalista do herói-vilão “fragmentado” encarnada por Betty Buckley. Ela especula sobre o estado do seu paciente como o Sr. Glass haveria de ter feito, mas este último talvez com base não em Jung, Freud ou Lacan mas numa banda desenhada de X-Men. E, quanto mais o filme deixa difundir a especulação sobre o nosso lugar no mundo e a possibilidade da existência de um “sexto sentido” associado à doença mental, mais Split se (re)aproxima do universo dos super-heróis.
Split “tira partido”, desta forma, dos principais elementos da retórica dos filmes de super-heróis, trazendo-a para a dimensão muito mais humana – e, por vezes, suja, feia e violenta – do cinema de terror. Com isso, representou e representa uma chapada nas fuças “da situação”, no empestado e ensimesmado (quase fascizante) discurso vigente sobre a santa providência de homens e mulheres super-musculados (corpos de uma perfeição quase ariana) e super-armados (a supremacia não é moral, é essencialmente belicista, afirmação da força pela força) que nos vêm salvar do absoluto caos (dentro de uma lógica ora vingativa, ora paternalista, em ambos os casos, sempre adestradora).
Não, continuamos na “base” de toda esta elevação cósmica do super-herói a super-ditador; nos filmes de Shyamalan, por sua vez, partimos do “agora”, de dificuldades mais profundas, ligadas aos labirintos e obstáculos da mente, acima de tudo, desencadeados por uma guerra que é mais nossa connosco mesmos do que contra um vilão facilmente identificável, a quem cabe a alguém (um belo brutamontes qualquer) dar uma lição, quer dizer, um arraial de pancadaria envolvido pela mais exuberante logística do CGI. Há mais nuance no mundo de Shyamalan, até porque os vilões – as complicações do mal (Glass ou “A Horda”) diante da realização deprê do bem (David) – são muito mais interessantes e centrais na sua obra. E também nos dizem respeito, quer dizer, dando a volta a um coloquialismo grosseiro (“por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”), fica claro como por trás de um super-herói há sempre um grande vilão que o inventa e que, eventualmente, por força dos seus múltiplos talentos (ou debilidades tornadas em super-poderes), o supera.
Será que Split, qual filme de cativeiro com todos os condimentos de um horror movie, não poderá ser, afinal, um filme de super-heróis que, com um certo nojo, se (re)vê ao espelho? O “problema de identidade” no filme é o “problema de identidade” do filme – este é o grande twist que Shyamalan nos reserva. Não é um twist vazio ou um exercício simples de crítica especulativa (ou especular). Em Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006), escreveu-se que, com arrogância, Shyamalan acertou contas com a crítica de cinema – que tanto maltratou The Village (A Vila, 2004) –, gerando no seu mundo de fábula a personagem de Farber (Bob Balaban), o crítico desencantado que acredita que “there’s nothing new under the sky”. Em Split, o acerto de contas é ainda mais ambicioso: faz-nos subir tão alto que vamos conseguir resgatar no tempo da memória um subestimado filme seu, datado de 2000, uma redescoberta origin story que se dirige muito directamente aos nossos dias ou a tudo o que aconteceu “entretanto”, durante essa “fase que durou demasiado tempo”, para citar Jodie Foster numa entrevista recente, referindo-se, claro, aos filmes de super-heróis.
Assim, o que é surpreendente aqui não é só o facto de Shyamalan inventar o que poderíamos denominar de metatwist, ou fazer uma das mais descabeladas afirmações autorais da história do cinema, mas também, ou acima de tudo, o facto de vir reclamar, com vaidade – justa vaidade, na minha opinião – e sentido de aventura – bem-vinda aventura, na minha opinião –, o direito a retomar uma anti-mitologia dos super-heróis que nasce das entranhas de um drama filmado à altura de personagens quebradiças e (como se diz no filme também dando a volta ao texto) “puras”: “The broken are the more evolved”, conclui “A Horda”, quando se apercebe das marcas de tortura que a personagem de Anya Taylor-Joy carrega no corpo, fruto dos abusos cometidos pelo tio. São os “puros” que a trilogia composta por Unbreakable, Split e Glass louva: os de personalidade quebrada, personagens que foram testadas pela vida, obrigadas, por isso, a se reinventarem na ausência de sentimentos já não tão universais como isso, tais como o amor e a compaixão.
Em Split, Shyamalan retrabalha o seu universo autoral a partir da mente desdobrável do vilão da história, mas, afinal, que vilão é ele se acabará por surgir aos nossos olhos, bestialmente, como um alter ego da doce, mas taciturna, jovem protagonista? Vilão ou herói, a sua cabeça gira, indecisa, como quem não sabe o que vestir para o momento que se aproxima – também nós dificilmente estaremos preparados para ele. Quanto mais a psique se desdobra, mais o cinema de Shyamalan se vai dobrando sobre si mesmo, até ficar claro que este filme veio ao mundo para repar(t)ir outra obra que se julgava bem protegida lá atrás.
De resto, olhe-se para a forma como Shyamalan constrói toda a cena do sequestro, mais uma sequência de abertura absolutamente magistral. A câmara guarda quase tudo para si, mas os olhos gigantes de Anya-Taylor Joy [com olhos maiores ainda que os de Zooey Deschanel em The Happening (O Acontecimento, 2008)] gritam por tudo, tudo o que aí vem. É uma cena meticulosamente construída no espaço off e não é a única coisa em Split que me faz pensar em Brian De Palma [Raising Cain (Em Nome de Caim, 1992)], Alfred Hitchcock [Psycho (Psico, 1960)] ou Jacques Tourneur [a este último fica reservada uma referência final muito óbvia a Cat People (A Pantera, 1942)]. O resto do filme não terá a mesma inventividade de câmara – o que é uma pena –, mas o ritmo da montagem e o enleio da narrativa – o modo como se vai teorizando à frente da nossa ansiedade – não podem pertencer a outra coisa senão a uma maquinaria impecavelmente oleada. Essa maquinaria habita uma cabeça que faz girar as ideias, remontando-as por dentro sem medo do falhanço ou do ridículo, e um coração que trata as personagens – até as mais vis – como parte de uma grande família que se quer unida e sempre protegida, qual zoo sentimental pós-spielberguiano.
Glass é o filme mais difícil mas também o mais necessário de toda a trilogia. Sobre os seus ombros recai a tarefa hercúlea de produzir a síntese entre os dois primeiros tomos. Contudo, acaba por se revelar o derradeiro exercício sobre, simultaneamente, a possibilidade real da vinda providencial de um ou de vários messias e o seu desmascaramento ideológico. Passámos de uma “sociedade de medíocres” para o limiar de uma “sociedade de iluminados”, em que o super-heroísmo é abraçado como uma possibilidade, logo, também o é a ideia de que haverá, de facto, seres excepcionais, nomeadamente aqueles que temos como “monstruosos” ou “falhados”. O que Shyamalan ensaia é uma espécie de desencantado Animal Farm, uma revolta final, meticulosamente delineada, em defesa de todos aqueles – tidos como monstros – que “o sistema” procura eliminar para “manter o equilíbrio das coisas”.
É um filme feito em camadas, que se presta a voltas e reviravoltas na narrativa pesadamente discursiva, quase como um filme de acção com pouca ou nenhuma acção – as lutas mais espectaculares estão a cargo das diferentes teses e mundivisões que “vão a jogo” e ganham corpo. Neste particular, Shyamalan reserva para o final de Glass o maior “grito do Ipiranga” deste seu cinema de forte cariz humanista, colando as pontas soltas num último act em que os protagonistas são “aqueles que amam”, “aqueles que compreendem”. Quem mesmo? A mãe (do Sr. Glass), o filho (de David) e a “namorada” (assim é referida Anya Taylor-Joy por uma das personalidades de “A Horda”, o miúdo de nove anos Hedwig). Nesta humaníssima conspiração está a despedida mais justa, de proporções planetárias, como que tornando o que acabámos de assistir em super-evento mediático capaz de abalar os alicerces desta nossa tão descrente organização social.
Se Unbreakable, ode crepuscular a todos os heróis sem heroísmo, era o filme ideal para estar à sombra da vindoura febre dos filmes da Marvel e DC, Glass é a perfeita primeira pedra a ser atirada ao sistema, porque se propõe a estilhaçar a doxa, fruto da sua densa desmontagem do que é um super-herói, cantando, como já acontecera em Lady in the Water, a possibilidade de um regresso à fé no humano, mesmo que, para tal, se conte uma história fantástica ou uma fábula ou, fórmula ainda melhor, uma soap fable. O grande embate fica reservado para o final em que este reconhecimento ou entendimento ganha expressão planetária, difundindo-se de forma viral por todo o mundo. Antes de super-vilões e super-homens, falemos de pessoas, das suas batalhas pessoais e guerras com um mundo em que tudo se compartimenta, com ligeireza, entre “bem e mal” ou “justo e injusto”.
Portanto, estamos na presença do filme mais político (uma espécie de agit-prop por uma nova Kulturkritik) e densamente filosófico de Shyamalan, pelo menos desde The Village. Raramente se trabalhou assim no mainstream, indo até ao tutano das ideias e autorizando uma notável liberdade formal, de câmara e interpretativa (um filme de super-heróis verdadeiramente “concretista” ou eminentemente teatral?). Neste ponto, queria sublinhar: não acho que se tenham despendido adjectivos suficientes para caracterizar a composição proteiforme de James McAvoy, que está ainda mais espantoso aqui do que em Split, elevando a sua personagem “do animal” de mil faces a persona shakespereana. Sem perder o pé no melodrama e no sentimentalismo soap de clara ascendência spielberguiana, Shyamalan dinamita questões relacionadas com o poder, a sua própria retórica, quer dizer, o seu papel na construção de diferentes “discursos de verdade” e a criação de mitos ou lideranças no espaço público/mediático.
Eis, enfim, o filme-síntese dos dois títulos anteriores de Shyamalan e uma espécie de lição final desta “fase” de Hollywood. Não acredito que haja muito mais a retirar destas mais de duas décadas de domínio do género do filme de super-heróis: uma obra que se inspira e se eleva perante uma mitologia dada, assente no universo dos comics, para depois nos devolver de maneira brutal e com imensa compaixão (sem pirotecnia de encher o olho, e esvaziar a alma, ou de acção brutamontes, para estoirar tímpanos) à vida, de onde Hollywood nunca nos devia ter feito sair tão completamente.
Em conclusão, diria que Unbreakable, Split e Glass estão para a década dos super-heróis como outras trilogias “míticas” estão para “o espírito” do seu tempo, a título de exemplo e ressalvando todas as diferenças: a Trilogia da Incomunicabilidade de Antonioni para os “modernos” anos 60 ou a trilogia The Godfather (descontando o desfasado terceiro tomo, que sai nos anos 90) para a Nova Hollywood. A sua relevância cultural e cinematográfica é inestimável, ainda que nem sempre reconhecida. Revisitar estes filmes só serve para atestar a sua ousadia metatextual, que encontra o sentido épico na revelação do humano. Shyamalan põe à vista o seu brilhante modo de criar personagens (de problemas) palpáveis e de as inserir num universo fantasioso, embrenhando-se e embrenhando-nos, de maneira audaz e apaixonada, numa profusão de referências e ideias, qual sopa discursiva que nos “dá texto” para dar e vender sobre os nossos tempos e o que ainda não sabemos sobre eles. Uma trilogia contra a qual continuaremos a actualizar as lições da História relativas ao que fomos e ainda podemos vir a ser. Pura potência dramatúrgica.