Os filmes de super-heróis inscrevem-se, por diversas razões, numa história urbana do cinema americano: reutilizam um grande conjunto de imagens (os arranha-céus, os telhados, as pontes, mas também as janelas ou as “fire escapes”) que remetem para Nova Iorque, ao mesmo tempo que herdam a relação do expressionismo alemão com a cidade como “visão”, que podemos encontrar no film noir e cinema de fantasia/fantástico. Veremos como se desenvolve a cidade super-heróica, tanto no seu legado como nos lugares recorrentes que se destacam e nos simbolismos de que se reveste para determinar a ligação entre o super-herói e este cenário.
Às origens da cidade super-heróica: expressionismo e film noir
A ligação já fora traçada entre Metropolis (1926), de Fritz Lang, e Batman (Batman Regressa, 1991), de Tim Burton, em torno, nomeadamente, do padrão da Torre de Babel (Rockefeller Centre no filme de Tim Burton), estendendo-se ao film noir e à ficção científica [Blade Runner (Blade Runner – Perigo Iminente, 1982) de Ridley Scott] [1]. Coração da cidade, ligada muitas vezes à questão e aos desafios finais do filme [Batman Begins (Batman – O Início, 2005)], a torre, no entanto, inscreve-se num cenário mais vasto de arranha-céus entre os quais voam os super-heróis. Filmada de noite, uma figura escura (fato preto de morcego do Batman ou vermelho carmim do Daredevil) evolui, esta vila super-heróica herda o imaginário expressionista.
A cidade negra
A cidade dos filmes de super-heróis afirma-se como um lugar de combate entre conceções diferentes, duas visões, e coloca-se como herdeira da cidade expressionista, tal como é retratada nomeadamente no Das Cabinet des Dr. Caligari (Gabinete do Doutor Caligari, 1919), de Robert Wiene. Descobrir Gotham ou Nova Iorque através dos olhos de um personagem que viu os seus pais serem assassinados (Batman, Daredevil) ou pelos olhos de um adolescente que sonhava lá morar (Homem-Aranha) determina o aspeto geral que será aquele da cidade: sombria e chuvosa, por um lado, e diurna e colorida, do outro. A vila super-heróica está assim inexoravelmente ligada ao olhar de quem a narra, ao olhar do espectador.
Preparando o espectador para o drama ou para o sonho que vai levar o herói a percorrer a cidade, muda-se a maneira de filmar a cidade uma vez que os heróis a sobrevoam. Estes filmes associam sentimentos e poderes físicos a uma maneira nova de ver/filmar o cenário. O olhar do super-herói sobre a cidade será oposto ao do seu inimigo. Assim, um Lex Luthor em Superman Returns (Super-Homem: O Regresso, 2006) ou um Ra’s Al Ghul em Batman Begins quer destruir a cidade para construir uma outra, e o outro, Superman ou Batman, quer modificá-la do interior, sem fazer tábua rasa. O inimigo do super-herói quer sempre mais pela cidade: Lex Luthor quer mais terra, Max Shreck quer mais energia (Batman), Ra’s Al Ghul quer mais que a contenção dos problemas: a sua neutralização [2]. Convocando uma visão da cidade, que remete para Sodoma e Gomorra do Antigo Testamento e à devassidão da Babilónia no livro do Apocalipse, o inimigo posiciona-se como punidor e purificador. O vilão dos filmes de super-heróis oscila na sua relação com a cidade, entre a Génese (Sodoma e Gomorra) e o Apocalipse. O super-herói, por querer salvar os Justos, está ao lado de Abraão. No que respeita à sua relação com a Génese, com as origens, com a fundação, o super-herói opõe-se ao seu inimigo que se posiciona enquanto agente do apocalipse purificador. Na verdade, o inimigo do super-herói revela ter um projeto para a cidade, enquanto objeto físico (ou pelo menos um projecto que se sirva dela), quer seja um projecto de construção ou destruição (“Imagina tudo o que poderíamos criar e destruir juntos”, sugere o Duende Verde a Homem-Aranha), enquanto o super-herói aspira a preservá-la.
Assim, o super-herói e seu inimigo, à semelhança das restantes personagens, falam constantemente da cidade, referindo-se a ela na terceira pessoa: “Gotham foi boa para a nossa família”, diz o pai de Bruce Wayne a seu filho em criança; “Quero salvar a cidade, mas, com a ajuda de Elektra, salvei-me a mim mesmo” (Daredevil). Encontramos, na banda desenhada, monólogos incessantes e por vezes amorosos entre o super-herói e a cidade: “Tu és linda, Nova Iorque… Adoro-te” [3]. A cidade torna-se o objeto de atração das personagens, tal como poderíamos encontrá-la nos films noirs, que mostram mafiosos contra polícias zelosos, lutando uns contra os outros pela mesma cidade que, um, afirma querer possuir e, o outro, defender. Desenvolve-se uma mitologia urbana que os filmes de super-heróis retomam: as personagens vivem no topo de edifícios, cujas portas envidraçadas têm vista sobre a cidade que lhes pertence [imagem recuperada da mise en scène da personagem Caid, em Daredevil (Demolidor – O Homem Sem Medo, 2003)], docas nas quais tomam lugar negócios ilícitos, ruas sombrias enfumaradas pelos vapores das aberturas de ventilação, reuniões de mafiosos que se matam uns aos outros [Elektra (2005), The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, 2008)], cena fulcral em que o herói perde diante os seus olhos a sua família [Punisher (Punisher – O Vingador, 2004)], inspiração irrealizável de trocar a cidade pelo campo ou um subúrbio tranquilo, redentor [The Incredible Hulk (O Incrível Hulk, 2008), Elektra]. Na retoma deste conjunto de imagens e de temáticas da cidade noir (questões de vingança e de justiça), o filme de super-heróis apropria-se do género e altera as suas personagens: na cidade super-heróica tudo se pode tornar noir, inclusive os super-heróis [Spider-Man 3 (Homem-Aranha 3, 2007), The Dark Knight].
Assim, contrariamente aos filmes de ação por exemplo, o filme de super-heróis vê a personagem central e o seu inimigo combaterem não por uma mulher, mas pela cidade: “Esta noite, a cidade será minha”, afirma Joker (The Dark Knight). No fundo, um dos desafios consiste em saber qual dos rostos, o do vilão, da mulher ou do super-herói, representará a cidade. The Dark Knight conta como Batman quis dar outro rosto à sua cidade, contra aquele de Harvey Dent, que é apresentado como “o rosto brilhante de Gotham”; Spider-Man 2 (Homem-Aranha 2, 2004) conta como Mary Jane se sobrepõe à cidade no coração do Homem-Aranha (o seu rosto cobre as paredes). Mas em Spider-Man 3, o super-herói sucumbirá ao fascínio do seu próprio rosto difundido pela cidade, o seu nome afixado nos jornais, na Times Square, possibilidade da qual o seu escurecimento revelará a contradição: o super-herói não pode ser o rosto bem amado da cidade e, ao mesmo tempo, ser capaz de protegê-la. The Dark Knight chega à mesma conclusão, indo até mais longe: o herói deve fazer com que a cidade o odeie, para que a consiga proteger. Não só não pode habitar o seu espaço urbano e ser a sua imagem, mas deve fazer com que a sua imagem seja detestada pela generalidade dos habitantes (Daredevil retratado como um monstro, Homem-Aranha acusado na capa do Daily Bugle).
Essa aceitação por parte do super-herói, do seu carácter sombrio, passa pela destruição do cenário simbolicamente branco da infância, da inocência do herói, cenário da sua nascença, da sua infância real (casa da infância de Batman ou Elektra) ou simbólica (base militar subterrânea onde Logan se transformou em Wolverine, local no Ártico onde se encontram os restos do planeta do Super-Homem): por isso, a base militar debaixo da neve, a casa de Bruce Wayne coberta de lençóis, a cidade deserta de Hulk iluminada pelo sol do deserto, todos estes locais que o herói reencontra serão destruídos no decorrer do filme. Uma vez esses lugares, exteriores à cidade, estejam destruídos, como se fosse imperativo que o cenário desaparecesse, que desaparecesse qualquer corpo que não o urbano ligado à imagem do super-herói, este não terá outra escolha senão a de retornar à cidade [Batman vive em Gotham após a destruição da sua casa (The Dark Knight)], que o atrai mesmo quando longe, assim envelhece o Batman na banda desenhada de Frank Miller: “É à noite que o cheiro da cidade o chama, mesmo que descanse em lençóis de seda numa mansão milionária a quilómetros dela” [4]. O super-herói inscreve-se assim na tradição literária americana: “o herói ou anti-herói da literatura criada do outro lado do Atlântico é um ser que tenta escapar à cidade, apesar de não poder resistir ao seu apelo, e que, uma vez apanhado nas suas redes, é regularmente ferido” [5].
Nova Iorque, Nova Iorque
Apesar de noir, a cidade dos super-heróis pretende ser realista. Quer explicitamente [Spider-Man (Homem-Aranha, 2002), Fantastic Four (O Quarteto Fantástico, 2015), X-Men (2000)], quer enquanto fonte de inspiração, trata-se na maior parte das vezes de Nova Iorque. Assim, o nome de Gotham City (cidade dos Batman) vem de uma alcunha dada por Washington Irving à cidade de Nova Iorque. Em relação à cidade de Metropolis imaginada por Fritz Lang, ela “teve origem na primeira visita de F. Lang a Nova Iorque em 1924 e na sua visão das torres de Manhattan” [6]. Nova Iorque mistura “cidade horizontal” e “cidade vertical”: há a Nova Iorque de Manhattan povoada por arranha-céus e aquela de “edifícios e casa residenciais que, longe dos arranha-céus de Wall Street ou dos tenements do Lower East Side, constitui a outra face de Nova Iorque”. Nos filmes de super-heróis, essa dualidade da cidade é visível: o super-herói vem da cidade horizontal (Peter Parker mora numa casa residencial) e dirige-se até à cidade vertical, ambas as visões se reúnem graças à transformação do herói: Peter descobre os seus poderes, enquanto salta pelos telhados do seu bairro, no fundo notam-se os arranha-céus. Nova Iorque, cidade dupla, revela-se um cenário privilegiado para os seus super-heróis, prolongando as suas próprias dualidades.
A cidade nova-iorquiana dos filmes de super-heróis difere, na mise en scène, da forma como a filmam outros realizadores, de Martin Scorsese a Spike Lee, passando por John Carpenter: não se encontra dividida em clãs, por raça ou classes sociais. Em Spider-Man, a multiplicidade da população é mostrada por um micro-passeio de pessoas diferentes a dar as suas opiniões sobre o Homem-Aranha. A população da cidade super-heróica parece ser variada e unida, mesmo podendo ter opiniões divergentes. Nos filmes de super-heróis, as cenas onde a população se une em torno do seu herói são frequentes: habitantes lançam objetos à cara do Duende Verde para o obrigar a fugir (Spider-Man) ou apanham o seu herói prestes a cair (Spider-Man 2), aplaudem aquele ou aqueles que acabam de conseguir uma proeza (Fantastic Four, Superman Returns). A cidade super-heróica, pela maneira como é filmada, procura restaurar uma identidade, uma individualidade aos seus cidadãos, isolando-os, o tempo de um plano ou de uma réplica.
O corpo da cidade
A cidade super-heróica descobre-se pouco a pouco: as suas artérias, ruas, becos ou vias ferroviárias parecem guiar o herói até aos mesmos cenários. Não só estes cenários interiores e exteriores ordenam a cidade, mas participam também de uma questão de figuração: a trilogia Spider-Man, Batman Begins, The Dark Knight interrogam-se sobre o rosto e o corpo a dar à cidade, que é a deles.
Cenários recorrentes
Os filmes de super-heróis organizam a sua cidade em torno de alguns planos gerais e locais sistemáticos: os planos exteriores de um local introduzem frequentemente uma cena no seu interior; os planos gerais da cidade, de dia ou de noite, servem habitualmente de transição entre sequências, por vezes de entrada no filme. No entanto, esses planos e cenários refletem, às vezes, uma finalidade totalmente diferente daquela que inicialmente lhe atribuiríamos.
Lá fora
Podemos dividir os exteriores da cidade super-heróica em três grandes tipos: estrutura-se em torno de locais de passagem (de transição), de ação (onde o drama se forma ou desenlaça) e de descanso.
Locais de passagem
Se temos a sensação de que os super-heróis observam mais as ruas do que nelas se passeiam, os filmes proporcionam momentos de deambulação que significam, na maior parte das vezes, um retorno à normalidade, à calma. A rua é o espaço onde o super-herói aparece sem máscara, onde se passeia frequentemente acompanhado, mas também um espaço de perseguições loucas aéreas e terrestres entre o super-herói, que voa ou salta, e um carro ou um camião. A rua é um lugar de passagem espetacular, quer seja o de um corpo a baloiçar entre táxis ou o de um corpo em câmara lenta numa cena que assume a forma de clipe (Spider-Man).
O beco, cortando a rua principal, é onde o super-herói vai para se mudar (ou, pelo menos, sair do fato). Às vezes, o herói salva lá alguém, inclina-se sobre o corpo de um ente amado ou maltrata outro corpo. O beco é frequentemente chuvoso e polvilhado com lixo, grandes lixeiras para onde o super-herói ou o seu inimigo ricocheteiam quando caem. Será num deles que o Homem-Aranha descarta o seu fato (Spider-Man 2), simbolicamente atira-o no local destinado habitualmente a ser o espaço onde se veste. Mais que na rua, é no beco que o super-herói se revela: o jovem Matt Murdock afronta aqueles que o martirizavam antes do seu acidente (Daredevil), Peter Parker descobre as suas novas capacidades (Spider-Man) e perde-las (Spider-Man 2). É no que faz quando ninguém está a ver que o herói se reconhece: assim, em The Dark Knight, o procurador “cavaleiro branco” Harvey Dent revela-se potencialmente capaz de assassinar um homem, deixando aparente, pela primeira vez, a dualidade que florescerá em Double-Face. O beco é um local de revelações, enquanto a rua permanece um local de espetáculo.
A ação
O cemitério constitui um local de rutura amorosa: após o enterro do Duende Verde, Mary Jane confessa o seu amor a Peter, que lhe diz que não acontecerá nada entre eles (Spider-Man); após o enterro do seu pai, Elektra põe fim à relação com Matt Murdock (Daredevil); no enterro do professor Xavier, Bobby que segura a mão de Rogue de um lado, agarra a de Kitty do outro [X-Men: The Last Stand (X-Men: O confronto final, 2006)]. O local e o que se passa resume-se a uma constante: o super-herói não pode ter histórias de amor sem que haja mortes.
O simbolismo do porto e das docas, locais de chegada e de partida das cidades, encontra-se em Batman Begins: local onde Bruce Wayne deixa Gotham e (re)age como Batman pela primeira vez. Em Daredevil, é o local onde o jovem Matt descobre que o seu pai colabora com a máfia e perde a vista. A berma da água é o espaço da revelação: para Batman, de partir para longe, para Matt, da traição do seu pai. É, ao mesmo tempo, local de suicídio, de morte: Hulk atira-se para a água com o seu pai, Octopus, e mergulha… No mundo dos super-heróis, a água que rodeia a cidade/o super-herói engole o que a/o submerge do interior.
A ponte separa: encontramo-la em Batman Begins para isolar duas partes da população, é mostrada sem qualquer espaço onde os navios possam acostar em X-Men: The Last Stand, separa os seres (A Coisa e sua mulher em Fantastic Four). É a fronteira sobre a qual o super-herói está, como o Punisher no final do seu filme, entre duas cidades ou dois mundos, entre dois tempos também, pois um lado da ponte representa o local passado da ação enquanto que, do outro lado, se situa o futuro.
Sem pontes, isoladas do mundo, ilhas e ilhotas povoam os filmes de super-heróis. A ilha ou ilhota representa o local onde um personagem pensa ou acredita estar ao abrigo da hostilidade do mundo, protegido, mas transforma-se numa prisão: a ilha onde se reúne a numerosa família de Frank Castle e onde todos , excepto ele, serão assassinados (Punisher), a ilhota de Gotham cuja ponte é fechada para conter o gás tóxico (Batman Begins); o pedaço de ártico que constitui o lar do Super-Homem e que Lex Luthor vai violar (Superman Returns); a ilha de Alcatrraz, onde se encontra prisioneiro o menino capaz de “curar” os mutantes dos seus poderes (X-Men: The Last Stand). Não há segurança em lugar algum.
Os locais de pausa
Os telhados da cidade são o local onde aparece tradicionalmente o super-herói. Local de perseguições frenéticas entre os criminosos e a polícia em filmes de ação [8], os telhados, nos filmes de super-heróis, tornam-se um local onde a personagem vagueia sozinha, seja para lá encontrar tranquilidade ou usando o espaço como atalho para se dirigir até à cena de crime. Local que simboliza o intermédio, onde está o herói, entre o céu e a terra, entre as ruas e a cidade onde passeia a sua identidade civil e os céus, lá em cima, para onde se lança, o telhado é uma espécie de fronteira vertical, onde a ponte representa uma fronteira horizontal: se a ponte é um separador entre os dois momentos do super-herói e da cidade, o telhado separa duas existências: aquela de baixo que observa e onde certas coisas poderão ser simples [beber um café com a rapariga que ama, como em Hellboy (2004)] e aquela em que a solidão é obrigatória [levar uma rapariga até ao telhado significa vê-la morrer algumas cenas mais tarde (Daredevil)]. De cada lado da ponte, o passado e o futuro; debaixo e sobre o telhado, o imaginário e o real, segundo uma lógica espacial de inversão para o super-herói.
Assim, o exterior revela-se um local de contrastes e de contradições, local de revelações que o super-herói, por vezes, desvia da sua função: a ponte não liga duas terras, mas o contrário, separa-las; o tribunal simboliza o fim da crença na justiça; fala-se de amor no cemitério, etc. O filme de super-heróis, pelo olhar da sua personagem, revela a face escondida dos cenários exteriores. Será que o cenário interior obedece à mesma lógica?
A fortaleza interior
Os inícios dos filmes de super-heróis propõem, por vezes, cenas em que o super-herói assiste a um espetáculo que decorre no teatro da cidade. O que é encenado (a ópera Mephistofele de Arrigo Boito em Batman Begins, A Importância de Ser Prudente de Wilde com Mary Jane em Spider-Man 2 e o musical onde a mesma canta no início de Spider-Man 3) conta, prefigura, dentro do filme, o destino ou os sentimentos do herói (o lado faustiano de Batman, a inconstância de Peter Parker, o amor que Peter crê ter por Mary Jane). Os espetáculos que são encenados no interior da cidade ressaltam de forma particular graças ao olhar do herói, que se irá pessoalmente investir neles, dar-lhes-á sentido, no espaço exterior.
A mansão labiríntica, como a casa de Bruce Wayne [Batman (1989)], ou a escola de X-Men onde Wolverine tenta encontrar o seu caminho, reproduzem, de certa maneira, o labirinto que constitui a própria cidade. Além disso, alternando uma parte rica e visível e um subsolo secreto, estes locais onde residem os super-heróis refletem a cidade, e a sua dicotomia entre arranha-céus impressionantes e subterrâneos povoados de criminosos, entre o mundo das aparências (aquele de receções chic, de uma escola para sobredotados) e a realidade secreta (a Batcaverna, a cave onde se encontra escondido o jet dos X-Men). Mas a casa ou apartamento do super-herói é, na maioria das vezes, um lugar mais minimalista: lençóis cobrem móveis da casa de infância de Elektra ou Batman, o quarto do Homem-Aranha está pouco mobilado (Spider-Man 3). Ao contrário da desmedida da personagem, o interior do super-herói está associado ao despojamentto, da roulotte de Wolverine à falta de alojamento de Clark Kent.
O quarto de hospital é igualmente um local comum em numerosos filmes de super-heróis. Quer o herói se encontre deitado numa cama ou vá visitar um parente, o quarto de hospital torna-se o local da reconciliação: entre Peter e Harry, entre Matt Murdock e seu pai; local também de declarações amorosas implícitas (de Betty a Bruce, de Lois a Super-Homem, de Peter a Mary Jane). A verdadeira cura passa pelo perdão ou pela confissão amorosa: o super-herói está doente de culpa e de amor.
A receção mundana é um local onde são postas e tiradas máscaras numa espécie de ballet sem fim. Lá, o Homem-Aranha descobre a história de amor de Mary Jane (com Harry, com o astronauta) ou beija uma outra rapariga (Gwen Stacy em Spider-Man 3); Bruce Wayne descobre quem é na verdade Ra’s Al Ghul e finge estar bêbado para se despedir dos seus convidados (Batman Begins). Sob a sua identidade civil, o super-herói em plena receção mundana coloca outra máscara.
Os subterrâneos da cidade representam o local onde se escondem os atos ou objetos de vergonha (Homem-Aranha assassina Homem-Areia em Spider-Man 3) e de medo. Assim acontece com o Pinguim ou os morcegos de Batman, aqueles que o filme vai trazer à superfície como acontece com Fox, condenado à cave do prédio Wayne e trazido de volta aos andares superiores por Bruce (Batman Begins). O super-herói inverte a cidade.
A igreja é um local de transição radical: o vilão reza pela morte de outro (Brocks em Spider-Man 3) ou quer forçar uma mulher a casar-se com ele e acaba finalmente por travar o combate final com o super-herói (Joker em Batman)[9], um a jovem deve casar-se mas não está presente na cerimónia (Mary Jane no final de Spider-Man 2), o super-herói, ao som dos sinos, tira o seu fato maléfico (Spider-Man 3) ou, depois de abraçar a cruz que domina o lugar, colapsa por dentro (Daredevil).
Assim, o cenário interior acrescenta muitas vezes um novo nível de contradição ao herói, lugar que o desvia das suas características inicias. O super-herói eiva os cenários da dualidade com a qual ele próprio se debate, fazendo do interior o local de um novo desdobramento que vê a personagem produzir um jogo sobre a fronteira entre os dois seres, fronteiras frequentemente figuradas pelos reflexos, retratos e janelas com que se cruza.
A cidade é uma mulher
“The city is always she” [10]. Esta cidade por onde o super-herói entra (quase) ao mesmo tempo que adquire os seus poderes e decide como os utilizar, está intimamente ligada à sua história amorosa. Encontrando dentro da cidade aquela que ele ama (Homem-Aranha) ou, apaixonando-se por uma das primeiras mulheres com que o vemos cruzar-se (Super-Homem, Daredevil), o super-herói terá o seu coração dividido entre o urbano e o feminino.
A entrada do super-herói na cidade é uma entrada num corpo, em primeiro lugar no seu corpo de super-herói: Homem-Aranha mergulha no seu corpo desenhado de aranha; a cidade reflete-se nos olhos de Daredevil antes que ele mergulhe nela quando aparece pela primeira vez. Mas, ao mesmo tempo, uma personagem tornar-se ou não um super-herói depende de uma personagem feminina: uma frase de Betty desencadeia a transformação de Bruce Banner em Hulk pela primeira vez, é quando olha para Mary Jane que Peter é picado por uma aranha geneticamente modificada, é debaixo dos olhos e para o olhar de uma(s) mulher(es) que Johnny Storm entra em chamas e se torna a Tocha Humana. Se essa mulher revela ou desperta o super-heroísmo, é na cidade que se vem expor, florescer, pondo a mulher e a cidade em rivalidade: sair com Mary Jane ou salvar Nova Iorque, casar-se sobre os telhados da cidade ou salvar o mundo [4: Rise of the Silver Surfer (O Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado, 2007)], deixar-se derreter sob o olhar de Betty ou matar os soldados que o cercam em San Francisco [Hulk (2003)].
Os super-heróis não deixarão de querer conectar os dois, cidade e mulher, na mesma relação amorosa. Para o fazer, Spider-Man 2 dará a Nova Iorque o rosto de Mary Jane. O devir-mulher da cidade, podendo significar a um dado momento do filme que salvar a cidade é igual a salvar a mulher, não está no entanto isento de tensão. Uma luta, uma rivalidade alimenta as relações entre a cidade e a personagem feminina, a cidade destrói a mulher que começa a ser a sua rival: Elektra, que vive uma história romântica com Daredevil, morre sobre os seus telhados; Mary Jane, famosa no teatro (Spider-Man 2), razão pela qual se mudou para “a cidade” (Spider-Man), é despedida da peça onde canta o seu amor por Peter (Spider-Man 3).
A cidade simboliza certos aspectos do sentimentos tortuoso (labiríntico) que o super-herói sente pela mulher – e, reciprocamente, é disso testemunho a bolha que comenta o início de uma aventura de Daredevil: “Esta cidade, ela (Elektra) odeia-a. Ela detesta inalar este ar que ele respira, ela amaldiçoa a calçada que pisa e esse labirinto de betão cuja arquitetura os une, ela e ele” [11]. Reencontrar a mulher, juntar-se novamente a ela, é o desafio de um trajecto complicado, sinuoso, cheio de desvios pela cidade. A viagem do super-herói é difícil porque envolve a busca do inimigo pela cidade labiríntica e a tentativa de reencontrar a mulher. Nesse sentido, o super-herói será uma mistura entre Teseu e Ícaro: como Ícaro, preso com o seu pai Dédalo no labirinto do Minotauro, o super-herói constrói asas para sair. Como Teseu, avançando dentro do mesmo labirinto, em busca do Minotauro, guiado pelo fio de Ariana, o super-herói avança sobre a cidade graças aos fios (cabos ou singelos fios de Batman e Daredevil, teias de Homem-Aranha) que, aproximando-o do monstro, o distanciam da mulher enquanto a mesma, pelo seu discurso, o guia (Rachel Dawes e seu “é o que fazes que conta”), o empurra (“Go get them, tiger” diz Mary Jane a Homem-Aranha).
A cidade dos super-heróis
De sentidos afiados e reflexos fora do normal, o super-herói vê e ouve a cidade onde vive de maneira diferentes dos outros humanos. O herói está ligado à cidade de uma forma inseparável. Assim os genéricos de Homem-Aranha ou de Punisher testemunham: as teias formam linhas de edifícios que aparecem no ecrã ou a caveira desenhada, símbolo do Punisher, deixa escorrer tinta para que se funda com os edifícios da cidade de Tampa visíveis na imagem. O super-herói participa no desenho e no plano da cidade.
Os super-heróis (e seus inimigos) falam da cidade na terceira pessoa. Mas a cidade fala-lhes igualmente de volta (“Welcome back, Frank says to New York City” na abertura do segundo capítulo das aventuras do Punisher [12]), através de uma linguagem de signos que o super-herói, dotado de novos poderes e de um novo olhar, aprende a descodificar. Não só o super-herói percebe sempre antecipadamente o que está prestes a acontecer (é pelo seu olhar que o filme nos mostra o perigo iminente em que a cidade se encontra), como também decifra elementos urbanos: o genérico de Daredevil faz das luzes espalhadas pela fachada de um edifício um texto em braile, legível apenas pelo super-herói. O genérico isola certas luzes, separa-as do seu ambiente urbano e tranforma-as nos nomes dos parceiros de Ben Affleck na ficção. De igual modo, o super-herói ouve a cidade, os seus gritos, num imenso burburinho que invade a banda sonora: Super-Homem, flutuando no céu, isola os sons que capta ou Daredevil, afundando-se no seu caixão para dormir, deixa-os desvanecer. Lendo ou ouvindo os sinais, respondendo aos seus apelos, esperando por eles, o super-herói põe a sua existência ao serviço dos signos da cidade, que se tornam muito mais importantes que o resto do mundo.
No fundo, o super-herói não é, como se descreve ele próprio Joker (The Dark Knight) ou como é apresentada a fotógrafa Vicki Vale (Batman), um(a) “visionário/a”. Caso esteja do lado do olhar, fá-lo enquanto “watchmen”, enquanto guarda, equipado de sistemas de videovigilância (Batman), ouvindo a frequência da polícia (Homem-Aranha), percebendo graça aos seus poderes o que escapa ao comum mortal (Super-Homem, Daredevil).
Esta cidade super-heróica aparece também como um espaço lúdico, um terreno de jogo: Daredevil desliza numa rampa; Patience/Catwoman jogam basket ou andam na roda gigante; Hellboy lança um calhau sobre o seu rival antes de se esconder atrás de uma chaminé; o Tocha Humana participa numa corrida de motas onde se inflama, todos os super-heróis se divertem na cidade, brincam às escondidas, à apanhada, saltam de trampolim, desviando o cenário dos seus atributos habituais. Em Spider-Man 3, sob o efeito do Homem-Areia, a cidade transforma-se numa caixa de areia, de onde o herói deve sair, isolar-se (nos telhados), para remover os graus restantes do seu fato. Assim, trazendo o super-herói de volta à trivialidade do seu ser (Hellboy lima os seus cornos, Homem-Aranha esvazia as suas botas cheias de areia), frequentemente ao lado de um outro, uma criança, o filme só faz existir a grandeza do super-herói enquanto permanece à altura dos mais pequenos, desde que seja compreendido por eles: assim Daredevil, tendo derrotado um “bad guy”, no seu apartamento encontra um menino apavorado ao qual tenta explicar que não é ele, Daredevil, o vilão. Na cena seguinte, de pé no topo de um telhado, repete “Não sou eu o vilão”, como que para convencer também a cidade e a si mesmo.
O filme de super-heróis multiplica os seus efeitos de mise en scène fazendo a ligação entre, no mesmo plano, o pequeno e o imenso, como o filme faz a ligação entre o humano e o super poderoso. Assim, o filme de super-heróis procura conectar no mesmo plano a pequenez do super-herói e a grandiosidade do feito que realiza dentro da própria cidade: Super-Homem aterra, segurando um avião nos seus braços, num campo de basebol de Metropolis ou recupera e deposita o globo que estava no topo do Daily Planet. Homenzinho que carrega, por vezes à força dos braços, os pedaços da cidade que se desprendem, homenzinho cujos braços em cruz impedem um metro e seus passageiros de cair sobre a cidade (Spider-Man 2), o super-herói aparece frequentemente como uma figura crística, parado sobre um edifício religioso (Spider-Man 3, Daredevil), entre ou ao lado de anjos ou gárgulas. Do Antigo ao Novo Testamento, ele é uma figura de passagem entre uma cidade ao mesmo tempo em ruínas e em construção. Encontramos, frequentemente, a dado momento nos filmes, andaimes, elementos incompletos, ruínas. O super-herói é a testemunha, mas também o ator de um mundo que se destrói: a maçaneta da porta do quarto de Peter que se parte na sua mão, a casa de Bruce Wayne que é incendiada… Face ao cenário que se parte, Homem-Aranha coloca a maçaneta no lugar, Bruce Wayne reconstrói “identicamente” fortificando as fundações. Os super-heróis não reconstroem outro mundo, outra cidade, outra casa: remodelam identicamente, porque eles próprios regressam de forma idêntica. Hermético à mudança física da sua cidade, o super-herói é na realidade hermético à sua própria mudança. Tendo aceitado o seu fato e a cidade onde opera, o super-herói preserva um e outro sobre a sua máscara.
São sobretudo os super-heróis mascarados (Batman, Daredevil, Homem-Aranha) que têm uma relação fusional com a sua cidade, provavelmente porque a defendem do interior, enquanto o Super-Homem e o Quarteto Fantástico enfrentam sobretudo inimigos e perigos vindos do exterior. Vindo do interior da cidade, o problema virá também do super-herói e é talvez por isso que cobre a sua identidade: através dessa ausência de rosto, através desse olhar onde se espelha a cidade, o super-herói encarna-a, fazendo-se de bode expiatório de uma cidade que parcialmente o odeia, lugar e questão central da sua tragédia. Assim, a cidade e o super-herói oscilam ao ritmo dos trajetos de uma personagem com toques crísticos num cenário urbano em movimento, cada um encontrando no outro um excesso que, ao mesmo tempo, corrói e exalta.
© Hélène Valmary
Tradução: Inês Pegado
Revisão: Guillaume Bourgois
O À pala de Walsh agradece à autora, professora de Estudos Fílmicos na Universidade de Caen-Normandie, o facto de ter acedido ao nosso pedido de inclusão deste ensaio, originalmente publicado no livro Du Héros Aux Super Héros: Mutations Cinématographiques (sob direccção de Claude Forest), no nosso dossier It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis.
[1] J.-. Bourget, 2002, Hollywood la norme et la marge, Paris, Nathan, p. 237-238.
[2] “A Liga das Sombras tem sido uma força contra a corrupção ao longo de milhares de anos. Saqueámos Roma, enchemos navios com ratos pestilentos, incendiámos Londres. Sempre que uma civilização mergulha na decadência, nós neutralizamo-la.”
[3] Frank Miller, Daredevil l’intégrale 1982, Marvel France, Paris, 2004, p. 9.
[4] F. Miller, 1999, Dark Knight, Delcourt, Paris, p. 5.
[5] M. Cieutat, 1987, «Ethique et symbolique urbaines», in Lise Grenier e Catherine Boulègue (Coordenação), Cités-cinés, Paris, Ramsay e La Grande Halle / La Villette, p. 72.
[6] F. Niney, 1994, «Cité radieuse et ville de perdition», in François Niney (ed.), Visions urbaines Villes d’Europe à l’écran, Centre Georges Pompidou, Coll. Cinéma / Singulier, p. 16.
[7] C. Pouzoulet, 1999, New York Construction historique d’une métropole, Paris, Ellipses, p. 65.
[8] Tornando-se novamente este o local de perseguição em The Incredible Hulk, esta mise en scène participa da passagem do filme ao filme de ação (onde recuperará certos motivos noutras cenas, como a do confronto final com a Abominação).
[9] Esta cena recorda também uma das cenas de Metropolis.
[10] Gary Cooper em The Pride of the Yankees (O Ídolo do Público, 1951), de Sam Wood.
[11] F. Miller, op. cit., p. 5.
[12] G. Ennis, 2001, The Punisher, Nova Iorque, Marvel Comics.