Como é possível reeditar, para tempos tardios como os nossos (parafernálias de dispositivos, simulacros, doppelgängers, narrativas), o mito da Musidora em Les Vampires (1915-16)? Esse que é um filme dos primórdios do século XX que só tinha para invocar fantasmagorias paranoicas (que assombravam a Mansão burguesa do boulevard Haussmann), a profundidade de campo, os efeitos especiais (ainda mélerianos mas com inflexão gótica), a fotografia pancromática e a exposição infinita à luz.
Tudo isso voltaria, em parte modificado mas de sobremaneira fiel aos primórdios, no cinema moderno de Orson Welles (dimensão mais expressionista), Jean Renoir e Jean Grémillon (estes mais clássicos mas não menos debitários de profundidade de campo, agora com o sentido de propiciar ao espectador a escolha hermenêutica para onde olhar e como olhar). Olivier Assayas aceita o desafio de tirar uma série de oito capítulos deste mito natimorto que assombrou a aurora do cinema, fascinou e mobilizou os recursos expressivos à moda na época (como a escrita automática surrealista, seu génio terrorista, o cadavre exquis). Mas como filmar um conto cheio de aura até as bordas numa era absolutamente sem aura como a nossa, que substituiu o eu-e-tu buberiano pelo olhar medusino do simulacro, que agora nos devolve o olhar vítreo e sem fundo, do basilisco tele áudio-visual? Como fazê-los crer ainda (e o classicismo, expressionista ou não, sempre foi uma questão de crença) nas escapadas pelo telhado de Musidora, muitas vezes mal restituídas na velocidade errada (o que gera, ao contrário do que se esperava, uma irresistível carga de comicidade), na hipnose de todo um petit comité, filmado na vertical com plongées acintosas que mostram todas as classes sociais (embaixadores, príncipes e criados, enfim num só buraco) sob o império de ópio, ruse e cocaína, dos meios de sedução da gangue de Musidora?
Falei da crença impossível num mundo de hoje, que é também cinicamente desencantado, e que parece querer preencher, com suas rubricas e mediações (o dispositivo, etc.) um objeto em geral anódino, insignificante ou simplesmente estúpido? A ruse suprema de Assayas foi filmar o impossível, e fazer deste um desafio sem desconhecer nenhuma das nossas atuais estratégicas de combate na representação: um mundo ontem precioso, mágico, feérico, encantador, “em campo”, um mundo sem a queda estrondosa da quarta parede, volta à Cena num formato a princípio semelhante aos seriais dos primórdios: a minissérie. É difícil (diriam os mais céticos ou revisionistas: é impossível) filmar o filmado por Feuillade depois de Franju ou Rivette (selon l’esprit), mas Assayas opta fundamentalmente por estratégias de rarefação dramatúrgicas que resultam num composto químico low profile no mínimo fascinante: todo o horizonte possível da experiência extra-diegética (ou fora de campo tópico: a câmara, a equipe de filmagem) são mobilizados para devolver uma aura, só que desta vez centrada na usina dos afetos, tendo portanto o ator como veio-condutor de tudo (depois de Maurice Pialat e John Cassavetes, como ter outro foco sem regredir à adaptação convencional, chula?).
A partir de um mito dos primórdios retomemos, pelo menos segundo a forma possível ao nosso zeitgeist, pelo modus encantatório da inervação afetiva. Reparem com atenção na reveladora cena em que a atriz principal ensaia uma dança. O coreógrafo precipita-se em dizer que “não danças para uma audiência, mas sim para a câmara”; e a câmara já lá está para a enquadrar, como, móbil e plástica, acompanhar seus movimentos, numa cumplicidade de parceiros de tantos filmes juntos. Assim como nas agruras impostas à produção como um todo de um diretor bipolar, ou nas desventuras irónicas com o ator viciado em crack.
O que Assayas tenta reconstituir com todos estes elementos esparsos mas fechados em si mesmos é a configuração de uma família, da família-cinema, um pouco como podemos pensar que foi o Antitheater de Rainer Werner Fassbinder; uma família nem sempre (aliás, em geral) não é o lugar da reconciliação, da reciprocidade amorosa, da unidade transcendente, mas o experimento de forjar uma equipe-família é extremamente instrutivo para se saber, sob, por exemplo, o ponto de vista do ator, qual é o desejo ou afeto que está em jogo, aquilo que ele se deve encarregar de encarnar, de dar um corpo e impor um ethos, pois a alteridade em família nunca está num altar irredutível situado no céu das ideias platónicas: não, uma família cola-se na pele, engrena-se, engata-se e habilita-se no corpo a corpo de uma osmose tantas vezes dolorosa: é um ring de boxe, como também uma comemoração natalícia, lugar privilegiado em geral para o negativo de opereta, com seus ressentimentos e acertos de contas; o experimento-família é aquele que, com todos os seus afetos tóxicos, seus desníveis bipolares, sua psicose criativa, permite ao filme de hoje substituir-se à família defunta dos anos 1910, um tanto como o que sabemos do pensamento grego antigo é tudo o que nos resta dos filósofos e filólogos alemães do século XIX, como Üsener e Nietszche.
Litigantes, desajustados, viciados, convulsivos, grotescos, isto é tudo o que restou depois de tantos anos que nos contemplam (pelo menos 120 desde os seriais de Feuillade), e é com a alma aberta a estas agruras remanescentes que Assayas decide reler o mito Irma Vep (1996); mas ele não é amargurado, como Pialat nos seus retratos saturados de envidia segundo Pascal Bonitzer; pelo contrário: a sua Irma Vep (2022) é um dos filmes mais descontraídos de sua carreira, um filme que apesar dos negativos acumulados, da pressão do tempo e do capital, dos ensaios infinitos, dos vícios, atesta que todo o processo de trabalho no cinema redunda numa quase-ascese divertida que faz com que os momentos no set transfigurem tudo o mais; a droga, o sexo, o humor onipresente e o trabalho bem-feito (academicismo flagrante nas cenas da filmagem, tentação auto-complacente a que o diretor de L’Eau froide [Água Fria, 1996] nem sempre consegue deixar de ceder; antes pelo contrário) são os catalisadores do afeto. É nas idiossincrasias de seus portadores (o elenco, diegético ou extra-diegético, cast and crew) em que Assayas se vai deter; dois exemplos:
1) a delicadeza deliquescente de Jeanne Balibar, prenhe de gestos evanescentes e dicção concertante, faz dela uma espécie de fada madrinha dos atores, um compassivo fio condutor de seus interesses e relações, mediadora compreensiva de seus desígnios, mesmo os infames e in extremis (ela trafica o crack sem o qual a inspiração do enfant terrible não vai funcionar, não vai “colar e pegar”, soldando o corpo do ator à persona da personagem: a droga é esta cola somática e espiritual);
2) Lars Eidinger, que faz o enfant terrible drogadito em questão: o monstruoso ator do Richard III (2015) e do Hamlet (2008) de Thomas Ostermeier, que eu vi em Berlin: terrífico e alucinatório com suas baforadas espessas de cigarro eletrónico, com seu blush borrado de gim, babado, olhos retocados a nanquim negro e face comatosa de lividez convulsa; um monstro, mas também aquele diante do qual devemos prestar honra e graças, porque, como dizia o ator doloso aliado de Hitler, o madman Brandauer, “ele é apenas um ator!”.
Centro-me nestas duas centrais de afeto, nestas atuações paradigmáticas porque me parecem antinómicas por excelência: ao anti-expressionismo tentacular de deidade sibilina de Balibar opõe-se o expressionismo saturado de maquilhagem e overdose bipolar de Eidinger e, portanto, recortam o horizonte total da atuação requerida, deixando as medianas da personagem protagonista numa espécie de limbo neurótico, cheio de maus tiques, de rubricas mal digeridas ou ensaiadas que realmente não convencem.
Jean Narboni, num texto seminal sobre Flammes (1978), de Adolfo Arrieta, recorda-nos da consanguinidade do trabalho do ator com a da puta: eles usam dos mesmos humores, do mesmo arsenal pático para trabalhar, lágrimas, gemidos lancinantes, sémen e sangue coagulado (pelo menos quando em combate). No Irma Vep (2022), de Assayas, é antes a droga o catalisador dos vómitos e arranques operáticos do ator alemão, enquanto que a francesa se resolve numa arquitetura, rigorosa mas flexível, de gestos elementares, precisos, quase-geométricos mas saturados de spleen amoroso. Crack contra tranquilizantes, e ambos tais com génio pático necessário para que, equidistantes e estruturantes, escorem a totalidade do filme como seus eixos mais firmemente estáveis, e permitam portanto os saltos e as sarabandas que o instinto ou a inspiração possam suscitar. O profissionalismo de ambos é a prova candente de que o cinema contemporâneo improvisa, imagina, se exprime em cacos, mas só o pode fazer se a rede de proteção o esperar lá em baixo, se o salto no vazio artaudiano for precedido pelo sistema e pela summa do texto bem decorado e ensaiado, do palco italiano, das mediações lavradas no corpo-máquina do ator bem treinado, do trabalho infinito.
A crença impossível nos delírios de Musidora e seu gang só é ainda possível porque dois atores de primeira linha (de produção: profissionais, antes de tudo) oferecem a Assayas o estofo, a urdidura, o Texto e o Teorema, bases sólidas privilegiadas por hipóteses de trabalho tiradas pelos fórceps da improvisação. Se seguirmos a linha de sucessão que foi dos filmes de Roberto Rossellini com Ingrid Bergman até os filmes de câmara centrados no corpo do ator que sofre (em francês diz-se: on subit, somos o objeto deste calvário que é ser um corpo) que Ingmar Bergman realizou no início dos 1960 – para precisar, Tystnaden (O Silêncio, 1963), Nattvardsgästerna (Luz de Inverno, 1963) e Såsom i en spegel (Em Busca da Verdade, 1961) –, se formos rigorosos e consequentes para seguir esta imaginária filiação genealógica, veremos que do centro do plano o cinema se deslocou para as margens páticas do corpo do ator, que assumiu o lugar de um centro agora excêntrico, esquizo, Outro.
Se está longe de possuir o génio preciosista do longa metragem Irma Vep (1996), Irma Vep, a série, detém, na medida do possível para um género debilmente televisivo, as rédeas deste corpus dúplice de improvisação e técnica matemática que permitiu ao ator substituir-se ao plano, ontem atribulado com todos os atributos de Deus, do cinema, e sabe jogar, dançar, compor (no sentido musical dodecafônico) a herança que lhe coube por usufruto de maldição.