O filme começa com um jogo de antecipações. Uma jornalista marcou uma entrevista com Salvador Dalí e aguarda, num quarto de hotel, pelo artista que decidiu consagrar uns minutos do seu precioso tempo a conversar com aquela jovem. Nesses primeiros instantes – ainda antes da chegada do “artista” – começa-se logo a instaurar uma ambiguidade formal (cujas verdadeiras repercussões só serão sentidas mais adiante). A jornalista fala diretamente para a câmara e discorre sobre o seu percurso profissional. É interrompida pela assistente do artista que a informa da chegada iminente de sua eminência. Porém, aproveita os instantes que ainda lhe restam para se recostar e descansar as vistas. Adormece e é acordada por um bode que lhe come o arranjo de flores da sala – para logo depois ser acordada de novo, desta feita para a “realidade”, pela assistente – “Ele está a subir!”.
E eis-nos no corredor do hotel, junto da jovem jornalista e da assistente, a aguardarmos a chegada do “génio”. Lá surge um pequeno Dalí, distante, ao fundo do corredor, uma silhueta, uma bengala, um bigode. Vão-se conhecer, finalmente! O ícone humanizar-se-á. Estamos dentro do esquema narrativo típico do biopic, o encontro entre o artista e o jornalista que lhe fará o retrato (sempre um alter ego do cineasta e uma via rápida de acesso íntimo para o espectador). No entanto, parece que o corredor se distende interminavelmente e Dalí nunca mais chega junto da jornalista, isto é, junto de nós. O primeiro gag de Daaaaaalí ! (2023) é deliciosamente simples e revelador. Construindo-se em torno de um campo/ contracampo que destrói a continuidade do espaço, o que demoraria pouco mais de dez segundos (atravessar o referido corredor) transforma-se num interminável jogo de esperas e antecipações que, em limite, se poderia prolongar ad aeternum. Por mais que caminhe, Salvador Dalí não se consegue aproximar da jornalista. E, já agora, enquanto ele chega e não chega, sobra tempo para ir à casinha.
Com Daaaaaalí ! o realizador parece assumir um método, parece enunciar uma série de referências (o surrealismo, o movimento dada, a comédia de sketches dos Monty Python) e parece expor uma descendência.
Esse protelamento traduz, afinal, uma inacessibilidade. A jornalista (o cineasta, o espectador) nunca chegará a conhecer o artista. Este nunca se humanizará. O retrato não será possível. O ícone nunca deixará de o ser. A silhueta, a bengala e o bigode permanecerão uma silhueta, uma bengala e um bigode – nunca nos aproximaremos, nunca se desmontará a máscara, nunca acordaremos para a “realidade”. Permaneceremos inescapavelmente no reino da mitologia. Como não poderia deixar de ser, diante da figura de Salvador Dalí. Tanto é que, quando finalmente Quentin Dupieux se cansa de nos fazer esperar, fá-lo apenas para nos frustrar, uma vez mais: assim que Dalí chega junto da jornalista e percebe que a entrevista não será filmada (ela trabalha para a irrelevante imprensa), levanta-se e vai-se embora, pelo mesmo corredor que o trouxera até ali.
O gag de abertura de Daaaaaalí ! concretiza, por isso, toda uma reflexão sobre o imperscrutável homem que assinava como Salvador Dalí. A jornalista fica-se pelo imaginário que Dalí construiu para si, e Quentin Dupieux fica-se pelo imaginário que o seu corpo de trabalho e a sua imagem pública constituíram. Não há vontade de conhecer mais do que a superfície caricatural da persona do artista – aliás, poucas ou quase nenhumas são as obras de Dalí que aparecem no filme, talvez por uma questão de direitos e orçamento. Mas esta limitação não deve ser entendida como superficial, isto porque o realizador acredita que é precisamente na superfície que se encontra o âmago do artista e da obra (do artista que é a obra e da obra que é o artista). Não há nada por debaixo da máscara. Não há Dalí sem bigode nem bengala – o bigode e a bengala são Dalí, da mesma maneira que Dalí é o seu o bigode e a sua bengala. O artista (pós-moderno) é a sua iconografia e a sua auto-mitificação. Tanto mais quando a importância histórica de Salvador Dalí se prende, intimamente, com a sua dimensão pública. A hipótese de Dupieux – que Daaaaaalí ! defende com unhas e dentes – é que a dimensão pop que Dalí construiu a partir das suas aparições televisivas é o fim e o início da sua persona artística.
Neste sentido, Daaaaaalí ! é tanto sobre Salvador Dalí como é – possivelmente – o mais declarativo dos filmes da empresa estética de Quentin Dupieux (e entenda-se “declarativa” no contexto de um cineasta que já filmou um pneu homicida, uma comédia dumb and dumber com uma mosca gigante, um filme de power rangers antitabágicos, um casaco de camurça serial killer, etc., etc.). Com Daaaaaalí ! o realizador parece assumir um método, parece enunciar uma série de referências (o surrealismo, o movimento dada, a comédia de sketches dos Monty Python) e parece expor uma descendência. Se é certo que o deliciosamente buñueliano Incroyable mais vrai (2022) se construía em torno de um gag final que era uma saudação a Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929), este mais recente título clarifica qualquer dúvida que ainda subsistisse e assume a potência matricial dos primeiros filmes de Buñuel-Dalí no cinema de Dupieux. Contudo, o realizador francês consegue revelar as costuras muito bem cerzidas do seu universo sem nunca se deixar consumir pelos seus referentes. Daaaaaalí ! é profundamente dupieuxiano: as mesmas obsessões metacinematográficas de Reality (2014), a mesma estrutura narrativa em matrioska de Wrong (2012), a mesma personagem da jovem realizadora que vinha Le daim (100% Camurça, 2019) (nesse filme interpretada por Adèle Haenel e aqui substituída por Anaïs Demoustier); e, mais não seja, a mesma paleta de cores deslavadas que se tornou a sua imagem de marca (Dupieux é o seu diretor de fotografia)…
A partir destes pressupostos (Dalí é inacessível, o filme só se interessa pela sua iconografia, Dalí é uma espécie de veículo de autoanálise de Dupieux), todo o filme se organizará em torno de uma rodagem sucessivamente frustrada, onde a jornalista tenta – uma e outra vez – aproximar-se de Salvador e – uma e outra vez – este recusa ser perscrutado. Primeiro não há câmara, depois a câmara é pequena (e ele atropela-a), depois a câmara é grande mas a maquilhadora não lhe ouve as histórias, por fim ele aceita fazer a entrevista, desde que a câmara se vire para a jornalista e seja ele a fazer as perguntas (mas será que se trata de uma entrevista, ou é mais uma sessão de terapia onde a jovem jornalista se cura dos seus traumas? ou Dupieux se liberta dos seus ídolos?).
Posto doutro modo, só é possível aceder – de forma mitigada – à figura mitológica de Salvador Dalí a partir de uma subjetividade mundana que, nos seus delírios particulares, se deixa levar pela força onírica de uma sesta ou pela aceitação dos paradoxos da realidade como manifestações surreais de um mundo caótico. Dito doutro modo, para chegar a Dalí é necessário que o espectador se entregue ao absurdo do seu dia-a-dia – absurdo esse que se esconde na sombra das instituições, nas traseiras da burocracia e nas costas das convenções. Daaaaaalí ! coloca em evidência todo esse absurdo – é um seu catalisador – porque só assim é possível aceder à desordem surrealista e só assim é possível ser tocado pelo imaginário de Salvador Dalí – e eventualmente compreendê-lo. Aceitar o caos por contágio ou empatia, eis o intento didático (mas antipedagógico) de Dupieux.
★★★☆☆