Agora que a nova edição do festival de Cannes se aproxima e nela se apresentará uma das maiores – a maior? – delegações de sempre da história do cinema português (uma longa e uma curta-metragem na competição oficial, uma longa e duas curtas na Quinzena dos Cineastas e uma curta na Semana da Crítica), a Agência da Curta Metragem estreia nas salas comerciais portuguesas três curtas que, o ano passado, tiveram um extraordinário percurso internacional. Natureza Humana (2023), de Mónica Lima, venceu um dos três Tigres na competição de curtas-metragens do Festival de Roterdão; 2720 (2023), a mais recente curta-metragem de Basil da Cunha (que, entretanto, teve uma nova longa na passada edição do festival de Locarno) venceu o prémio da crítica no festival de Oberhausen depois de se ter estreado no festival suíço Visions du Réel; e Corpos Cintilantes (2023), de Inês Teixeira, estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes, faz agora cerca de um ano.
Basil da Cunha, ao realizar 2720, assina um dos seus melhores filmes (e certamente uma das melhores curtas-metragens portuguesas dos últimos anos). Duas personagens, Camila e Jysone, atravessam o bairro da Reboleira, segunda casa do realizador. Desta vez (creio que é uma novidade no cinema de da Cunha), a câmara segue-os em longos e elaboradíssimos planos sequência. Os seus percursos são diferentes e cruzam-se pontualmente. A câmara segue a menina por uns momentos até que se perde dela e se junta ao rapaz – daí a diante a coisa inverte-se (e assim sucessivamente…). Ela, de sete anos, procura o irmão desaparecido na noite anterior, depois de um desentendimento com a polícia. Ele, depois de seis anos na prisão, está de volta ao bairro e aquele é o seu primeiro dia de trabalho no IKEA – está atrasado! A câmara acompanha-os pelos trajetos sinuosos do bairro, entrando nas casas de amigos e familiares, trocando palavras com estes e aqueles, pedindo favores e conselhos. Lá fora, entenda-se, fora do bairro, a polícia circunda. Nunca os vemos, ouvimo-los apenas, mas todos se lhes referem e todos os evitam. É um filme de cerco, e de facto nem Camila nem Jysone chegam a conseguir sair daquela mónada caótica de ruelas. O título refere-se ao código postal da Amadora onde se situa o bairro, mas mais do que uma mera localidade, ou um lugar que se define pelo que está fora, 2720 é – e é isso que é muito belo – um retrato de uma comunidade una e familiar. O emaranhado urbanístico espelha a força da tecitura daquele grupo. Cada uma daquelas investidas em que a câmara perseguindo uma das suas personagens se cruza com um sem-número de caras (algumas que se reconhecem dos filmes anteriores de Basil da Cunha) revela, afinal, o poder agregador da própria câmara, que cose e recose aquelas relações de vizinhança: a câmara (literalmente ela) como agente agregador, o realizador como velha tecelã, fiando vagarosamente as relações de uma comunidade.
No que respeita a Inês Teixeira, este é o seu primeiro filme como realizadora, quase uma década depois de sair da escola (trabalhou, ao longo destes anos, em várias funções, mas especialmente como anotadora), e ainda assim estabelece-se uma curiosa relação entre 5040 (o seu exercício para a cadeira de Laboratório Experimental na ESTC – o seu único filme até agora assinado individualmente), e este seu mais recente filme, Corpos Cintilantes. O primeiro é um ensaio onde a realizadora convoca uma série de textos para refletir sobre o urbanismo (de Aristóteles a Calvino, passando por uma sebenta do Instituto Superior Técnico) e a “dimensão adequada à boa vida numa cidade”. Esta nova curta, apesar de ficcional, começa, nem de propósito, com uma aula onde a professora lê um texto de 1969 de um arquiteto que fica por nomear onde, ironicamente, se defendem “as mulheres entaladas entre as portas e as sacadas” (mais adiante fala-se de uma “casa incrível” e uma personagem está a estudar engenharia civil). Até certo ponto, Inês Teixeira, em Corpos Cintilantes, dá continuidade ficcional ao seu escolar filme-ensaio, reinterpretando de forma delicada Les Dites cariatides (1984), de Agnès Varda. Isto porque, pelo caminho, Inês Teixeira faz destas meditações arquitetónicas uma reflexão sobre a representação dos corpos das mulheres na arte (e na arquitetura) e, mais importante, sobre a sua autorrepresentação. É precisamente através de uma série de alusões urbanísticas que aquilo que poderia ser um subtil (mas esquecível) romance adolescente em modo coming of age se revela, afinal, um pequeno tratado sobre a consciência do corpo, do desejo e da pose – veja-se a belíssima rima entre o primeiro e o último plano.
Mónica Lima, por fim, aprofunda em Natureza Humana aquilo que vinha sendo o seu trabalho nas curtas de escola [The Silence Between Two Songs (2013) e Victoria (2015), exibidos no IndieLisboa, e Verão Saturno (2017), estreado no Curtas], a saber, retratos de relações perdidas ou interrompidas. Só que, agora, Lima liberta-se de um certo rigor clássico que caracterizava os seus filmes precedentes, lançando-se na descoberta dos tempos mortos, dos pormenores do quotidiano, dos não-ditos. Trata-se de um filme onde a construção narrativa é progressivamente descarnada, apetece dizer, esvaziada de palavras e mesmo de gestos para que sobre apenas a comunicação sem palavras de um casal atravessado pela infertilidade – e, exatamente por isso, parece casuístico e solto. O desvio pelos temas da jardinagem oferece a Natureza Humana uma imponderabilidade qualquer que o desacerta, tornando os dramas do casal muito mais subtis, lançando o filme para uma paisagem de composições pictorialistas. A pandemia é puramente circunstancial aqui e, ainda assim, adivinha-se que não o terá sido (há muito de nós nesta vivência feita de pequenas coisas do confinamento – de nós e deles, o casal Gonçalo Branco e Mónica Lima, autores do argumento). Com o desvio pela horticultura, também a terra e as minhocas entram em casa, e com elas o frémito das plantas, prontas a criar raízes e brotar. E tudo fica dito numa cabeça que se esconde dentro da camisola – imagem síntese de um lirismo tocante – e no riso de uma criança com brincos de cereja.
Fica, portanto, esclarecido o certeiro título desta sessão, “Entre Muros”: do confinamento pandémico, às restrições arquitetónicas da autorrepresentação, passando pelo filme de cerco (que é, também, um filme de bairro). E entre muros brota o cinema.
2720: ★★★★☆
Corpos Cintilantes: ★★★☆☆
Natureza Humana: ★★★☆☆