A estreia de um novo filme de Frederick Wiseman, neste caso Un couple (Um Casal, 2022) nas salas de cinemas portuguesas será sempre um momento de celebração, não só pela possibilidade rara de assistir a um filme do realizador americano na tela grande, mas também como prova da longevidade e vitalidade de um dos nossos documentaristas preferidos. Por ocasião deste seu filme – uma das suas raras ficções – percorremos a sua inigualável e influente filmografia (desde o primeiro, de 1967, ao mais recente, de 2023), através de algumas imagens e filmes marcantes.
Num de meus livros de cabeceira sobre cinema, o “Cinema, arte moderna”, de Dominique Päini, o célebre programador, produtor de cinema avant garde e crítico se debruça, em um dos capítulos dedicados a filmes que o fascinaram, sobre o Ludwig de Visconti, e ali há uma perspicaz sacada que me assombra. Païni nos fala que, num século da possessão burguesa como o 19, os cenários rocambolescos, suntuosos de Ludwig nunca nos são mostrados integralmente; antes pelo contrário: eles são atomizados pelo estrutural travelling ótico- o famoso zoom, retórica de Vulgata tão comezinha nos menus de pseudo-avant garde dos 70-; eles são devastados pelo zoom, violados e histericamente desintegrados. Tudo aquilo cultuado pela alta burguesia da Baviera, pela realpolitik de Bismarck e pela soberania do segundo reich (sim, o décor) é convertido pelo zoom numa miríade de objetos parciais, de átomos impossíveis de reconstituir a totalidade orgânica, embora esquizo e decadente, do corpo nobiliárquico alemão. Em Titicut Follies, filme desafiador que me deu um trabalho impossível para encontrar um plano fixo- ponto do espaço-tempo cristalizado, agora diferido pela economia da montagem rough cut do cinema verdade americano-, reencontramos igualmente, embora agora num cenário, contexto e segundo valores radicalmente distintos dos corrosivos estudos de caráter saturados de ruína de Visconti, a mesma estrutura: não há quase nenhum plano fixo nesta farândula Brakhage + foulcaultiana sobre uma instituição para criminosos “mentalmente alternativos” dos meados dos 60; não há nada que resista ao colapso, orquestrado com rigor de enxadrista, do zoom in/out, do travelling ótico como o médium privilegiado de cultura para estes estudos impregnados de vários entretons de cinza, sobre a lixeira que restou da revolução entrópica beatnik. De fato, ao vermos Titicut parece que estamos assistindo a um filme alternativo feito das sobras do Shadows (Sombras, 1958) e Faces (Rostos, 1968)de Cassavetes, dos diários de Mekas e do Jason de Clarke; tudo parece soçobrar sob o soma bipolar da câmara, que deseja mimetizar o id tumultuoso dos personagens observados para cooptá-los de forma inquisitiva sob um esquadro e um bisturi quase hápticos.
Mas há uma exceção, que finalmente paralisa a agitação incondicional do vetor de captura em nome da fascinação, especular e en abîme, do olhar do basilisco antes do bote: um buraco negro que tudo suga e absorve para suas margens inquietantes de magia, um filme de câmara, intimista e musicado, incrustado sob o filme de câmera imunodepressivo. Um dos prisioneiros canta uma canção rapsódica da New York rebelde, enquanto sob o fundo tinto de negro do plano – agora finalmente fixado, transfixado pelo ritual encenado para um petit comité do espectador de circuito alternativo, enfim aliciado por uma bela história para contar- um vídeo progressivamente focado e desfocado nos mostra uma cantora que, como as Peggy Lee e O’Day dos night clubs numinosos do século 20, parece cantar unicamente para o inebriado partner jazzista (sim, porque apenas ele parece improvisar o songbook de sua Chinatown, oh my Chinatown, gutural e lírico espécime de cançoneta tardia, ressecada para a adolescência distante). Imediatamente me lembrei de um percurso reverso e complementar de idioleto melodramático com infra-estrutura documental, para ser mais preciso segundo Brenez rosselliniana: os vários contos, todos impregnados de teatralidade profana, com que do documento rough cut Cassavetes soube enlevar, sobretudo em A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974) e Love Streams (Amantes, 1984), o retrato agora sacro do Eterno feminino de sua musa e parceira de cena e bastidor, Gena Rowlands: tudo, que parecia esmaecido e machucado nas pontas chamuscadas de cigarro e gim do cinema verdade, agora brilha imarcescível sob o palco de variedades da vida conjugal, reencenada para propósitos de performance suburbana. Este é um momento de revelação caracteristicamente fabuloso do cinema de performance que também foi um documento bruto, pelo menos em seu primeiro (e único aqui) insert de emergência no mundo, cru e devastador, da inquirição autopsista dos cines pós-pós: haveria, aliás, a possibilidade, numa arte materialista, de dissociar um do outro, de não sermos fatalmente esquizofrênicos como nossos caros camaradas de claustro e de teatro em Titicut Follies?
Luiz Soares Júnior
Sendo apenas o seu segundo filme, e que marca o início de um período artístico particularmente prolífero (com uma década com um filme por ano) aliado a um período de especial turbulência na sociedade americana, com filmes como Juvenile Court (1973) e Welfare (1975), este é um filme bastante importante para acompanhar o caminho que Wiseman percorreu até aperfeiçoar o seu estilo de documentarista observacional, da câmara como testemunha, que o americano iria explorar e repetir ao longo da sua filmografia, que parece aqui tomar o primeiro passo. Em contraste com o seu primeiro e anterior filme, Titicut Follies, muito mais duro, caótico e de câmara irrequieta, aqui Wiseman experimenta pela primeira vez uma abordagem que mais tarde seria popularizada de fly on the wall, em que quase parece invisível perante o cenário e procura não intervir ou influenciar a acção que filma (apesar de Wiseman ser o primeiro a declarar que isso é impossível, a verdade é que começa a estabelecer-se uma distinção entre o documentário cujo autor se coloca no centro da acção, e o que tenta filmar de fora). Não deixa de ser curioso no entanto que seja neste filme que Wiseman começa a encontrar um modelo visual para o que quer filmar, este que é um filme precisamente que alerta sobre a uniformização das mentes dos alunos, condicionadas através do sistema de ensino americano.
É neste alerta que é revelada a subjectividade do filme. Esta subjectividade é revelada na escolha do tema e mesmo durante a filmagem, na escolha do que era filmado dentro do plano e de como este era filmado, durante quanto tempo, e para onde decidia apontar a câmara. Mas a subjectividade era visível sobretudo na edição dos filmes. Wiseman trabalhava as várias horas que tinha registado para criar uma narrativa dentro do filme, apelando a construções subjectivas, para definir as personagens principais. Estas funcionariam como guias de empatia, para o espectador formar o seu próprio quadro da realidade através do que via nas imagens. Wiseman consegue assim criar empatia com as personagens anónimas do filme, porque mostram-se parecidas com os espectadores anónimos do filme.
Em High School, Wiseman consegue apurar o seu sentido de observação, ao mesmo tempo que descobre uma linha narrativa adequada à sua visão política do funcionamento da escola como organismo formador de alunos homogéneos, de pensamento único. High School é portanto importante para perceber a desconstrução metódica que Wiseman faz sobre o tema escolhido. Através de uma série de sequências do quotidiano escolar, que revelam a organização hierárquica do poder na interacção entre professores e alunos, Wiseman vai construindo um quadro que permite questionar o funcionamento do sistema. E é num momento quase furtivo, entre outras sequências que parecem mais importantes, que é revelada esta imagem de uma rapariga pensativa e melancólica, sozinha num local onde a individualidade procura ser anulada, que ressoa pelo seu poder simbólico, de quase resistência a essa conformidade – é uma das imagens mais poderosas do cinema de Wiseman.
João Araújo
Law and Order (1969) é uma das primeiras radiografias de Frederick Wiseman às instituições americanas, cinema produzido para televisão, sob a tutela da National Educational Television, onde o cineasta se propôs registar o quotidiano da polícia de Kansas City, no estado do Missouri. Rodado nos loucos anos 1960, em cima dos assassinatos de Martin Luther King e de Robert F. Kennedy, e das notícias que chegavam do Vietname – conflito inextinguível e exibido na televisão, que estava a exasperar boa parte da nação – o método observacional de Wiseman, desprovido de narração e muito próximo das ocorrências, expunha as fortes tensões entre polícias maioritariamente caucasianos, equipados com fardas e capacetes que os fazem parecer androides, e estratos problemáticos de população negra, mas também revela a disponibilidade daqueles homens no auxilio da população nos diversos incidentes, desde pequenos assaltos, agressões e prostituição, um humanismo e uma empatia que terão surpreendido Wiseman e que acrescentam tonalidades ao documentário. A sequência final de Law and Order apresenta um discurso de Richard Nixon, na campanha que o iria eleger para o primeiro mandato, onde vincava a preocupação com o aumento da criminalidade e se mostrava convicto que iria reinstalar a lei e a ordem na América, como se estivéssemos no território do western.
Vítor Ribeiro
Sempre que se fala de um filme de Frederick Wiseman refere-se a já batida lenga-lenga do retrato da instituição como ser vivo. Em relação a Crazy Horse esse também foi, em grande medida, o discurso dominante – e, de facto, o realizador norte-americano percorre as múltiplas facetas do homónimo cabaret parisiense. Se é certo que Wiseman já se havia dedicado, mais do que uma vez, a filmar espaços culturais ou salas de espectáculos – Ballet (1995), La Comédie-Française ou L’amour joué (1996), La danse (2009) –, em Crazy Horse opera-se uma transformação subtil mas que é bastante reveladora da diferença que o filme instala face aos demais (e que o afasta do retrato institucional, para o aproximar de uma prática mais impressiva sobre os corpos, as cores, as luzes e os sons). O referido cabaret chama-se “Le Crazy Horse” e o documentarista, propositadamente, retirou o artigo definido, aproximando-se assim do universo do western através da coincidência com o nome do líder Oglala, figura maior da mitologia dos nativos americanos e personagem recorrente de inúmeros westerns clássicos.
Esta transformação mínima vem destacar um aspecto do olhar de Frederick Wiseman: a cinefilia. E, talvez mais do que em qualquer outro dos seus filmes, o olhar do realizador é aqui particularmente tocado por essa bagagem infanto-juvenil que o terá (en)formado. O cabaret transforma-se, segundo o seu ponto de vista, num saloon e há qualquer coisa de deslumbre infantil na câmara do cineasta. O que mais emociona em Crazy Horse é a forma como Wiseman encarou uma casa de espetáculos de nus (com números tão burlescos como meninas vestidas de soldados da corte britânica cobrindo as partes baixas com rabos de cavalo loiros) como um veículo de filmar as formas mais primitivas de cinema. E se alguma dúvida restasse, o plano de abertura (que rima com o plano final) vem esclarecer o propósito cinéfilo de toda a empresa. Crazy Horse abre e fecha sobre uma tela branca onde se projeta uma luz. Sobre ela, um prestidigitador organiza formas animalescas com as mãos. Os efeitos são tão surpreendentes como comoventes. Um rosto humano transforma-se num cão, um gato de colo faz-se um par de amantes que, num abraço fugoso, se convertem numa pomba que levanta voo. Estamos, portanto, instalados num espetáculo de superfícies (a tela de cinema, a pele nua das bailarinas), de formas e sugestões, de fantasias e imaginários – onde é o olhar (mais ou menos luxuriante) que transforma a realidade à medida dos seus desejos. Wiseman converte um cabaret num exercício sobre as possibilidades narrativas (e eróticas) do pré-cinema.
Ricardo Vieira Lisboa
Trata-se de um plano em National Gallery (2014), que surge decorridos dez minutos de filme, na qual presenciamos uma aula de história de arte para pessoas variadas, entre as quais se encontram invisuais. O objecto em discussão é uma pintura “mais abstracta” de Camille Pissarro, Boulevard Montmarte de noite, e cuja reprodução em modelos de touch drawings a professora traz para a aula, de modo a tornar possível a legibilidade da mesma para os alunos invisuais presentes. A própria pintura, pegando nas palavras da professora, leva-nos a pensar nalgumas possíveis definições do próprio cinema de Wiseman: “Sinfonia de luz e escuridão”, “tomada de vista entusiástica sobre a vida na cidade”, ou ainda uma pintura (leia-se, um cinema) que, apesar das suas qualidades abstractas, “põe a descoberto as estruturas sociais”. Mas é sobretudo um plano que metaforiza a poética wisemaniana no seu esplendor, na qual o espectador é convocado para co-produzir, mais do que simplesmente identificar, o sentido das imagens com que se relaciona. Nas palavras do próprio realizador: “When my technique works, the audience becomes involved because they are placed in the middle of sequences and are asked to think through their own relationship to what they are seeing and hearing”.
O gesto da mão que tacteia as imagens é também uma metáfora dessa tarefa criativa que se exige ao espectador: a busca sensível da escultura (do filme) na vasta “galeria de imagens” que nos rodeia, do Todo que (já) está dentro da pedra. Se refiro o “toque” (e não a visão ou a audição) como sentido comum aos modos de ver neste e em qualquer filme de Wiseman, é porque o tacto nos dá somente uma imagem parcial (sensível) e não total (legível) do objecto que interpela. O toque pressupõe uma relação progressiva, incompleta e diferida com o objecto tocado, uma relação com o local, em detrimento do geral. Tacteando uma forma de aproximação aos lugares, hesitando e por apalpadelas, plano a plano, cena a a cena, os filmes de Wiseman dão-nos capacidades para (re)conhecer um mundo que subitamente se nos apresenta em toda a sua possível artisticidade. Como na parábola budista dos cegos e o elefante: uma comunidade de criadores em potência, cegamente tacteando a realidade que o cinema nos ensinou a desejar.
Pedro Florêncio
Enquanto mestre do cinema directo, directo no sentido de abertura inquestionável ao objecto que filma e à nossa aproximação a ele, a obra de Frederick Wiseman confronta a relação que pensávamos ter como compreendida do mundo que nos rodeia libertando-se da fly on the wall. Mas ninguém o diria por este plano de Menus-Plaisirs – Les Troisgros, último documentário do realizador que explora os estímulos processuais por trás da preparação da mais refinada gastronomia, neste caso por trás dos três restaurantes da família Troigros, realeza francesa gastronómica, quatro gerações de chefs que mantêm 3 estrelas Michelin há mais de 50 anos.
De forma muito curiosa, este é um dos únicos planos dos 240 minutos de filme, no meio de tantos outros decorativos e de transição entre a acção, em que estamos verdadeiramente distanciados. Há algo de monumental neste espelhar do que é o centro do sistema nervoso do filme, dentro da cozinha da Maison Troigros, o restaurante galardoado onde couve roxa é frita e transformada em folhas outonais, cérebros de sapo são servidos como se se tratassem de tudo menos da sua matéria-prima, flores comestíveis são apanhadas das árvores para serem servidas. Por baixo deste tecto espelhado, onde tudo se vê reflectido e onde não há espaço para qualquer refúgio, homens e mulheres artesãos manuseiam pedaços de corpos, sejam estes de origem animal e/ou vegetal, que escaldam, escalfam, guisam, fritam, assam, para depois montarem e decorarem em pratos. Não são só cozinheiros. São escultores.
Em conjunto com esses ritmos serenos mas inabaláveis daquela cozinha, uma noção de continuidade, de uma profundidade de campo indefinida, vive neste plano, e uma leitura poderá ser feita sobre a dinastia Troigros, sobre essa ambição e o rasgo da sua poesia gastronómica ao longo do tempo. Também porque se trata de Wiseman, vários filmes vivem dentro do mesmo. Aqui encontra-se um filme sobre a relação dos humanos com os animais que se tornarão a sua comida, um comentário sobre a burguesia moderna, mas mais do que isso um corpo próprio que nos relata a ansiedade de um homem que, à beira da idade da reforma, não consegue deixar o que construiu nas mãos dos filhos. Os documentários de Wiseman são filmes que têm de ser percorridos na totalidade. Sabemos que temos que os viver como quem salta de um avião. Eles existem para que caíamos no solo. Este plano figura essa viagem.
Susana Bessa