Fica claro no prefácio da peça de David Henry Hwang (filho da primeira geração de chineses americanos), o seu principal interesse: as dimensões culturais, sexuais e políticas. Ao ler a verdadeira história de René Gallimard (o diplomata Bernard Boursicot) e Song Liling (Shi Pei Pu), em dois parágrafos no New York Times, ele foi agarrado pela ideia de desconstruir Madame Butterfly. A peça resulta em algo didáctico sobre estereótipos racistas e sexistas, em desacordo com as visões políticas e a abordagem artística de Cronenberg. O cineasta tinha de tornar a história sua, e misturar algum sangue no corpo do “estrangeiro”, ao mesmo tempo que desenvolveria o que ele achara intrinsecamente muito interessante no coração da história de Hwang / Boursicot / Gallimard: o desejo e a capacidade de transformação mental e física.
Chris Rodley
M. Butterfly foi um êxito na Broadway. A obsessão de um diplomata francês (René Gallimard) por uma diva da Ópera de Pequim (Song Liling), sem se aperceber que o objecto de desejo era, afinal, um homem e um espião do governo chinês, era o âmago da peça, numa adaptação livre da ópera Madame Butterfly. Os dois protagonistas acabam presos por espionagem, o que força o diplomata a enfrentar a realidade do sexo de Song. Cronenberg manteve conversas com David Hwang, que escrevera a peça e estava a escrever o guião, sob a tutela de David Geffen. O cineasta já tinha a percepção de que lhe interessava a “história entre os dois personagens”, pretendendo afrouxar a relevância do “sub-plot” da intervenção americana no Vietname. Também foi honesto com Hwang ao qualificar como “condescendente” a premissa de que “toda a gente na cultura ocidental é fascinada por esta mitologia do oriente”. A peça classifica o diplomata como um homem aborrecido, totalmente envolvido no trabalho, “inapto sexualmente”, que se descobre obcecado pela ópera Madame Butterfly. Com estas características, Cronenberg diz que Hwang não estaria assim “tão confiante” de que aquele personagem poderia representar “qualquer homem do ocidente”. Na primeira versão do guião, Gallimard ainda criança assistia à ópera e emocionava-se. O cineasta pensou em questionar isso, em “dispensar essa muleta”: porque não pressupor que “ele nem conhecia aquela ópera”. Cronenberg pretendia um olhar “mais subtil”, sem remover “a carga mitológica e sexual”. Desejava, então, que o guião introduzisse uma maior “autoconsciência” do diplomata, enquanto se incrementariam, também, os diálogos que colocassem os protagonistas a questionar e a discutir sobre os vários temas atravessados pela relação entre o ocidente e o oriente.

O filme M. Butterfly (1993) estabelece-se em Pequim, em 1964, numa época de grandes convulsões na China comunista (instaurada em 1949) e que estava neste período na antecâmara da Grande Revolução Cultural Proletária, que ambicionava consolidar o Maoismo, enquanto expurgava os valores do capitalismo e da tradição do contexto social, cultural e económico. Nas primeiras sequências, o diplomata René Gallimard (Jeremy Irons) parece demonstrar uma atitude entre a indiferença e a troça pela China e pela sua cultura. Numa dessas sequências, em que Cronenberg nos mostra uma Pequim que costuma ficar de fora de filmes e noticiários, em pequenas ruas atoladas de gente e de bicicletas, Gallimard está apenas focado no seu discurso e no seu contexto, como um estrangeiro. Mas a transformação principia pouco depois, numa recepção de uma embaixada em que Song Liling (John Lone), uma cantora da Ópera de Pequim, apresenta um trecho de Madame Butterfly, da morte da protagonista. Cronenberg assinala o inicio do namoro do diplomata com a cultura oriental com a inclinação do corpo de Irons para a frente, demonstração inequívoca de interesse assinalada também pela ténue iluminação no rosto dele, na descoberta do deslumbre pela diva. Ainda nessa noite, Gallimard manterá a sua primeira conversa com Song, na primeira de muitas disputas ao longo do filme, que constituíram uma das premissas de Cronenberg, algo que aliás encontramos em toda a obra: as imagens não são suficientes, é preciso colocar os personagens a debater os temas, como se trabalhassem para aclarar os assuntos, para constituírem uma tese. Gallimard elogia o desempenho convincente de Song e diz-lhe, num galanteio, que sempre imaginou as cantoras de ópera gordas e mal maquilhadas. Mas, Song refuta: “Convincente como japonesa? Sabia que os japoneses usaram milhares de chineses em experiências médicas durante a guerra?” E perante a excitação dele, da beleza subjacente ao sacrifício de Butterfly, Song insiste na mordacidade e diz que isso corresponde às fantasias dos ocidentais: a mulher oriental submetida ao cruel homem branco. Song despede-se do diplomata desafiando-o a assistir a uma das apresentações da Ópera de Pequim. Aprofunde a sua instrução, dir-lhe-á.

Os sinais da transformação de Gallimard são imediatos e Cronenberg atribui ao personagem uma presença diferente nas ruas: Irons passa a olhar as pessoas, os seus movimentos e ofícios, como notar um homem que conserta uma bicicleta numa pequena loja dependurada na rua. No encontro seguinte, embora a disputa entre o par se mantenha, Song seduz o diplomata, através da sua imagem e da sua cultura e, antes de se despedir dele à porta de casa com um convite para que volte e continue a instrução, abrirá uma brecha: “o fascínio ocidental pela mulher oriental é sempre imperialista, mas às vezes é mútuo”. Ainda nessa noite, o diplomata observa um ofício peculiar: um homem captura libélulas junto ao rio. Gallimard junta-se ao chinês, que lhe oferecerá uma daquelas franzinas criaturas, numa metáfora para o desejo do homem branco em capturar a bela e frágil Butterfly. Cronenberg confessa que a ideia da libélula foi uma das que adicionou ao guião de Hwang, pois pareceu-lhe uma associação “subtil e obscura”, atendendo a que essas criaturas nascem a partir de larvas em meio aquático (curiosamente chamadas de ninfas): as libélulas como “resultado de uma transformação”. Essa ideia de transformação já “estava em todo lado” na segunda versão do guião, a insinuar que o diplomata começa desde o encontro com Song a “responder inconscientemente” à criação de uma “realidade para si próprio”, com o auxílio da diva, que tem “as suas razões”, como a narrativa aclarará.

Cronenberg afirma que nunca pretendeu condicionar a “base teatral de M. Butterfly”, através da introdução de linguagem coloquial nos diálogos: era necessário que o filme conservasse a dimensão “operática”, sem pretensões de “realismo”. Esse ambiente era essencial para instalar o diplomata no “processo de criar a sua própria ópera, a preparar-se para se tornar na diva”. Por isso, a relevância da linguagem proverbial utilizada por Song na instrução de Gallimard, na “criação do romance deles, daquela fantasia”. O tema da transformação, e das suas ressonâncias, não é apenas válido para o diplomata, mas também de forma evidente para a diva. O cineasta exemplifica com uma cena em que Song está sentada na cama e diz “desprezar aquele traje e outras perversões burguesas”, mas que pretende fazê-lo, no “interesse do grande timoneiro”. Sem ainda dialogarmos com a postura ambígua de Song, Cronenberg continua ao evidenciar uma mistura de elementos da diva, no elástico que se situa entre o que se é “forçado a fazer” e o que “se deseja”, na homossexualidade a que Song está obrigado (mas que também revela desejar), para interpretar o papel e na consequente humilhação em alguns comportamentos, que se mesclam entre a necessidade e a vontade de ser vergado. Tal como na peça, o filme não acederá “à psicologia de Song” (quase nunca estamos sozinhos com ela), mas insinuará no seu comportamento que quando “queremos” fazer algo “desesperadamente”, “não é satisfatório se não formos forçados”. A transformação exemplificada no par Gallimard – Song, não é apenas sexual, é a possibilidade de nos “tornarmos em algo diferente do que somos”, relativamente “ao nosso passado, à nossa cultura, à nossa vida emocional”. Essa possibilidade de transformação representa, então, algo de tão “sedutor” quanto “assustador”.

Na primeira vez que Song recebe Gallimard avisa-o de que aquele encontro tem um elemento evidente de perigo e de escândalo. A diva aguça o exotismo e diz-lhe que a China não está na era moderna (como a França): as raízes da sua cultura milenar fazem com que o simples acto de lhe servir chã tenha implicações. Ele toca-lhe as mãos. Song pede para o diplomata sair, mas Gallimard coloca as mãos sobre os ombros da diva, que lhe confessa que nunca tinha convidado um homem a entrar no seu domicílio. O diplomata beija pela primeira vez Song, enquanto Cronenberg escurece o compartimento para desenhar um dos temas do filme: a intimidade do casal. Depois de uma longa ausência dele, em que Song lhe escreve e lhe confessa que o seu público, na Ópera de Pequim, sente a falta do demónio branco entre eles, o diplomata visita-a. Song está empenhada em auxiliar a construção da fantasia de Gallimard e insinua que é virgem, enquanto lhe pede para ficar vestida, pois o pudor é muito importante para os chineses. A diva diz que eles estão a embarcar no mais proibido dos amores e que receia o seu destino. O diplomata, a trabalhar no seu personagem, que dá corpo ao moderno e poderoso, mas também crédulo ocidental, responderá que o único destino é o que traçamos para nós próprios. O filme encarregar-se-á de troçar desta ideia, numa curiosa associação a Dead Ringers (Irmãos Inseparáveis, 1998), onde o cineasta insinuava uma inscrição genética que desenhara o destino dos gémeos ginecologistas. Nos preliminares do sexo, Song diz ao diplomata que é inexperiente, mas não é ignorante, pois advém de uma cultura vasta, de ensinamentos, de como agradar a um homem, que as mães transmitem às filhas.

Cronenberg reproduziu em várias entrevistas que M. Butterfly, o seu filme, são duas pessoas que conversam no quarto. Num longo plano-sequência, a câmara percorrerá vagarosamente um extenso compartimento para encontrar o casal na intimidade (vestidos e sentados), num canto marcado por uma ténue iluminação, para permitir ao espectador especular sobre a forma como o casal obtinha o enlevo do sexo, num quadro também marcado pelo esgar de Song, a expressar uma disposição sacrificial. Numa das sequências seguintes, Cronenberg, ao invés da grande escala, do plano aberto sobre a Muralha da China, mostrará o interior daquela construção milenar, um lugar para albergar a intimidade secreta dos amantes. Chris Rodley diz-nos que naquela que foi a primeira produção do cineasta com rodagem para lá das fronteiras do Canadá, “uma das conquistas” do filme “é a determinação e a capacidade para subordinar a paisagem”. Por isso, numa inversão da paisagem postal, “da beleza de tirar o fôlego da Grande Muralha”, Gallimard e Song parecem “projectar essa paisagem eles mesmos”, num quadro de “intimidade e emoções delicadas”, num “gesto na quase antítese de David Lean”. Cronenberg concorda e afirma que não queria que o filme fosse um The Russia House (A Casa da Rússia, 1990), “na sua obsessão de mostrar como são as ruas de Leninegrado”, pois ao “vaguear para mostrar o que estava no exterior da janela” eramos privados de observar “o rosto dos actores”. Na sequência da muralha, o plano geral corta de forma abrupta para o quadro do casal e “termina com um enorme close-up de Song” e não há a habitual “panorâmica de 360 graus para mostrar aquela paisagem”. O filme quer expressar que o diplomata está a ser dominado por um misto entre aquela paisagem, a cultura e a intimidade com Song.

René Gallimard exerce funções de controlo de questões contabilistas e financeiras na embaixada francesa em Pequim. O seu intuito de colocar as contas na ordem e questionar procedimentos é olhado pelos membros da embaixada com desconfiança e até repulsa, mas traz popularidade ao diplomata que se vê inesperadamente promovido a vice-cônsul, encarregue da ligação aos serviços secretos. Numa dicotomia entre controlo e adição, que constituía o cerne da obra de Burroughs e da adaptação de Naked Lunch (1991), também aqui vamos assistir inicialmente a um ziguezaguear do diplomata, que vai perdendo o autodomínio para entrar na sua “zona”. Gallimard corre para o domicílio de Song para lhe anunciar a promoção e para lhe perguntar se ela é a sua Butterfly, numa inscrição na narrativa da ópera, mas também pegando na cena escrita por Cronenberg, na captura das libélulas junto ao rio. Gallimard procura tomar o controlo da relação e solta uma linha de diálogo que reverbera de forma irónica: eu quero sinceridade, não quero falsidades entre nós. Neste namoro cultural, enquanto se submete ao fascínio da sua Butterfly (e começa a ser espiado por membros do partido comunista), o diplomata verbaliza nos encontros da embaixada que os orientais estão fascinados por eles e que se submeterão sempre à força superior do ocidente. Entre estes acontecimentos, há uma pequena sequência que é bastante reveladora da entrada na “zona” por parte do protagonista. Durante uma recepção numa embaixada, Gallimard é assediado por uma mulher de meia idade, que faz parte da entourage diplomática. No quarto, a mulher despe-se rapidamente, predisposta para o sexo. Gallimard olha-a e diz-lhe que o corpo dela é exactamente o que ele esperava, num evidente contraponto para a sedução pelo exotismo oriental, expresso na ocultação do corpo de Song.

Chris Rodley assinala que “pela primeira vez vemos um personagem de Cronenberg reaparecer noutra história”: Jeremy Irons interpretara os dois gémeos Mantle em Dead Ringers. Para o editor, o “efeito é estranho e um pouco arrepiante”, pois até aqui olhávamos para os personagens do cineasta como vivendo “num inferno hermético”, sem “vida nem futuro”, para lá de uma “aparente auto-imolação”. Rodley diz que a “mera visão de Irons” nas ruas da China, depois do destino dos irmãos inseparáveis de Dead Ringers, “produz uma sensação de desconforto” e de “iminente perigo”: “um homem de Cronenberg tropeçara para o mundo real”. Cronenberg concorda que René é uma “combinação” dos dois gémeos, do controlo de Elliot e da sensibilidade de Beverly, de “Beverly a aspirar ser mais Elliot”. Na mesma linha de raciocínio, a Song de John Lone era uma versão de Claire Niveau (Geneviève Bujold), da mulher que erguera uma barragem entre os gémeos ginecologistas: Lone “era escrupuloso em ser uma mulher no set”, em expressar a feminilidade no dentro e fora da rodagem, pois Cronenberg não pretendia que Irons “o visse como um homem”.

É também curioso o paralelo entre Gallimard e vários personagens interpretados por Jeremy Irons na época. Exemplificamos com Damage (Relações Proibidas, 1992), filme de Louis Malle estrado em 1992, um ano antes de M. Butterfly. Irons interpreta um ministro britânico, reservado mas popular, um personagem com um autodomínio notável, decalcado de Claus von Bülow em Reversal of Fortune (Reveses da Fortuna, 1990), de Barbet Schroeder, um aristocrata que personificara uma estrutura de classes vigentes, mas ameaçadas da destruição. Em Damage, Irons apesar de bem sucedido, pois tem uma vida suportada por uma mulher oriunda da aristocracia inglesa, parece um morto-vivo, com um rosto quase cadavérico, macilento. O ministro irá envolver-se com a namorada do filho, uma jovem e bela mulher (Juliette Binoche), que irá devolvê-lo à vida. Mas essa colocação do pai no topo do triângulo psicanalítico, descambará na tragédia da morte do filho. Depois da fatalidade, o personagem de Irons ingressa numa espécie de essência encontrada na solidão, no despojamento. Na coda de Damage, o seu pensamento revela-se num possível encontro entre os universos de Ballard e Cronenberg: “Aquilo de que somos feitos ultrapassa o nosso entendimento. Ultrapassa o conhecimento. Cedemos ao amor, porque ele nos dá uma certa noção do desconhecido. Nada mais interessa”.
Song espia Gallimard e entrega as informações aos agentes do partido comunista chinês. No entanto, a posição dela é frágil e de redenção dificultada, devido ao estatuto de artista que representa as posições tradicionalistas (e por isso antirrevolucionárias). Vemo-la a ser repreendida por ler revistas ocidentais, onde se identificam capas com ícones de Hollywood, que o partido comunista designa por lixo ocidental e que se liga com muito do material produzido nestes textos, no que se refere à paisagem dos media da época. Song que se mantém numa permanente interpretação ambígua, com o diplomata e com o partido, afirma em sua defesa que a leitura das revistas são para melhor cumprir o seu disfarce na vigilância de Gallimard, para servir o Grande Estado Proletário. Em paralelo, Irons assiste à queima de trajes e de adereços tradicionais da Ópera de Pequim, por parte dos correligionários de Mao. Para o diplomata, em pleno enamoramento cultural, é como se queimassem a sua Butterfly. Gallimard assistirá, pouco depois, a uma sequência na renovada Ópera de Pequim: os temas, as interpretações e os objectos associados à tradição foram removidos e substituídos por óperas do proletariado, com narrativas e indumentárias condizentes.

Cronenberg diz-nos que um dos eixos centrais da transformação de Gallimard é estimulada “pela insatisfação com a sua cultura” e depois no “atirar-se de corpo inteiro para outra cultura”, no “abandono da sua”. Apesar da dificuldade em concretizar estes processos em culturas orientais, como a japonesa ou chinesa, para o diplomata a tentativa corresponde a um “desejo de transformação”, em “se tornar outro”, sendo que uma “das formas de o fazer é culturalmente”; a outra possibilidade é através da “sexualidade”. O cineasta afirma que “seria simplista” resolver a narrativa com “uma homossexualidade reprimida” do protagonista e recorda-nos o caso verídico espoletado nos anos 1960, que envolvera o jovem diplomata francês Bernard Boursicot e Shi Pei Pu, cantora de ópera chinesa. Boursicot conheceu a diva “como homem”; foi-lhe apresentado “como um homem que representava papéis femininos na Ópera de Pequim”. Apesar de se tratar de um “homem muito feminino”, ele usava no quotidiano “fatos e não vestidos”. Os dois desenvolveram uma forte amizade e um ano depois a diva abriu o jogo: “Eu estou apaixonado por ti, podemos ser amantes, não temos que ser só dois amigos. A minha mãe queria um rapaz porque na China apenas os rapazes têm valor e depois de ela ter um bando de raparigas, educou-me como um rapaz, mas eu sou de facto uma mulher”. No entanto, Shi intuiu que o diplomata apesar de “estar apaixonado por ele” não se iria “permitir tornar-se homossexual para que eles fossem amantes”. E, portanto, competiria à cantora “criar uma mulher” para que Boursicot o amasse. Se não existisse a peça, as suas complexidades e peculiaridades, ao invés de uma transformação, de “chegar a um acordo com a sexualidade”, o filme poderia reduzir-se, então, à “homossexualidade reprimida” de Boursicot. O gesto de transformação, a revolução de Gallimard, como um digno personagem de Cronenberg, é uma “manifestação política de um impulso muito pessoal” e por isso a intenção do cineasta em “afrouxar” as questões políticas e estabelecer a narrativa, mesmo com contornos e contextos políticos, ao “serviço de um desejo e de uma vontade individual”, mesmo que não declarada. Como isto não estava muito claro na peça, Cronenberg procurou “torná-lo mais intencional”, desenvolvendo o personagem de Song. Apesar de não ser evidente se a diva já faria espionagem antes de Gallimard, depois dela seduzir o diplomata e começar a espioná-lo, essa condição de homossexual permitiu-lhe por um lado trabalhar para o partido, mas por outro lado, e por isso o cineasta adicionou a criada a observá-los durante a intimidade, foi uma das razões pelas quais foi enviada para o campo de trabalhos forçados.

Numa noite, Gallimard irrompe pela casa de Song. Está embriagado e testa a diva: diz-lhe para se despir, ele pretende vê-la nua, pois ela é a sua escrava e ele o seu senhor. Os movimentos da diva produzem uma rima entre a graça e a ambiguidade. Song diz ao diplomata que pensou que ele a entendia, que respeitava o seu pudor, a sua modéstia. Song, aparentemente, cede: diz-se indefesa, anui a que ele a dispa. Mas quando Irons começa a despir a sua Butterfly e a acariciá-la por debaixo da roupa, Song revela: René, estou grávida. Numa maquinação orquestrada entre Cronenberg e John Lone, que arrasta e desafia o espectador, perante a emoção do diplomata, um plano do rosto de Song expõe a farsa, a sua interpretação funâmbula. Pouco depois, a diva em conversa com outra mulher (do partido), pergunta se ela conhece a razão das cantoras de ópera de Pequim serem interpretadas por homens. Perante a resposta da mulher, de que talvez seja um resquício da estrutura social patriarcal, Song corrigi-a com autoridade: não, é porque só um homem sabe como uma mulher deve actuar, ser interpretada. Song simula perante Gallimard uma viagem para a terra dos pais e diz que voltará quando a criança tiver três meses, como é o costume da sua cultura. Conforme o plano, Song regressará com uma criança, com o filho que prometeu ao diplomata. Mas, é levada pelos membros do partido e pouco depois encontraremos a diva num campo de trabalhos forçados para artistas, escritores e intelectuais, que não se comprometeram devidamente com o regime, considerados inimigos da Grande Revolução Cultural. Os altifalantes espalham que aqueles trabalhos irão reabilitá-los, ensiná-los a servir a revolução, a expurgá-los de velhas ideias, da velha cultura e dos velhos costumes.
Segundo Cronenberg, Song é uma criatura peculiar: “masculino, feminino, oriental, ocidental, inventada”. A linha de diálogo da peça e do guião – “apenas um homem sabe como uma mulher é suposto actuar” – foi o que fez com que o cineasta quisesse fazer o filme, na explanação da ideia de que “a sexualidade feminina é uma invenção do homem”. A formulação de que “a sexualidade de cada um é uma fantasia” que criamos para nós próprios, tem tanto de encantador como de assustador, pois “significa que de alguma forma não há realidade na sexualidade” e que não existe uma “absoluta masculinidade ou feminilidade”. É um retorno à premissa de Crimes of the Future (1970): “na ausência de mulheres, os homens devem descobrir a masculinidade e a feminilidade neles próprios para produzirem um equilíbrio”. Chris Rodley põe M. Butterfly em diálogo com o filme anterior do cineasta. Segundo ele, em Naked Lunch (O Festim Nu, 1991), Cronenberg jogara com “certas ligações entre homossexualidade e espionagem”, com William Lee, o duplo de Burroughs, forçado a “adoptar um disfarce de homossexual” nas suas diligências e alucinações na Interzone. Esta opção permitira “uma engenhosa solução para as questões especificas da mente de Cronenberg sobre a sexualidade de Burroughs”. O tema é estendido, então, em M. Butterfly, mas os pós de controlar insectos e outros instrumentos auxiliares da alucinação, são substituídos pela “Butterfly Song”, que “manipula” o diplomata. Temos, no entanto, algo que distancia as duas “zonas”: em M. Butterfly “o contexto político é autêntico” quando comparado com “o imaginário incerto da Interzone”.
Gallimard é dispensado da embaixada, devido aos erros cometidos no prognóstico da situação internacional, nas opções das autoridades chinesas e na guerra do Vietname, que afinal encontrou oposição à superioridade do ocidente. Devolvido a Paris, em 1968 Gallimard está ainda encerrado na sua “zona”: assiste emocionado à ópera Madame Butterfly; pouco depois, veremos a sua existência solitária e frugal, num velho apartamento tomado pela música da ópera. As ruas parecem um cenário do filme que roda na sua cabeça: as manifestações de estudantes são dominadas pelos cartazes e pela iconografia do regime de Mao. Em três elipses, assistiremos à chegada de Song ao apartamento do amante, ao trabalho de Gallimard como estafeta da embaixada e à consequente detenção pelos serviços secretos. No julgamento, Song entra na sala do tribunal vestido de homem, com fato ocidental. O rosto de Irons revela um trejeito fugaz, entre a troça e a incredulidade. Cronenberg diz que investiu muito neste plano do rosto, na reacção de Irons, como um espelho da complexidade das percepções do personagem. Teria que traduzir várias coisas: “porque é que ela está vestida desta forma?”; “porque finge ser um homem?”. E finalmente, no sorriso que se abre, a “sensação de que ele de facto sabia, mas não queria saber”. O depoimento de Song é a parte decisiva do julgamento. Confessa que durante dois anos manteve um disfarce como cantora, com espectáculos ocasionais, enquanto aliciava Gallimard a tornar-se estafeta para aceder a documentos sensíveis do governo francês. Entre a omissão e a intenção, o ex-diplomata anuiu ao argumento de Song de que os chineses tinham cativo o filho deles e esperavam alguns favores para que o casal pudesse voltar a ver a criança. Em resposta ao promotor público, Song confirmou que Gallimard nunca lhe explorou o corpo no sentido de o poder identificar como um homem, pois ele respeitava a sua forma (oriental) de amar, algo que Song inventara exclusivamente para ele. A ambiguidade de Song triunfa e não distingue o corpo do contexto político.

Depois do julgamento, Gallimard e Song partilham o vagão da polícia, num percurso através de Paris, com o ex-diplomata a caminho da prisão e Song levado para ser extraditado. À pergunta de Gallimard se Song ainda é a sua Butterfly, o chinês provoca-o e diz que ele ainda o deseja, mesmo de fato e gravata. Enquanto Irons lhe diz que ela não é a sua Butterfly, não é nada parecido, Lone despe-se. Irons refugia-se num canto do vagão, para repelir aquela imagem destruidora da sua fantasia, mas Song força-o a olhar, a enfrentar o seu sexo. Song, numa atitude agora mais ambígua, força o toque com Gallimard para activar as memórias dos primeiros encontros. O francês diz que se recorda da pele e da boca, mas diz que Song cometeu um erro: mostrar o verdadeiro (o homem), pois o que ele amou foi a mentira perfeita, que Song inventou para ele e que agora destruiu. Depois, a comprovar que estava numa viagem pessoal e solitária, envolvido na “zona” que o conduziria à transformação total, murmura para si: é um homem que amou uma mulher inventada por um homem. Irons vai, então para outro canto do compartimento e Song, nu e sozinho, chora, num pranto ambíguo, entre a ópera e o melodrama. Para Cronenberg era a “cena essencial”, no âmago da concepção de que o filme “são duas pessoas num quarto”. O cineasta reescreveu a sequência, pois pensava que como estava na peça não funcionaria, não seria permitida a intimidade ao casal se o encontro se “desenrolasse na prisão”: “não seria credível que fosse permitido a Song que se colocasse junto à cela de Gallimard e tirasse as roupas”, e que nesse intervalo de tempo “ninguém se aproximasse”. Cronenberg não queria “mostrar o sexo de Lone”, porque a cena “tornar-se-ia subitamente sobre o sexo de Lone”. É “importante que Irons o veja por um instante”, mas o espectador “não precisa de ver”. O que é determinante é “a nudez”, não o sexo, por isso Song diz para ele sentir a sua pele, “ainda é a mesma pele”. De alguma forma, continua o cineasta, o propósito é “mostrar não o quão diferente ele é da Song que ele imaginara” (a mulher), mas mostrar “o quão semelhante ele é”.
Chris Rodley afirma que o triunfo de M. Butterfly junto do público “depende da sua capacidade de aceitar a noção de que Gallimard”, em boa medida, “está surpreendido”, quase chocado, “por perceber que Song é afinal um homem”. O casal original – Bernard Boursicot e Shi Pei Pu – “mantiveram relações sexuais durante 20 anos”. No julgamento, em 1986, Boursicot confessou “ter passado informações por amor”; também revelou que o romance deles “foi mantido secreto” e a intimidade era quase sempre “no escuro”. Por isso, o diplomata assumiu “o erro”: nunca viu o seu sexo completamente, pois Shi Pei Pu era “muito modesto” e parecia estar a cumprir “um costume chinês”. Por isso, a opção de Cronenberg em colocar Irons como um homem de meia idade e experiente sexualmente (Boursicot tinha 20 anos quando conheceu Shi), torna o filme ainda mais “afrontador” para o espectador, mais desafiante. Cronenberg confirma: teria de remover a inexperiência do diplomata, com Irons apelava a uma “clara vontade de suspensão da descrença”, para levar o espectador a indagar que o protagonista “não é enganado”, “ele quer ser enganado”. O cineasta revela-se surpreendido quando às leituras redutoras de uma parte dos espectadores, para quem o sexo é apenas a inserção do pénis na vagina. Ele pensa que Boursicot e Shi fá-lo-iam possivelmente “entre as coxas” ou “com as mãos e a boca”. Shi estaria a “inventar uma cultura sexual antiga”, que tornaria a experiência sexual “muito atractiva”, renovada e “maravilhosa”, e daí talvez se compreenda a longevidade da relação íntima. O cineasta também relembra que “na era Victoriana, os homens estavam certamente vinte anos sem verem o sexo das suas mulheres”. Segundo ele, o sexo adquiriu uma “força incrivelmente poderosa”, quando se apartou da “fisiologia da reprodução” e se tornou num ímpeto “quase abstrato”, numa evolução que poderá encaminhar-se para uma “forma artística”. Foi isso que pretendeu na curta cena de sexo no canto do quarto, com Irons numa cadeira e Song sentado em cima dele. Aquela “espécie de sexo” deve levar o espectador a divagar: “são as mãos dela que o fazem?”; “é entre as pernas?”; “é sexo anal?”.
Na prisão, Gallimard investe na grande representação da sua vida, a decisiva: na impossibilidade de possuir a Butterfly inventada por Song, ele transformar-se-á na Butterfly. Também aqui a experiência de transformação (cultural ao invés de científica) é enquadrada como uma performance, um acto público: numa sala ampla, os demais prisioneiros assistirão à opera de René Gallimard. O ex-diplomata, apesar de envolvido pela “zona”, revela um surpreendente discernimento, consciente de que o caso com a cantora de ópera o tornou numa celebridade bizarra. Mas, enquanto se desprende da crisálida, também informa o seu público que se conhecessem a verdade e a compreendessem, fariam fila à sua porta para conhecer os seus segredos, pois foi amado pela mulher perfeita. Coberto por uma indumentária oriental, Irons maquilha-se, para tornar visível a Butterfly, enquanto faz o elogio das mulheres orientais, belas e esguias, predispostas a amar o seu senhor, o demónio branco, incondicionalmente. Depois do erro (como uma experiência cientifica frustrada pelos resultados), já transformado, o ex-diplomata renova a sua visão do oriente, projectada no seu corpo e no fundo do seu olhar, onde diz que poderão encontrar mulheres dispostas a sacrificar-se pelo amor de um homem. A transformação fica completa, no momento que antecipa a sua morte, pois ele desenvolveu no seu íntimo essa mulher: Eu chamo-me René Gallimard, também conhecido como Madame Butterfly. Cronenberg ilude o tempo e o espaço e coloca pontualmente, durante a performance de Gallimard, enquadramentos de Song dentro do avião: o rosto da outrora diva exprime uma comoção, como se assistisse ao destino do amante.