Aucune image de la télévision ne peut nous incarner, c’est avec la vidéo que nous nous raconterons.
Les Insoumuses
« Encore un jour et l’année de la femme, ouf ! c’est fini ! ». É com este título em jeito de suspiro de alívio (irónico, esperemos…) que uma emissão da televisão pública francesa encabeçada pelo prestigiado jornalista Bernard Pivot decidiu assinalar o fim do ano 1975, proclamado Ano Internacional das Mulheres pela ONU (ano esse que até começara bem, com a aprovação da revolucionária Lei Veil que decretou a despenalização do aborto em França). A convidada especial é a futura ministra da Cultura Françoise Giroud que, entre 1974 e 1976, em pleno governo de Jacques Chirac, ocupa o poleiro de secretária de Estado da Condição Feminina. No plateau televisivo de Pivot, o menu desse dia em que se espera celebrar o encerramento do banquete de reivindicações feministas inclui uma panóplia de falocratas misóginos requentados, cada um mais indigesto do que o precedente, aos quais é dado tempo de antena para exprimirem publicamente as suas ideias sobre o que “A Mulher” é ou deixa de ser – como, por exemplo, um reputado crítico gastronómico que declara sobranceiramente que as mulheres, apesar de serem quem cozinha no contexto doméstico e familiar, não têm qualquer talento nessa área (“les femmes font de la cuisine, elles ne font pas la cuisine”, assim arrota o mestre).
Perdoem-me se tanta pseudo-filosofia gourmet apenas me inspira uma reflexão de natureza escatológica… Felizmente para os milhares de francesas que assistiram ao programa nesse 30 de dezembro de 1975, nem todas “engoliram” o que lhes foi dado a ver e a ouvir com a mesma facilidade que Françoise Giroud, exemplar no seu papel de Notre Dame da complacência e da subserviência, enquanto porta-voz de um governo confortavelmente patriarcal. Felizmente, para elas e para nós, houve quem não esperasse pelo fim da digestão para usar do seu “direito de resposta” e fazer do refluxo gástrico uma arma, optando por mastigar uma e outra vez as imagens e as palavras já azedas da Madame secretária de Estado, do Monsieur jornalista e dos respetivos convidados, para logo cuspir as verdades que nelas fermentam.
Maso et Miso vont en bateau (1976) é essa resposta em forma de filme, realizado a partir da apropriação, manipulação e remontagem das imagens da emissão televisiva de Bernard Pivot, e assinado por quatro mulheres: ao nome sibilino da atriz Delphine Seyrig (personificação de um certo glamour feminino da Nouvelle Vague, cristalizado pela ótica de Alain Resnais e Marguerite Duras, pouco tempo antes de incarnar a crueza alienadora da Jeanne Dielman de Chantal Akerman), juntam-se os de Carole Roussopoulos, Ioana Wieder e Nadja Ringart. Reunidas no âmbito do Movimento de liberação das mulheres que se afirma no rescaldo do Maio de 68, é após frequentarem um atelier de vídeo dirigido por Roussopoulos que as quatro decidem formar um coletivo, inicialmente chamado Les Muses s’amusent e mais tarde auto-proclamado Les Insoumuses (evoluindo de “musas divertidas” a “musas insubmissas”).
Trata-se de um momento charneira na história dos suportes audiovisuais, na medida em que o vídeo ainda não havia sido institucionalizado nem submetido à lógica capitalista das indústrias cinematográfica e televisiva, e portanto oferecia ainda uma grande liberdade de experimentação e de expressão, não só fomentando novas configurações do trabalho coletivo (questionando deste modo o ideal do autor demiurgo masculino, em prol de uma experiência de sororiedade criativa), como contribuindo para dar visibilidade a um “contra-campo” das formas dominantes de representação das mulheres. A atractividade do suporte videográfico explica-se igualmente pela rentabilidade dos equipamentos, a portabilidade das câmaras que permitem ir filmar para as manifestações e a possibilidade de visualizar imediatamente as imagens captadas e de regravar sobre as mesmas cassetes. Para além de Maso et Miso vont en bateau (1976), as Insoumuses estão também na origem de projetos como SCUM Manifesto (1976, baseado no texto de Valérie Solanas), Sois belle et tais-toi (1981), realizado por Delphine Seyrig, bem como da fundação do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir (1982), que ainda hoje continua a promover, divulgar e conservar um vasto espólio de documentos audiovisuais em torno dos direitos, lutas e criações artísticas realizadas por mulheres.
Mas regressemos a Maso e Miso, e ao barco em que navegam: se os passageiros mencionados no título são claramente identificados (ainda que Bernard Pivot ocupe uma posição ambígua: o seu discurso é mais ponderado do que o da tripulação de misóginos, e bem mais crítico do que o da passageira de primeira-classe Françoise Giroud… mas não deixa de incarnar uma espécie de Capitão, representante do poder patriarcal), não são eles quem comanda o filme-navio. A dada altura, um breve plano mostra as quatro Insoumuses que, incapazes de calar a sua consternação, se insurgem diante do televisor: menos figuras de proa ou sereias sedutoras do que corsárias prontas a tomar de assalto o navio de Pivot, são elas que rodam o leme, e dirigem a barca rumo ao seu naufrágio.
A realização de Maso et Miso constitui um verdadeiro ato de pirataria, sendo que toda a criatividade se exerce por via de gestos básicos de montagem sobre os quais assenta a sintaxe videográfica ainda balbuciante e, talvez por isso mesmo, provocadoramente lúdica: cortes bruscos, imobilização das imagens, repetição de sequências com laivos de scratching, inserção de intertítulos ou de comentários em voz off… são algumas das estratégias através das quais as Insoumuses criticam, contestam, sabotam, dissecam e até distorcem o que vem de ser dito e mostrado na televisão.
O próprio título do filme remete para um outro ato de pirataria, através da referência – homenagem? – à longa-metragem de Jacques Rivette estreada no ano anterior, Céline et Julie vont en bateau (1974), na qual, recorde-se, a dupla de protagonistas fazia trinta por uma linha para penetrar numa misteriosa mansão vitoriana e resolver a intriga dramática que mantinha prisioneiros os seus habitantes. À semelhança de Céline e Julie, este “bando das quatro” não se contenta em assistir passivamente ao triste espetáculo com que são presenteadas, e recorrem a subterfúgios igualmente fantasiosos e burlescos a fim de, ainda que diferidamente, desmascarar a verdadeira natureza do discurso político subjacente à emissão, que acabam por formular da seguinte maneira: “Nenhuma ministra pode representar as outras mulheres no seio de um governo patriarcal. Elas apenas podem encarnar a condição feminina oscilando entre o desejo de agradar (feminização: Maso) e o desejo de acesso ao poder (masculinização: Miso)”.
Ver Maso et Miso vont en bateau quase cinquenta anos depois da sua estreia continua a ser uma experiência profundamente jubilatória e, ainda assim, é-nos impossível ignorar o tal travo agridoce (maso-miso) que perdura nos dias de hoje, camuflado pelas políticas de purple (feminist) washing. Se o filme se termina com uma mensagem das autoras virada para o futuro – « C’est avec la vidéo que nous nous raconterons » –, para mim, são as palavras que me foram sussurradas pela espectadora septuagenária sentada ao meu lado na sala de cinema que ressoam como um grito de revolta capaz de despertar todas as promessas que ficaram por cumprir: « Il y a encore du chemin à faire ».
E enquanto houver estrada para andar…